PRIMEIRA GERAÇÃO

 

 PRIMEIRA GERAÇÃO


          Os estruturalistas e esteticistas não aceitam, mas, em verdade, os acontecimentos  políticos e literários se entrelaçam na tessitura da realidade social e histórica.

          Dois fatos importantes da história política do Piauí marcaram a vida dos piauienses, a julgar pela quantidade de livros, ensaios e notícias a respeito: a Batalha do Jenipapo (1823) e a transferência da capital da Província de Oeiras para Teresina (1852).

          Com o primeiro, houve o despertar da consciência de que a Província era uma entidade, um lugar e uma instituição social e política que devia ser preservada e amada. 

          Com o segundo, houve o deslocamento do centro político para sítio mais acessível às informações da Corte, além do melhoramento comercial através da navegação no rio Parnaíba.

Não sendo piauiense, Tomás Joaquim Pereira Valente, Conde de Rio Pardo, governava o Piauí nos anos de 1844 a 1845, teve a oportunidade de retratar a situação de Oeiras, a seu modo, num soneto barroco e satírico:

 

Oeiras, do Piauí, a capital,

                    Em estéril terreno edificada

                    E de montes agrestes rodeada,

                    Nada agradável tem o seu local.

         

          Noite e dia o calor é infernal;

                    Água boa; sofrível a qualhada;

                    Muitas vezes a carne é enfezada;

                    O médico e a botica, nada mal.

 

Só é bom o relógio da matriz!

                    Só é grande a barriga do Caminha!

                    E digno de um museu certo nariz...

                   

Por meu mal cá me trouxe a sorte minha;

                    E aqui, para não ser tão infeliz,

Amigos encontrei mais do que tinha!

 

Desde o começo, como foi visto, o autor mistura crítica com elogios desordenadamente, e assim o soneto prossegue sem coerência, sem adquirir unidade. Trata-se, é claro, de uma brincadeira Mas ficou no folclore  e na história cultural do Piauí.

Os acontecimentos mencionados fazem parte do amadurecimento, da tomada de consciência desse homem isoladíssimo que era o piauiense, encaminhando-o a enfrentar a vida e o progresso que regurgitavam lá fora, no mundo circunvizinho.

          Literatura em seu sentido histórico-social é obra coletiva, integra-se a uma comunidade, estado ou país.  Comunica emoções e sentimentos através das criações simbólicas de seus  criadores. Um autor sozinho, por melhor que seja, não constitui uma literatura. É preciso que haja mais vontades possibilitando a convivência e a comunicação literária. João Cabral de Melo Neto já o disse de outra forma: “Um galo sozinho não tece uma manhã:  ele precisará sempre de outros galos.”

          Sem escolas, associações, imprensa e outros incentivos, exceto jornais de cunho político ou oficial como foi referido, por que, então, falar em literatura, na sua forma geral, teórica,  na  época  de Leonardo Castelo Branco,  no tempo de Ovídio Saraiva?

 A primeira geração da literatura do Piauí só pode ser estudada organicamente a partir dos anos 1860, prosseguindo por todo o  século XIX. Seus representantes máximos fazem uma poesia romântica e popular, nascida quase espontaneamente. São eles, na poesia: José Coriolano de Sousa Lima (O Touro Fusco, 1859), Licurgo de Paiva (Flores da Noite, 1866), Luísa Amélia de Queiroz  Brandão (Flores Incultas, 1875), José Manuel de Freitas e David Moreira Caldas (embora não hajam publicado livros), Hermínio Castelo  Branco  (Lira Sertaneja, 1887), Teodoro de Carvalho e Silva Castelo Branco (A Harpa do Caçador, 1884) e  Taumaturgo  Vaz (Cantigas do Brasil, 1900). 

          A geração de J. Coriolano firma-se após a mudança da Capital de Oeiras para Teresina e, conseqüentemente, o estabelecimento de uma imprensa constante e a comunicação com os centros mais adiantados como Recife, Bahia, além da Capital do Império. É quando se fundam as primeiras associações literárias, sendo que a mais antiga foi  Recreio Literário, em 1875, seguida da Sociedade Minerva Literária, em 1884.

         

         

                               J. CORIOLANO

 

 

José Coriolano de Sousa Lima (1829 – 1869), magistrado, jornalista, poeta e prosador.   Como escritor adotou o nome literário de J. Coriolano.  Publicava nos jornais e revistas de seu tempo, desde a época de estudante em Recife, onde se bacharelou em 1859. Em 1856, em Recife, publica o folheto-poema denominado “O Touro Fusco”. Consta que publicou, em prosa, os seguintes trabalhos: “O Casamento e a Mortalha no Céu se Talha”,  “Frei José de Santa Rita Durão”,  “A Marília de Dirceu”,  “O Suicídio”, “O Homem é Bom ou Mau Segundo a Educação que Recebe”, “O Papa é Infalível na Canonização dos Santos”,  “O Sr. F. Muniz Barreto – como Poeta”  e  “A Liberdade de Imprensa”.  

Duas vezes eleito deputado à Assembléia Provincial, legislaturas de 1860 a 1861 e  de 1864 a 1865, ocupando inclusive a presidência do Legislativo, na carreira de magistrado vai exercer os cargos de  promotor público, em Piracuruca - Piauí, e de Juiz em Codó e Pastos Bons, no Maranhão.

Antológico é  O Touro Fusco, seu primeiro grande  poema:

                             

Canto Primeiro

          I

                    Não vou cantar heróis, nem esses feitos

                    Que adornam os anais da  humanidade;

                    Nem incensos queimar, nem render preitos

                    À precária e terrena potestade:

                    A um bruto vão ser meus versos feitos,

                    Pois que aos brutos deu vida a Divindade;

                    E eu, louvando do bruto o fino instinto,

                    Mais amor e respeito por Deus sinto.

                                             II

                    Ó minha doce infância suspirada,

                    Que o tempo estragador levou consigo;

                    Terna lembrança dessa vida amada,

                    Que há de sempre viver, morrer comigo;

                    Campos em que brinquei, onde fadada

                    A vida me corria sem perigo,

                    Fazei que, embora pobre, o meu assunto

                    Seja do meu sentir fiel transunto.

                                            III

                    No belo Crateús, sertão famoso,

                    Obra sublime do Supremo Artista,

                    Num terreno coberto de mimoso,

                    Está sita a fazenda Boa Vista;

                    Do Príncipe Imperial, bravo e rixoso,

                    Vila do Piauí seis léguas dista - :

                    Aí, num massapê torrado e brusco,

                    Nasceu o valoroso Touro Fusco.

                             

Com toda a força do seu estro, J. Coriolano prossegue a epopéia em 3 cantos, cada um com 17 oitavas reais, totalizando 408 versos decassílabos, cujo poema terá essa apreciação do nosso crítico João C. da RochaCabral:

“J. Coriolano cantou como ninguém mais, com tanta doçura e entusiasmo, simplicidade e heroísmo, alma religiosa e olhar panteísta,  a expressão própria do seu povo. O  Touro Fusco  é um poemeto que ainda não teve igual em nenhuma literatura, pela audácia de cantar  em versos heróicos a estória de um novilho famoso, que luta e morre como herói, e nos deixa saudades como as figuras humanas ou semidivinas de uma epopéia homérica ou virgiliana.”

 E também canta liricamente  no poema  O Catingueiro:

 

                    Nasci e criei-me nas vastas catingas,

                    Nas selvas umbrosas do meu Piauí;

                    Não gosto das praças, seus usos detesto,

                    Que males e dores não sofrem-se aí!

                    Ditoso me julgo, tocando a viola,

                    Cantando os amores que temos aqui.

                   

Eu vivo contente de ser catingueiro,

                    Da caça, da pesca, das frutas rendeiro.

 

                    Voltando da roça, nas horas douradas,

                    Sentidas que a rola diz – fogo apagou,

                    Vi uma donzela risonha, formosa,

                    Que amor em meu peito pra sempre plantou.

                    Pedi-a, ma deram, casei-me com ela,

                    E Deus nosso leito de amor fecundou.

                    .................................................................

                    Nasci e criei-me nas bastas catingas,

                    Frondentes, sombrosas, do meu Piauí;

                    Não gosto das praças, seus usos detesto,

                    Que males e dores não sofrem-se aí!

                    Ditoso me julgo, tocando a viola,

                    Cantando os primores que temos aqui.

 

Ou então é o delicado e romanticamente primoroso cantor de «Só um Anjo Será»:              

A flor que melindrosa se baloiça

                    No melindroso, delicado pé,

                    Não é como meu bem tão melindrosa,

                              Não é, não é, não é!

 

                    A aurora que o levante purpureia,

                    Que os horizontes colorindo vem,

                    Não tem aquelas lindas, róseas faces,

                              Não tem, não tem, não tem!

 

                    A brisa que sussurra nas palmeiras

                    É doce quando a tarde em calma está;

                    Mas voz tão maviosa quanto a dela

                              Não há, não há, não há!

 

                    A flauta que desoras suspirando

                    Quebra da noite a plácida solidão,

                    Não é como seu canto, direi sempre

                              Que não, que não, que não!

 

                    Se alguma virgem bela ataviou-se

                    Para mais realçar o todo seu,

                    Esse todo o meu bem, sem atavios,

                              Venceu, venceu, venceu!

 

                    Sua alma e coração são compassivos,

                    Ela tem o candor de um serafim,

                    É, sim, a minha amada, um tipo de anjo;

                              É sim, é sim, é sim!

 

                    Só um anjo de Deus, dos céus baixado,

                    Que à celeste mansão remontará,

                    Será como o meu bem perfeito e puro,

                              Será, será, será!

 

          José Coriolano de Sousa Lima nasceu em Vila Imperial, antigo nome de Crateús, município pertencente ao Piauí, na época, ou seja, em 30 de outubro de 1829, e faleceu em 24 de agosto de 1869, na mesma Vila Imperial. Seu livro Impressões e Gemidos foi publicado postumamente, em 1870, graças à boa vontade dos amigos, entre os quais David Moreira Caldas (Barras,1835 – 1879, Teresina) que lhe coloca um prefácio, na realidade, um grandioso ensaio crítico.

          David Moreira Caldas (1836 – 1872) foi o crítico da época. Mas não só crítico: poeta, professor, geógrafo, político e jornalista, cognominado o

“Profeta da República”. Em l869 lançou o seu primeiro jornal O Amigo do Povo, onde previa o ano da proclamação da Républica, no famoso artigo Oitenta e Nove. Além da produção jornalística, deixou as seguintes obras, nenhuma reeditada até então: Estudos sobre o Delta do Parnaíba, Cartas Geográficas,  Propagandista Desconhecido e Dicionário Histórico Geográfico do Piauí. O insuspeito histtoriador Mons. Joaquim Chaves comentaria numa de suas obras: “Estrela de primeira grandeza entre os vultos piauienses do passado é, sem dúvida alguma, Davi Moreira Caldas”.

J. Coriolano, com o respaldo crítico de David Caldas, tem a glória de ser o primeiro poeta piauiense citado a nível nacional. Sílvio Romero, em sua monumental História da Literatura Brasileira, 1888,  cita-o quatro vezes, ao lado de poetas como Juvenal Galeno e Fagundes Varela, da terceira geração romântica.

         

                                     LICURGO DE PAIVA

 

 

          Licurgo de Paiva (1844-1887) publicou, em Recife, com  prefácio de Tobias Barreto, o livro Flores da Noite, em 1866. Segundo Clodoaldo Freitas, trata-se de um poeta sem muita originalidade, que seguia as pegadas de Varela, tornando-se depois condoreiro.  Poemas como “Dina” e “Consequências do Baile” merecem ser lidos pelos piauienses. Aqui vai um excerto do último:

         

          Virgens ditosas, que folgais no baile,

                    Aves mimosas, que adejais aí;

                    Tomai cuidado no librar das asas,

                    Mirai-vos todas neste espelho aqui.

                   

                    Tomai cuidado! Ao retornelo ardente

                    Pulsa no seio um coração d’amor;

                    E se um suspiro se pressente e anima,

                    Adeus da virgem – decantada flor!

.....................................................

                    Vede esta fronte que o pesar sombreia?

                    Vede este seio que o martírio encerra?

                    Pois desta altura resvalaram flores,

                    Lírios que nunca hão de brotar da terra!

                   

                    Neste deserto, neste vácuo imenso,

                    Hoje pejado de miséria só,

                    Dos sentimentos o mais nobre e puro

                    Degenerou-se em aridez e pó!

 

                    Olhai, donzelas, o futuro é longe,

                    Da terra ao céu a imensidade vai:

                    Tomai cuidado, que o prazer do baile

                    É como a dor que se desfaz n’um ai!

 

                    Dançai, folgai que a mocidade é como

                    A flor do prado que bafeja a brisa;

                    Não só de orvalho, de calor, de sombra,

          Mas de cultivo na soidão precisa!

 

          Vede este quadro! Não sou moça e bela?

          E todavia me definho em vida!

          É que me falta dum cultor o esmero,

          Neste desterro a divagar perdida!

 

 

 

                                OUTROS  POETAS

 

 

          Hermínio Castelo Branco (1851-1889), também simples, porém mais agreste que seu tio Teodoro, abre a Lira Sertaneja, o livro de poesia piauiense mais editado, cujos poemas popularíssimos são decorados e declamados pelo Piauí inteiro e mais além, com o poema “O Vaqueiro do Piauí”:

 

                    Eu sou rude sertanejo:

                    Só falo a língua das selvas

                    Onde impera a natureza.

                    Não sei fazer epopéias,

                    Não entendo de poemas,

                    Nem choramingo pobreza.

 

                    Não canto glórias da pátria,

                    Nem o feito dos heróis,

                    Nem os perdidos amores;

                    Nem sei se o mundo se alonga

                    Além das raias que vejo,

                    Nesta campinas de flores.

 

                    Porém quero, em tosca frase,

                    Com singela liberdade,

                    Sem floreios nem mentira,

                    Entoar selvagem canto,

                    Inspirado na viola,

                    Em vez de dourada lira.

 

                    E quem não for sertanejo,

                    E queira compreender

                    A beleza de expressão,

                    Consulte dicionários

                    Da língua chã, verdadeira,

                    Do homem cá do sertão.

 

                                  §

 

                    Era no mês da mutuca:

                    Fins d’água vinham chegando,

                    Quando o gado sai da mata

                    Na carreira, esc’ramuçando,

                    Se deram estas façanhas

                    Que eu por aqui vou contando.

 

                    Nesse tempo dos prazeres

                    Do diligente vaqueiro,

                    Quando ferra suas sortes,

                    Caso parta do chiqueiro,

                    E se o dono da fazenda

                    Não é sujeito estradeiro.

 

                    Avisei a vaqueirama

                    Toda daquelas beradas,

                    Para me dar uma ajuda

                    De campo nas vaquejadas.

                    Entre nós, esses convites

                    São de alianças sagradas.

 

                    Tudo ficou prevenido

                    Para um dia, terça-feira,

                    Pois a segunda é das almas,

                    Nunca foi de brincadeira...

                    Não se deve campear

                    Nenhuma rês de bicheira...

                    .............................................

          Teodoro de Carvalho e Silva Castelo Branco (1829-1901), o «Poeta Caçador», mais simples e mais triste, começou a poetar muito tarde, depois que voltou da Guerra do Paraguai. Segundo Petrarca Sá, Teodoro é  “espontâneo, de rima fácil e sem artifício e de ritmo fluente, mavioso e de grande sonoridade”.  De Harpa do Caçador, 1884, seu único livro, extraímos versos que bem o identificam.:

 

                    Os simples prazeres que outrora cantavas,

                    Da vida campestre, singela e ditosa,

                    Já hoje desprezas; entoas teus hinos

                    À vil sociedade, corrupta,  vaidosa!

 

                    O mundo iludiu-te! Do mundo só cuidas!

                    A ele somente diriges teus cantos!...

                    Não vês, não conheces que o mundo é tirano,

                    Que só se alimenta de mágoas e prantos?!                     

 

Fica patente que os primeiros escritores do Piauí foram muito ligados ao povo e à terra, e sua literatura, numa forma singela mas esteticamente bem aceita, era pra gente que pouco ou nada sabia ler, mas ouvia e gostava de ouvir – porque havia pouquíssimas  escolas e muitos analfabetos. Exemplo desse tipo de poeta é José Manuel de Freitas, que não se preocupou em publicar seus poemas além do jornal. 

José Manuel de Freitas (1832-1888), poeta de grande valor, é outro que deve figurar junto aos versejadores populares e românticos. Ficou esquecido por não ter publicado livro. Clodoaldo Freitas encarregou-se de tirá-lo do anonimato, quando publicou Vultos Piauienses, 1903, onde inseriu versos como estes “A minha rede”, datados de 24 de fevereiro de 1856:

                   

Não desejo grandezas deste mundo

                    E nem do ouro jamais nutri a sede;

                    Minha vida cantando eu passo alegre

                    Me embalando deitado em minha rede.

 

                    Contemplo a natureza e faço versos

                    Escrevendo do quarto na parede;

                    Dos amores que tenho me recordo

                    Quando estou me embalando em minha rede.

 

                    Minha amante querida, oh minha bela!

                    Estes versos que escrevo agora lede:

                    Me lembrava de ti, de teus encantos

                    Me embalando sozinho em minha rede.

                   

                    Foste sempre  tão bela e tão constante!

                    Ouvi-me, caro bem: constante sede!

                    E teu nome será meu terno canto

                    Nestes versos que faço em minha rede.

 

                    O teu peito pra mim é mais que um trono,

                    Pois do ouro jamais nutri a sede:

                    Assim mesmo sem ti eu passo alegre

                    Me embalando deitado em minha rede.                           

                   

          Convém citar alguns mais, não tanto pelo que escreveram mas certamente pela atuação política e social. Seriam exemplos os deputados provinciais  Antônio Gentil de Sousa Mendes (1824 – 1892) e  Miguel de Sousa Borges Leal Carvalho Castelo Branco (1836 – 1887), e o contista Arquelau de Sousa Mendes (1872-1904), que foram também jornalistas, poetas, historiadores.      

São autores, a maioria, que não possuíam curso superior, às vezes nem estudo regular. Suas obras caracterizam nosso primeiro período literário,  com nítida preferência pela língua do povo e pela valorização da terra, de mistura com as manifestações e tendências românticas recebidas por via intelectual, através dos jovens estudiosos que, terminando seus cursos, voltavam para o torrão natal como médicos, advogados, professores e padres.     

Luísa Amélia de Queiroz Brandão (1838-1898), autora de Flores Incultas, 1875, e Georgina ou os Efeitos do Amor, 1893, numa linha bem intimista, construiu peças de bela feição: romântica, bem ritmada, obedecendo os cânones do que já se havia tornado clássico. Sua marca é o lirismo ‘exuberante e fluente’, especialmente nas últimas produções, tal como neste poema de “Georgina” (2º canto),  antologiado por João Pinheiro:

                   

                    Amor, mistério, divinal encanto,

                    Miragem, sonho, aspiração, querer!

                    Vulcão ardente a derramar incêndio,

                    Esfinge enorme de falaz poder!

                   

                    Tua existência que nas dores cevas,

                    Quem pode, aflito, denegar jamais,

                    Se ao pobre ao rico, se ao plebeu, ao nobre,

                    Se a todos lanças teus grilhões fatais!

 

                    Cercam-te trevas e mortais abismos,

                    E tu,  ó cego, nada  vês então!

                    Como verias, se te falta a um tempo

                    - Visão sublime – sensatez, razão?

                   

Aos pés fiando da mulher formosa,

                    Humilde e dócil qual humilde cão,

                    Vês um guerreiro que no ardor da luta

                    Não era homem mas audaz leão.

 

                    Essa rainha de imortal renome,                   

                    A bela Dido, - já não quer viver!

                    Mordeu-lhe o monstro que escarnece o cetro,

                    Que até a mitra quer também morder.

                   

                    Dirceu, o vate, no desterro expira,

                    Marília bela se devota à dor,

                    Camões  distante por Natércia geme,

                    Vítimas todos do perverso amor!

 

                    Menino alado, pueril criança!

                    Amor, engano, aspiração febril!

                    Armam-te o braço tão ferinas setas

                    Com que persegues corações aos mil!

   

                    És tudo e nada; és um demônio, um anjo,

                    Otelo em fúria, sorridente Orfeu !

                    Caminha! Avante! Quem te embarga o passo

                    Caminha, avante,  que o universo é teu!

 

Taumaturgo Sotero Vaz (1869 - 1921), poeta, magistrado, professor de literatura e sociologia, morando em Manaus, membro da Academia Amazonense de Letras, teve formação piauiense e por isto é patrono de uma das cadeiras da Academia Piauiense de Letras. Por sua participação na poesia de cunho mais ou menos popular, merece ser citado entre aqueles piauienses que, no final do século, produziram uma excelente poesia. Para exemplo, “Minha Madrinha” , colhida em João Pinheiro, que é  uma espécie de oração:

 

          Aqui na terra, desiludido,

          Tonto, perdido,

          Saio das cinzas deste vulcão,

          Para ouvir missa na capelinha,

          Lá, onde mora Minha Madrinha,

          Nossa Senhora da Conceição!

         

Ao pé do nicho branco e     enflorado,

          Ajoelhado,

          De olhos abertos, fitos no altar,

          Rezo baixinho... Santa alegria!

          Minha Madrinha! Ave Maria!

          Cheia de Graça! Graça sem par!

                   

                    Mãe de Jesus!  Flor do Carinho!

                    Secai os cardos do meu caminho!

                    Livrai-me do Ódio da Humanidade!

                    Da inveja torpe, da iniquidade

                    E da traição,

                    Que ora andam soltos e voejando,

                    Como de Corvos um negro bando,

                    Sob a amplidão!

                    Tende Piedade, doce  Rainha!

                    Minha Madrinha! Minha Madrinha!

                    Nossa Senhora da Conceição!

 

                    Olhai, ó Virgem, quantos tormentos

                    Sofrem os justos! Quantos lamentos

                    Soltos aos ventos!

                    Quanta miséria! Quanto pesar!

                    Cessai, ó Virgem, esta Agonia,

                    Minha Madrinha! Ave Maria!

                    Cheia de Graça! Graça sem par!

 

                    Lá nos Palácios o oiro e o incenso,

                    Risos e danças, um mundo imenso

                    De luz e pompas, sedas e aroma,

                    Lembrando os velhos tempos de Roma,

                    A era negra da perdição!

                    E fora, o pranto,  o frio, a fome...

                    Tudo o que é triste, fere e consome

                    Os pobres velhos e a criancinha!

                    Vinde por eles, Minha Madrinha!

                    Nossa Senhora da Conceição!

 

                    De olhos abertos fico rezando

                    Fora do mundo, junto do altar,

                    Vendo chegar

                    O doce bando

                    Das esperanças,

                    - Anjos formosos, meigas crianças,

                    Rubras centelhas      

                    Dos céus descidos para o Perdão!

                    E, como a Virgem tudo adivinha,

                    Ri-se bondosa, Salve Rainha!

                    Cheia de Graça! Minha Madrinha!

                    Nossa Senhora da Conceição!

 

 

Os autores já citados fizeram o nosso primeiro período literário: – a geração da literatura popular, de cunho próximo ao trovadoresco, mas com a variante dos poemas românticos em torno da libertação dos escravos e de outros motivos mais ou menos na linha de Castro Alves, Fagundes Varela, etc.etc.

Outros: - Lauro Pinheiro (1882-1919), Manoel Lopes Correia Lima (1858-1929), João Alfredo de Freitas (1862-1891), Anísio de Abreu (1868-1909), Focion Caldas (1869-1904), Leônidas B. Mariz e Sá (1867-1902), Joaquim Nogueira Paranaguá (1855-1926), Raimundo de Area Leão (1846-1904), Joaquim Ribeiro Gonçalves (1855-1919),  João José Pinheiro (1844-1901) - fariam parte duma  segunda geração romântica piauiense, se a classificação aqui se ativesse apenas à idade.

 

 

PROSADORES

 

 

Na prosa, Francisco Gil Castelo Branco (Ataliba, o Vaqueiro, 1878, romance  regionalista),  está praticamente sozinho. Mas os primeiros ensaios no gênero conto só apareceram com João Alfredo de Freitas (Contetos, 1883) e João Licino de Miranda Barbosa (Esmaltes, 1892)

 

          Francisco Gil Castelo Branco (1848 - 1891), diplomata, jornalista, Cônsul Geral do Brasil em Assunção, como prosador, embora morando longe do Piauí,  influenciaria as gerações seguintes. Começou romancista,  com A Pérola do Lodo, 1874, estilo folhetinesco, romântico,  em tom humorístico; depois publicou o conto Um Figurino,  no mesmo ano, ambos pelas páginas da revista “Lux”,  Rio de Janeiro. Pobreza não é Vício e Os Gansos Sociais, de 1884, comédias, ou seja, continuando a cultivar o bom humor, foram publicadas na “Gazeta Universal”. Contos a esmo,  1876, e Ataliba, o Vaqueiro  são publicados em folhetins do  “Diário de Notícias”, do Rio de Janeiro, em 1878. Depois dessas publicações, só em 1880 saem, numa edição conjunta, Ataliba, o Vaqueiro,  Hermione e Abelardo, A Mulher de Ouro, aos quais dá o nome de contos. Embora longos, eram assim chamadas as novelas (folhetins) românticos.

          Certamente Ataliba, o Vaqueiro  é a mais piauiense de suas obras. Além disto, trata do problema da grande seca de  1875 a 1877. É ele um antecipador do verdadeiro romance regionalista centrado na seca. Bastaria a apreciação de Franklin Távora para ter-se uma idéia de como repercutiu no Brasil essa obra: “Se neste país houvesse espírito literário, esta narrativa, com ser curta e sintética, andaria em todas as mãos. Em tão singelo e  pequeno quadro, ainda não vi pintura tão fiel.”

          Francisco Gil foi corajoso e pertinente em levar para a Corte, através da literatura, o problema da seca e a linguagem desta região, de forma inteligente e inteligível, melhor do que as tentativas anteriores de  José do Patrocínio e Araripe Júnior.

         

No extremo da província do Ceará, em terras do Piauí, para as bandas de Marvão, passou-se esta cena.

Em linda tarde de um dos últimos dias do mês de setembro do ano próximo findo, Terezinha estava assentada em uma laje, à beira de um riacho cristalino, que coleava por um leito de areias e pedregulhos. Uma grande cabaça e uma rodilha de fibras de palmeira estavam a seu lado, indicando que viera à fonte buscar água.

          Terezinha era uma morena sedutora. As suas formas, delineando-se em modesta saia de chita, e os seios arfando sob a alva camisa orlada de rendas, ofereciam à escultura um modelo de perfeições. As tranças espessas, escuras e lustrosas como fios negros de seda, desciam-lhe até a cintura de ninfa, as suas mãos de criança, conquanto algo estragadas pelo trabalho, valiam um tesouro de rainha; os seus pés de fada perdiam-se em um chinelozinho de capoeiro;   os seus olhos rasgados, brilhantes, transluziam as paixões que, dir-se-ia, dormiam ainda nessa alma inocente.

Uma rosa silvestre entre as madeixas e um rosário de contas brancas, trazendo pendente uma cruzinha de ouro, eram os únicos enfeites que ornavam esta beleza peregrina.

          As filhas do sertão são como as suas flores campesinas;  a arte não lhes realça o valor; desabrocham e fenecem ignoradas;  mas a sua singeleza arrebata; os seus perfumes embriagam, os seus matizes deslumbram!

          Ai daquele que as viu!   Jamais as pode esquecer!

          São tão lindas, tão mimosas as flores dessas campinas e as filhas desses sertões!

          Assim era Terezinha.

          O sol ocultava-se, e o horizonte resplandecente de nuvens nacaradas atraía a atenção da donzela enlevada. Todavia, de quando em quando, ela abaixava do céu a sua vista e fitava o último ponto da estrada, inquirindo com inquietação do aparecimento de alguém.

          Um suspiro exprimia o seu desengano, e a sua voz maviosa levava as ânsias do coração nestes versículos, entoados com acento sentimental:

                                       São vivas a cores

                                       das belas flores

                                       do meu sertão!

                                       São vivas as dores

                                       dos teus amores,

                                       meu coração!

 

                    O dia some-se: a noite cai,

                    cobrindo os campos d’escuridão...

          Tudo o repouso buscando vai...

          Só tu palpitas, meu coração!

 

                              São vivas as cores

                              das belas flores

                              do meu sertão!

                              São vivas as dores

                              dos teus amores,

                              meu coração!

 

          Bravia arara, buscando o ninho,

          Dos seus palmares gritando vem;

          Dize-me, ó pássaro, pelo caminho

          Viste, passando, meu caro bem ?

 

.....................................................................

 

Um leve barulho fez Terezinha estremecer e, volvendo-se para ali o semblante, deparou com Ataliba.

Ataliba era moço, tinha a figura atlética e a fisionomia cheia de franqueza.

O seu trajar caprichoso indicava desde logo que era um vaqueiro e enamorado.

Com efeito, as suas perneiras, o seu guarda-peito, o seu gibão e o seu chapéu com trancelim e borlas de fios de cor eram de finas peles de bezerro, lavradas com esmero por hábeis mãos de mestre. Um maço de cordas de couro adunco, dobrado em vários círculos, passava-lhe do pescoço por sob o braço esquerdo: era a sua faixa de honra, era o famoso laço com que prendia a rês rebelde à porteira do curral ou necessitada de algum cuidado.

O bacamarte também lhe vinha a tiracolo e via-se-lhe à cintura uma larga faca de cabo de prata metida na bainha.

A arma de fogo e a lâmina de aço são companheiras inseparáveis do sertanejo;  são os seus instrumentos de trabalho, de combate e de vingança!  Durante o dia, percorrendo as pastagens, com a pólvora ele derruba a caça, à noite fere a onça – atocaia – o inimigo poderoso. Com o ferro prepara os artefatos próprios da sua profissão, ou deslinda em duelo terrível as contendas de momento.

São naturezas especiais as dos homens desses ermos longínquos; implacáveis no ódio, extremados no amor, fiéis à gratidão, morrem onde se prendem, como as lianas que se adunam às vetustas árvores das suas florestas.

Não se dobram aos meneios dos interesses, mas estalam fendidos pelas paixões, como os jatobás, que não se curvam ao sopro das ventanias e caem por terra em estilhaços, partidos pelo raio. Não recuam perante o perigo; tremem, entretanto, ouvindo história de duendes!

Empunhando a aguilhada, longa e rija vara com uma ponta de ferro aguçada e enrolada em correias, que se denomina por isso -  vara de ferrão, Ataliba, firmando-a na laje, nela apoiava o corpo reclinado e em êxtase contemplava Terezinha. Os seus olhos de carbúnculo chamejavam; um ar de ventura animava o seu rosto acaboclado e o seu porte esbelto, em harmonia com o seu vestuário, dava-lhe o aspecto de magnífica estátua fundida em bronze.

Preso com embiras, estava a seus pés um veadinho.

- Pensei que não vinha hoje! – disse-lhe Terezinha, em tom falsete de alegria, dissimulando uma censura.

 

João Alfredo de Freitas (1862 – 1892), magistrado, professor, contista e folclorista. Teve iniciação científica, chegando a escrever sobre as formigas. Obras publicadas: Contetos, 1883, e  Lendas e Superstições do Norte, 1884. Deixou inéditos: Fetichismo Religioso e Político, Uma Excursão pelos Domínios da Entomologia e Escorços de Etologia Entômica.

 

          João Licino de Miranda Barbosa (1870 – 1899). Bacharelou-se em ciências jurídicas, na Faculdade de Recife, 1896. Foi juiz no Maranhão e no Amazonas. Colaborou em diversos jornais. Ainda estudante de direito, escreveu e organizou  Esmaltes, coleção de escritos que denominou de contos,  livro que deixou inédito. João Pinheiro diz que um dos mais belos capítulos é “História Triste de um Canarinho Alegre” e o transcreve. Como se trata de uma peça longa, destaca-se aqui apenas o suficiente para sentir a sua escrita, que até não era ruim, considerando ser as primeiras experiências de um jovem:

 

          Inda vacilante e medroso, o canarinho pardo, num vôo muito débil de pássaro ligeiramente emplumado, bateu as suas asitas pardacentas e lá se foi a fender o ar erradiamente, nuns ziguezagues ligeiros té que, estafado poisou medrosamente na moita de pilriteiros que fica na aléia esquerda do jardim florido, espaçoso e nobre, da pitoresca vivenda do conselheiro Arruda.

A criançada traquinas, muito viva e esperta que era, ruidosamente a brincar, viu-o pousar, e toda pressurosa ei-la a correr alegre numa expansão a ver se o apanhava; o canarinho pardo, assustadiço, piou e às tontas, com o alarido das crianças, ergueu a cabecinha ainda implume, bateu as asitas e dúbio, sem inteiramente saber livrar-se, voou atoamente e foi cair uns dez metros adiante, no canteiro de lírios, entre as violetas perfumosas; a criançada atenta viu-o e pressurosa pôde então apanhá-lo! O canarinho pardo piava, piava muito, e o bando gentil de crianças, todo orgulhoso e alegre, levou-o ao vovô, o velho conselheiro, contando com prazer e repleto de orgulho o trabalho que lhes havia dado o apanhar o canarinho pardo.

          O bom do conselheiro ficou penalizado em vendo o passarito piando sem cessar, chamando, talvez, os seu paisitos louros e, então, aos netinhos seus, em tom suave e manso, aconselhou soltá-lo: deixem a avezita buscar um ninho amigo, a casa de seus pais!

          Mas qual!  A criançada heróica, vencedora, não quis, não aceitou o conselho a ela dado, toda prazenteira, num alarido de pizicatos,  lá se foi a gritar chamando por Titi, a deles mais amiga, Isaurinha, a filha querida do velho conselheiro;  a ela a criançada ufana, mui contente deu o passarito, recomendando muito: Titi, é p’ra você, mas você trata dele p’ra quando ele for grande cantar p’ra nós ouvir.

          Disseram ao conselheiro ter dado a Isaurinha o canarinho pardo, e a rir festivamente, voltaram prazenteiros, de novo, p’ro jardim.                  

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

ÍNDICE DE TÓPICOS

  SUMÁRIO Prefácio     TEORIA     O que é literatura,  Literatura piauiense,  Literatura e história literária,  Momentos determinantes...