MODERNISMO
Os
princípios renovadores da Semana de Arte Moderna surgiram com bastante atraso,
no território piauiense. Entretanto, não é possível esquecer que, já no final
dos anos 30, um poeta de origem parnasiana,
Antônio Veras de Holanda, tentou praticar o verso livre. Está ele entre
as primeiras tentativas de abandonar o velho e seguir o novo. Embora com atraso, ele procurou alcançá-lo e
quase o conseguiu plenamente. É o
precursor do nosso tímido modernismo, segundo Bugyja Brito.
Também o poeta José
Severiano da Costa Andrade, mais conhecido como Costa Andrade, fez poesia
moderna. Entretanto, seu raio de ação e de influência era bastante limitado,
por residir no interior, não chegando a influenciar a intelectualidade de
Teresina, a capital do estado.
Martins Napoleão (Copa de Ébano, 1927) enriquece aquele período quase vazio já referido e entra
com sua produção pelos anos 40 e 50. Foi ele, sem dúvida, um grande poeta. Mas
não é o principal representante do modernismo, pois sua estética era mesclada de tardio
simbolismo e seu espírito, mais sincrético do que moderno, mais clássico do que
popular. Precisa ser bem estudado na sua forma pessoal de expressão e no que
possa ter influído na cultura da nossa terra, posto que vivia muito mais lá (no
Sul) do que aqui.
Introdutor
do modernismo no Piauí, embora tardiamente, foi o jovem José Newton de Freitas.
Deslumbrado, seu livro que seria de
estréia, totalmente nos moldes do movimento de 22, saiu em 1940, só que o poeta
morreria no mesmo ano, antes de ver a publicação. Mas seus poemas nos dão a certeza de ter
absorvido o verso moderno, as técnicas e a filosofia do modernismo, embora
vivendo a maior parte de seus dias na província. Simples e emotivo, seu discurso é direto e
comunicador, e possui uma vibração
sincera e firme.
Renato
Castelo Branco é o ficcionista desse período - os anos 40 - com o bem logrado romance Teodoro Bicanca, 1948. Sua imensa obra prolonga-se até os nossos
dias, sempre crescendo em quantidade e qualidade, além de ter sido historiador
e estudioso da sociologia e da economia do Piauí. Mas sua importância maior
para a história da literatura do Piauí é ser o primeiro prosador moderno, trazendo
já um sabor de regionalismo, em cujo aspecto, depois Fontes Ibiapina se
tornaria mestre.
POESIA MODERNA
Antônio Veras de Holanda (1903 –1942) era militar (3º
Sargento do Exército) e também professor e jornalista. Embora tendo nascido em
Caxias, viveu em Teresina e Floriano, na última cidade durante 11 anos, abrindo
um colégio para lecionar português. Compôs o Cenáculo Piauiense Letras, cadeira
nº7, tendo como patrono o acadêmico Pedro Borges da Silva. Deixou três livros de poemas inéditos: Sombras Noturnas, Suplício e Redenção e
Trinta e Dois (poema da fome).
Participou dos seguintes: Antologia de
Sonetos Piauienses, de Félix Aires, e de Caminheiros da Sensibilidade, de J. Miguel de Matos. Era sonetista
exemplar. Leia-se O Boi de Carro:
À noite,
à luz da lua, à porta da vivenda,
Sobre o frio lençol de um areal tristonho,
Deitado a ruminar, sem que ninguém o entenda,
Vê-se um pobre animal, triste, quieto e bisonho.
É um velho boi de carro. Um lutador, suponho,
Que depois de vencer contenda por contenda,
Ali tombou vencido, a divagar um sonho,
Piedoso a contemplar o curral da fazenda...
Já não dá mais serviço. É um velho boi cansado,
Que as tacadas em cruz, as cangas e o labor
Deixaram-no por terra, ao luar, desprezado.
Este boi me faz ver as misérias da vida:
Depois de lutas mil, é sempre o lutador
Julgado coisa vã, no abandono, esquecido...
Segundo depoimento
de Bugyja Britto, “Veras de Holanda tentou
fazer poesias diferentes dos padrões clássicos”, e, mesmo discordando das experiências do amigo,
recolheu algumas dessas produções. “Reflexões de uma noite” é exemplo do seu
talento e do esforço de trazer para o Piauí a técnica do verso livre:
Eu me lembro de todos os mortos conhecidos
E qual o conhecido que
lembrará de mim, quando
eu
estiver morto?
Sobre o meu túmulo
Quem acenderá uma vela ou
depositará uma flor?
Serás tu, companheira de
todas as horas?
Ou qual de vós, minhas irmãs?
Junto ao meu túmulo,
Enchendo o espaço de
sorrisos claros,
Eu sei que passarão
alegremente
As crianças mais lindas
E
as mulheres mais belas...
À borda do meu túmulo,
De ervas talvez coberto,
Os pássaros mais felizes
Soltarão os mais ternos
gorjeios...
E eu morto, e eu suplantado
pelo inevitável,
Serei um eterno esquecido...
O homem que tombou na voragem do nada
Como um lampejo de luz no
abismo do oceano...
Poetas do amanhã,
Poetas que hão de surgir
para a glória
das gerações
futuras;
Lembrai-vos de mim,
Afastai do meu túmulo o
anonimato da morte!
Sem dúvida seu verso
é solto, modernizado. Mas o poema, embora cheio de sentimento, ainda não possui
suporte notável na imagem, por isto se vale da súplica. É compreensível para
sua época e para os poetas afeitos aos padrões tradicionais. Veras de Holanda
tentou renovar e renovou, de fato, o verso, dentro de suas possibilidades
físicas e espirituais.
Costa Andrade (1906 – 1974) – José
Severiano da Costa Andrade nasceu
“De longe é hostiário suspenso
do templo azul, claro, imenso
do infinito
O pileque da carnaubeira
é uma bandeira,
quebra-luz do sol a pino;
e o planto,
esgalgo, fino,
é esbelto equilibrista
- pés poisados nas margens dos ribeiros
e lagos brasileiros –
com um disco plúmbeo na crista.
Nestas palmas recortadas
e espalmadas
ao vento
com exóticas pantalhas,
- na pobreza dessas palhas,
quanta esplêndida riqueza
dadivosa natureza
encerra,
para a glória da terra,
de que se tira a cera
e faz a vela
que ilumina o pobre;
e a palha com que se cobre
o lar e tece esteira,
redes, cofos, abanos e chapéus!
- “Copernica cerífera”,
bênção do céu e planta aurífera,
eu te amo!
Eu te amo!
E te proclamo
raínha das palmeiras
brasileiras!
José Newton de Freitas (1920 – 1940), nasceu no dia
21 de novembro, em Piripiri e faleceu no dia 8 de fevereiro,
Foi o próprio
prefaciador, poeta Celso Pinheiro, quem escolheu, com muito bom faro, o poema
“Natal”, como mostra, no prefácio:
Senhor!
No teu Natal tanta ventura,
tantos
sorrisos, tantas esperanças,
e eu
cansado e sozinho,
sentindo
tanta mágoa
Senhor,
no teu Natal tanta alegria,
e eu
sem fé, sem vontade de viver ?
Ah!
Meus dez anos de ilusão tão bons,
o
tempo em que eu beijava a borda dos presepes
e
sorria feliz, contemplando os pastores!
Senhor!
No teu Natal tanta ventura
e eu pensando
em saudade e eu sentindo amargura!
É um grande poema,
com a medida e o ritmo já completamente moderno,
à feição da poesia dos revolucionários de 22.
José Newton de Freitas foi o verdadeiro introdutor do Modernismo no
Piauí, não obstante sua tão pouca vida e,
em consequência, a escassa obra. Mas sabe-se que vinha publicando nos
jornais sua poesia e seu fazer literário, seus princípios estéticos.
Disse um certo
crítico que a biografia de um poeta começa com o seu primeiro poema. É preciso,
então, conhecer o poema que abre o livro Deslumbrado,
cujo título tão simples é “Belo Exemplo”, supondo-se que seja um dos primeiros aprovados pela autocrítica do poeta:
Olho a serra apontando para o céu
com
os braços grandes dos seus picos,
com
os dedos verdes das suas árvores.
Mas
bem que ela não esquece os humildes,
nem o
chão, nem as pedras que jazem a seus pés.
E
pelo abismo, vinda das alturas,
como
se fosse um véu de rendas,
como
se fosse prata liquefeita,
salta
a linda cascata,
borbulhando
eternal.
Ouço. A água geme entre as pedras lodosas,
canta e murmura, ou será que soluça?
Esse barulho de água
beijando os penhascos
deve
ser um poema de amor.
que
a serra sabe de cor para dizer ao chão...
Bendito o Deus poeta que te
fez, cascata!
Bendita a Natureza onde
palpitam sonhos,
sonhos de amor, belezas,
ilusões,
em todos os recantos, até
nos abismos!
Cascata,
és um sonho líquido e sublime.
De dia o sol se veste de
ouro para contemplar-te,
de noite a lua e as estrelas
te namoram sorrindo.
Tu vens do coração profundo
das montanhas
e és um beijo eterno da nobreza
da serra
à
humanidade chã das campinas sem glória.
Quando os homens passarem a
teus pés,
Quando os homens te
contemplarem,
os deslumbrados e os indiferentes,
ensina a eles o teu exemplo
de fraternidade,
mostra-lhes a tua lição,
cascata!
Patrono da cadeira
39, da Academia Piauiense de Letras, que tem como primeiro ocupante Celso
Barros, o poeta José Newton de Freitas,
mais que sua biografia, conta a seu favor a obra deixada e divulgada pela
família através de uma segunda edição. Deveria ser mais conhecido das novas
gerações, não só pela introdução do verdadeiro verso moderno no Piauí, mas
também pela ternura e doce poesia que ofereceu, não obstante cantar sofrimento,
angústia e dor.
FICÇÃO MODERNA
Permínio Asfora (1913 - 2001), nasceu em Valença
do Piaui e faleceu no Rio de Janeiro. Romancista “da linha socialista”. No estilo, alinha-se ao romance regional do
Nordeste. Estreou com Sapé, Editora
Guaíra, Curitiba, 1940, obra apreendida pela ditadura getuliana. Por causa de
sua ideologia, suas obras foram pouco reeditadas e obstaculizadas na
distribuição. Depois de Sapé, publicaria Noite Grande, 1947; Fogo Verde, 1951; Vento Nordeste, 1957 - romance comentado por Álvaro Lins, de forma
positiva, mas sem deixar de anotar seu viés socialista; O Amigo Lourenço, 1962; Bloqueio,
1972, e O Eminente Senador, 1973.
Importantes intelectuais e escritores como Raquel de Queiroz, Gilberto Freyre e
Guimarães Rosas, colocam Asfora entre os principais escritores brasileiros do
ciclo regional nordestino.
Anita largou no sofá o romance que estava
lendo e correu à porta para ver quem batita. Era um tropeiro que chegara de
Fortaleza trazendo notícias de Marta. Ao ouvir falar na irmã, Anita ofereceu a
sala:
- Entre pra descansar, seu Nequinho.
Não podia não, disse ele. Tinha muito
que fazer, ainda nem tirara a carga dos animais.
- Mandou avisar a vosmicê que não tem
dia nem hora pra conhecer o Rio de Janeiro- repetiu mais uma vez.
- E cartas? – indagou ansiosa a moça.
- Só me disse mesmo isto – respondeu
apertando o cinto largo a fim de suspender o facão. Com o lenço encardido
enxugou o suor do rosto vermelho, pintado de sarda. Teria no máximo quarenta
anos, era um magro bem chocho. Pelos olhos acesos Anita revelava inquietação.
- Mas Marta vai fazer um viajão desse
sem pedir consentimento a papai nem a mamãe? – a voz baixa era menos pergunta
que censura.
Apertando os olhos miúdos e azulados
contra o sol,o homem descansou no banco do copiar o pé de dedos espalhados:
- Tou canso de ver dizer que gente do
mato depois que chega na praça não enxerga matuto. Pois siá dona Marta faz um
bocado de tempo que anda lá pela Fortaleza e foi me vendo foi me conhecendo.
Numa rápida volta, Anita apanhou os
dois patacões no consolo.O arrieiro levantou o chapéu de aba larga.
- Precisava desse trabalho não, siá
dona moça – falou descendo a calçada e se esforçando para enfiar as pratas no
bolso da calça azul remendada.
Anita esteve prestes a lembrar que sem
afrouxar o cinto o cabo do facão não daria passagem a abertura do bolso. Mas lá
se foi Nequinho no seu aperreio. Anita voltou ao sofá e novamente abriu o livro
para continuar uma história que agora lhe parecia falsa e sem interessse. No
velho relógio da parede os ponteiros fechavam-se e doze pancadas fanhosas, quase
sem intervalo, encheram o casarão. Os pais não chegavam mais da missa! Anita
mesma fizera o almoço, e, embora faminta, preferia esperá-los. Que ocorrera à
irmã para se decidir a viajar ao Rio, justamente quando se pensava estivesse
sonhando com o dia de voltar? Há quatro
meses Marta se fora aos prantos para Fortaleza. Naturalmente a cidade lhe
virava a cabeça.
Pela janela caiada de novo, Anita
contempla um pedaço de céu azul, farrapos de nuvens se espalham pelo norte.
Espelhando nas folhas verdes defronte, o sol desce ao muro coberto de hera,onde
canta uma cigarra. É uma música que não enlanguece, a da cigarra, porque
entrecortada pelo trinar dos canários do alpendre. Anita gostava de ler à
noite, mas de um mês para cá aproveitava a manhã dos domingos, e, na hora da
missa, grudava-se aos novos livros que lhe vieram de Oeiras. Teve muito que
argumentar contra o coronel Luís Romão até convencê-lo de que aos domingos
sentia preguiça de acordar cedo para ir rezar. Enquanto vivesse na dependência
do pai haveria aquela obrigação de prestar conta de tudo. Aliás, não podia
negar-lhe certa evolução: antigamente bastava o coronel vê-la folheando um
livro para querer botar a casa abaixo. Nos últimos dias Anita vinha se
interessando por
Aluízio
de Azevedo. Andava pelos primeiros capítulos, mas já se enchera de pena pelo
destino do pequeno André. Se conhecesse o autor perguntaria de o “Coruja” era
de verdade: há tanta gente enjeitada! A irmã se preparava para viajar. Era
capaz de, na volta do Rio, querer ficar de vez na casa da tia em Fortaleza, não
querer mais saber de Valença. Sob o calor ardente, Anita desabotoa a pressão do
robe creme de extensas flores cor de vinagre, transformando o ligeiro decote
numa abertura longa que deixava aparecer os pequenos seios. O cabelo farto e castanho, enrolado sem
cuidado no alto da cabeça, tinha sido
preso desde a noite passada por uma larga fita branca de gorgurão. No lado
esquerdo do rosto moreno e oval aparecia a marca dos botõezinhos do
travesseiro. Já fora advertida de que não devia ler deitada, mas nem por isto
virava uma página sem estar espichada na rede ou no sofá de palhinha. Fixou os
ponteiros que outra vez se dividiam, levantou-se e ficou a se mirar no espelho
grande de douradas ramagens. Puxara à mãe naqueles olhos rasgados, nos lábios
estreitos e escuros que guardavam dentes largos e certos. A temperatura
queimava-lhe as faces de penugens quase imperceptíveis. De adorno, só usava
mesmo o trancelim e a medalhinha – promessa de d.Catarina a Nossa Senhora do
Perpétuo Socorro quando Anita gatinhava.
(Cap.1, pg. 11/13, de Fogo Verde,
Ed. Scortecci, S. Paulo, 2003).
Renato Castelo Branco (1914 – 1996)
nasceu em Parnaíba e faleceu
De Monteiro Lobato a
Josué Montelo, Renato Castelo Branco só
amealhou elogios. Assim foi que Teodoro
Bicanca, 1948, conseguiu o
prêmio do Clube do Livro e foi
distinguido e selecionado pelo Circulo Literário do Brasil.
Realismo, observação local, personagens psicologicamente coerentes, além da
linguagem correta, elegante, em ritmo de bom agrado, eis as características dessa obra.
Outras livros: A Civilização do Couro, 1942,
O Piauí, a Terra, O Homem e o Meio, 1970, e Pré-História
Brasileira - Fatos e Lendas, 1971, são alguns dos seus ensaios; os principais romances são, além de Teodoro Bicanca, já mencionado, A Conquista dos Sertões de Dentro,
1983, Rio da Liberdade, 1982, Senhores e Escravos, 1984, O Rio
Mágico, 1987, A Ilha Encantada, 1992. Mas, na poesia,
também foi importante a sua contribuição:
Os Sertões (poema baseado na
obra de Euclides da Cunha), 1943; Candango, Gagarin, Blaiberg e Outros
Poemas, 1968; A Janela do Céu, 1969; Amor e
Angústia, 1986; O Anti-Cristo, 1987.
Falando
sobre a vida e a obra de Renato Castelo Branco, Assis Brasil conceitua sua
poesia assim: “Embora o feijão possa ter
sido a parte do leão na vida de R.C.B., o fato é que ele construiu a sua obra
literária, escreveu seus livros de poemas, uma poesia atuante, forte, de sabor
universal, sem descurar os valores telúricos e regionais, líricos e
emblemáticos.”
Nelson Werneck
Sodré, põe ênfase na simplicidade do seu estilo e resume: “Forma superior e difícil”.
Renato Castelo
Branco é, assim, o introdutor da ficção moderna, na literatura piauiense.
Veja-se um trecho de
Teodoro Bicanca:
Pairava sobre a fazenda um ar de miséria e de morte,
quando Crispim, Damião e Teodoro chegaram à casa de telha. Nas palhoças por
onde passavam, plantadas à beira da estrada, os moradores escondiam-se dentro
de casa, quando viam, ao longe, aproximarem-se
os flagelados. A seca levara sua testada candente até os barrancos do Parnaíba.
Também ela fora beber a água do rio poderoso, com os retirantes do Ceará. E as
águas haviam baixado, matando a sede da seca, aflorando cômoros enormes do seu
leito. A navegação tornara-se difícil, as barcas encalhando, os vareiros gemendo
nas pontas das varas. A população ribeirinha perdera tudo do pouco que tinha. A
colheita dos roçados havia se perdido inteiramente. A criação morrera sem pasto.
E os retirantes tornaram a miséria ainda mais aguda, enchendo as estradas,
morrendo de fome sob as árvores desfolhadas. Os caboclos da região fechavam as
portas com medo dos amigos de outros tempos, com medo de sua
visão angustiante, com pena de não terem o que lhes dar.
Só a cera proporcionava alguma coisa
naquela quadra causticante – maior era o calor,
maior era a produção dos carnaubais. Mas os carnaubais eram do coronel,
a cera era do coronel, não matava a fome dos agregados. Na casa de telha, enorme,
cercada de alpendres por todos os lados, o coronel Damasceno pesava as sacas de
pó, macio como uma seda, e ia mandando para o armazém, para derreter nos grandes tachos ardentes. Os
caboclos vinham chegando, suados, e o coronel Damasceno ia escrevendo em seu
livro de notas:
- Antônio Ferreira, 5 sacas... Bento, 4 sacas... pesa essa cera, Malaquias! Nonato, 3 sacas... muito pouco este ano, seu
Nonato...
E antes que o Nonato pudesse justificar, já o
coronel estava dando novas ordens:
- Seu Malaquias, vá mandando esta cera
pro armazém, pra derreter!
Damião aproximou-se do coronel, acompanhado
de Crispim:
- Deus esteja com vosmicê, seu coronel!
Damasceno parou o serviço, coçou a
cabeça, olhou o grupo com piedade e irritação. Dezenas, centenas de flagelados
já tinham vindo bater à sua porta. Damasceno não sabia mais o que fazer. Não
tinha coragem de tocá-los naquele estado. E, mesmo que tivesse, sua mulher se oporia. Mas ele não podia
também encher a fazenda de famintos. Aquilo era um nunca acabar. Mandara
improvisar um enorme rancho, longe da casa de telha, coberto de palha e sem
paredes, onde permitia que pousassem alguns dias, os mais enfraquecidos. Só que não podia lhes dar alimento. Eles que
se arranjassem. E justificava-se:
- Cada um cuide de si, que Deus
cuidará de todos...
CRÔNICAS
Martins Napoleão (1903 -1981) – Poeta e
prosador dos mais importantes da literatura do Piauí. Não é necessário repetir
os demais dados, pois já está biografado na geração
do Cenáculo Piauiense de Letras e antologiado como poeta. Ele
cobre três gerações de escritores, não somente
como poeta, mas também como prosador, embora não tenha sido propriamente um
ficcionista. Agora cabe mostrá-lo em outra faceta, transcrevendo, do “Guia de
Teresina”, editado por Edilberto Martins, em
1959, “O Sítio – Casa Grande de
Meus Avós”:
As terras do “Sítio” onde vivi até aos
quatro anos, hoje pertencentes a meus primos Martins Castelo Branco, ficam à margem do Parnaíba, à mesma distância de
seis léguas entre Teresina e União, e estendem-se Piauí adentro, ligando-se às
do Centro, lavradas outrora pelos escravos de meu bisavô Antônio Martins Viana,
que ali mantinha a senzala, a pouco mais de três quilômetros da casa-grande.
O casarão patriarcal (e foi ali que
nasci em 17 de março de 1903), térreo e de sólidas paredes que têm bravamente
resistido às vicissitudes do tempo e às
enchentes do Parnaíba, cujas águas,nos invernos de 24 e 26, chegaram a lamber-lhe
as calçadas de pedra, foi construído
exatamente na divisa dos dois municípios, confinantes no oitão da velha
saboaria e prensa de algodão, já em ruína, quando as conheci.
Restava, nos meus dias de criança, a
habitação principal intacta. Muitos e espaçosos cômodos a compunham, inclusive
os quartos do “puchado” que se alongava pela estrada lateral – o caminho do rio
– e onde, ainda mesmo muitos anos quenos retiramos em 1907, continuaram morando
descendentes de escravos, mucamas e crias, arraigados efetivamente aos domínios
dos senhores desaparecidos. Ali ficou, quase solitária até sua morte em 1920,
como obsessivo fantasma dos tempos idos, a minha ama Genoveva, a Nunu, como a
chamávamos eu e meu irmão Artur – a Genu de minha mãe e de minha avó Carlota,
amiga fiel e companheira de ambas, e uma das minhas primeiras grandes afeições.
Àquela época, não havia mais cercas no
vasto quintal antigo, onde poucas árvores, a não ser nativas, denunciavam a falta de trato de outros
tempos, quando ainda vivo meu bisavô. Lembro-me apenas da laranjeira meio
carcomida e derreada do saguão, ao fim da varanda, onde se dizia haver
dinheiro enterrado, e dos algodoeiros
junto ao poço em que, certa vez, caíra o liberto Silvestre, a custo retirado
com vida.
O mato já tomara conta de tudo, à
excessão do páteo de vassourinhas, que se alargava até ao tamarindeiro grande e
frondoso, em frente da casa – o ponto mais distante a que me aventurava. Limpa
e longa era apenas a estrada que ia ter ao porto fluvial, toda ela marginada de
cajueiros anosos, cujas folhas,
manchando o chão de sombras movediças, dançavam no estirão de areal
pelas noites de lua, e eu, entre medo e encanto, espreitava da janela da sala
de jantar, como se fossem misteriosas coisas animadas.
O nosso mundo era mesmo a casa-grande,
com o seu piso de tijolos quebrados: a varanda, onde havia imensas arcas de cedro
para guardar cereais – reminiscências da fartura passada; o comprido salão, num dos ângulos do qual se
conservavam o escritório de grades de madeira de meu bisavô e uma mesa de
guarda-livros; a sala de jantar com a mesa enorme e pesada, ao redor da qual os lugares foram, pouco a pouco, vagando; os quartos
amplos, dormitórios da família, e aquele, bem menor, onde vivia a Nunu,
tresandando sempre a “sebo de Holanda”, a sarro de cachimbo e a mofo, com o seu
baú de couro e pregaria encostado à parede.
As saídas para mim eram poucas: um ou
outro banho de rio e pequenas vadiagens pelo pátio, sob a vigilãncia de minha Mãe
e os cuidados da ama.
Dali saímos em 1907, de muda para
União, depois que meu irmão mais velhos embarcou para o Recife, a cursar a
Faculdade de Direito, Recife que me sulcou a memória com a notícia da morte de
meu padrinho Raul – último filho varão de minha Avó, que perdera tio Carlos,
ainda pequeno, e tio Agenor, estudante do Liceu de Teresina, com dezesseis
anos, afogado na curva da Boa Vista.
Só em 1919, durante rápida estadia no
Piauí, é que revi aquelas doces paragens do “Sítio”, tão profundamente aderidas
à minha primeira infância. E assim mesmo, por uma tarde de cansaço e uma noite
cortada a meio para a viagem a cavalo
até Teresina, de regresso a Belém.
Só restavam de vivos então, embora
fossem, na aparência, evocações defuntas da minha meninice, como últimos
habitantes da mansão rual em abandono, a
velha Nunu, sardenta e reumática, e a Elisa, mulata liberta, casada com o José
Carateús, que se fora de uma vez para as bandas do Ceará. E a filha de Maria
Félix, mulher do mal encarado e barbudo Chico Félix, vindo do estado vizinho na
seca de77 – a bela Maricô, inutilmente cobiçada pelos meus olhares de
adolescente tímido, que escrevia versos e tinha amores impossíveis. Ali apareceu, logo que chegamos, para pilar o
arroz de jantar. Pele trigueira, ancas
largas e seios fartos balouçando ao
ritmo da mão-de-pilão, deitava à mostra, para a tentação da minha
inexperiência, as coxas roliças e morenas.
O mais são recordações. Pessoas que se
transformaram em personagens do meu intenso mundo interior; coisas que se
fixaram, como entes vivos, à fauna e à flora da minha natureza subjacente. O
vaqueiro Elesbão, que servira a meu avô João Martins e era da confiança de
minha avó; “tia” Chica, cega que nhos conhecia a todos pela voz, nos chamava
pelos apelidos e continuava morando no “Sítio”, mesmo depois da libertação dos
escravos, como,aliás, quase todos, e vivia para perpetuar, em histórias evocativas,
a amizade dos “senhores”; “compadre” Sabino, que matou uma onça por engano,
pensando que se tratasse de um veado, e pagou em cólicas de susto e suores frios,
ao descer da “espera”, diante da pintada morta, a sua bravura inconsciente; o
Gaudêncio, que veio morrer em nossa casa
de União, aos 104 anos; o Verano, dado às pingas e morador do “Centro”; o
Sérigo, que tinha um defeito no pé e creio fosse bastardo de meu tio do mesmo
nome; e “Mãezinha” – minha avó materna, que ali sepultou a sua viuvez inconsolável
e a dor de perder meu tio Raul, que contraiu a varíola no primeiro ano de
Direito, até que meus pais conseguiram levá-la para a sua companhia em União...
Recordações sobre recordações: o outro
mundo da memória, com a sua luz coada e baça, o outro lado da vida, com a
presença do passado.
E, inapagável no quadro esbatido
dessas saudades, no sofá da mobília
austríaca do salão, o caixãozinho com o corpo de meu irmão Luiz, vítima de
sarampo e crupe, gordo e bonito como fora em vida, pronto para a última viagem,
rio abaixo até União, onde o sepultaram bem junto às covas de José e do
primeiro Valdemar.
Foi ali, naquela casa-grande encravada
no latifúndio de benignos senhores de escravos, que adocei minha índole no
trato de negros bons, e me prendi ao amor
da terra e do rio – da terra que troquei em vão por tantas outras, e do rio que passou a correr nos
confins da minha lembrança para desaguar, tantas vezes, nos meus olhos.
Rio,
junho de 1958.
Berilo Neves (1901 – 1974) – Nasceu em
Parnaíba – PI e faleceu no Rio de Janeiro. Já foi biogafado na geração anterior, do Cenáculo
Piauiense de Letras, portanto, não há necessidade de mais dados
bigráficos idendificadores.
O texto a seguir foi colhido no Guia
de Teresina, editada por Edilberto Martins, em 1959, com o título de
“Imagem de Teresina”, tem característica de crônica.
Conheci Teresina na minha juventude, e sempre lhe
conservo a imagem na retina da alma. Vi-a com suas ladeiras, suas velhas
igrejas, e o rio Poti, escoando suavemente, sem quedas, nem tropeços.
Conservo, na
memória auditiva, o ronco de seus trovões: julgo ser o mais forte do
mundo. Outrora chamavam-lhe “Chapada do Corisco”, precisamente por ser atreita
a essas cóleras da Natureza, que a ciência da eletricidade reduz a simples
encontros de forças físicas antinômicas... Mas esses trovões famosos parecem ter
uma virtude essencial: fazem mais forte a alma do povo sobre o qual desabam.
Entre a “Chapada do Corisco” de ontem e a Teresina de hoje, há um abismo. A
cidade atual,dizem-me que é linda e atraente.Produz belas moças: ora, essa
indústria, ou produção natural, ainda é a mais fascinante de todas... Teresina
possui o mais completo Hospital de todo o Norte. O sentido social dos
governantes fê-la adiantar-se sobre suas irmãs, no mister de acudir aos que
sofrem. Eis um traço do seu caráter – e uma afirmação do seu progresso.
Recordo-me dos “gaiolas” que a punham em contato com
a minha velha cidade de Parnaíba. Eram Arcas de Noé fluviais, bem mais curiosas
do que a primeira, que encalhou, segundo a Bíblia, sobre o monte Ararat.
Entre as figuras do meu tempo, avulta a de Benedito
Ribeiro, o pedagogo admirável, que curava os males da alma com a palmatória e os
do corpo, com óleo-de-rícino. Estas duas meizinhas primitivas ainda hoje são
necessárias ao Brasil.
Teresina é uma cidade que se ama à primeira vista,
exatamente como as beldades dos romances de cavalaria. E, sendo amada uma vez,
nunca mais a gente a esquece. Tais são as virtudes máximas que nela vejo e que
bastam a justificar uma viagem a essa cidade fascinante, em que o Progresso
marcha sem pisar as dedicadas e olorosas flores da Tradição e da Saudade.
Rio, maio de 1958
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