ÍNDICE DE TÓPICOS

 

SUMÁRIO

Prefácio   

TEORIA  

O que é literatura, Literatura piauiense, Literatura e história literária, Momentos determinantes, Estilos de época, 

GERAÇÕES HISTÓRICAS

Introdução, Digressão I, Primeiras manifestações, 

PRIMEIRA GERAÇÃO

J. Coriolano, Licurgo de Paiva, Outros poetas, Prosadores,

SEGUNDA GERAÇÃO

Nomes emblemáticos, Prosadores e poetas, Mais poetas, Teatro – Jônatas Batista,

TERCEIRA GERAÇÃO

Martins Napoleão, Principais prosadores, Poetas mais conhecidos, Nomes menos conhecidos, Berilo Neves, A crítica e os críticos, Digressão II, 117

MODERNISMO

Poesia moderna, Ficção moderna, Crônicas, 

MODERNIDADE

GERAÇÃO MERIDIANO, Ficcionistas e poetas, Outros escritores, Teatro – Chico Pereira da Siva, Digressão III, 

GERAÇÃO DO CLIP, Poetas e prosadores, Falecidos, Teatro – Gomes Campos, 

GERAÇÃO MARGINAL, Autores falecidos, Autores vivos, Teatro – Aci Campelo e outros, 

ATUALIDADE

Geração do Milênio,

A CRÍTICA

Bases teóricas, A crítica e as gerações, 

ANTOLOGIA DA CRÍTICA

O. G. Rêgo de Carvalho,  Reginaldo Miranda da Silva, H. Dobal,  Chico Miguel, Hardi Filho,  Herculano Moraes, Magalhães da Costa,  D. Xicote (Livro de Chico Miguel),  Francisco Miguel de Moura,  Socorro Abreu,  Luiz Filho de Oliveira,  O Memorialismo na Ficção Piauiense, Wanderson Lima, Lara Larissa,  Sonetos de Cantadores, Canto Novo para Amarante,  Adriano Lobão, Teresina, História e Imaginário.

REFERÊNCIAS

MODERNISMO

 

 

                    MODERNISMO

                                  

                                       

 

          Os princípios renovadores da Semana de Arte Moderna surgiram com bastante atraso, no território piauiense. Entretanto, não é possível esquecer que, já no final dos anos 30, um poeta de origem parnasiana,  Antônio Veras de Holanda, tentou praticar o verso livre. Está ele entre as primeiras tentativas de abandonar o velho e seguir o novo.  Embora com atraso, ele procurou alcançá-lo e quase o conseguiu plenamente.  É o precursor do nosso tímido modernismo, segundo Bugyja Brito.

Também o poeta José Severiano da Costa Andrade, mais conhecido como Costa Andrade, fez poesia moderna. Entretanto, seu raio de ação e de influência era bastante limitado, por residir no interior, não chegando a influenciar a intelectualidade de Teresina, a capital do estado.

Martins Napoleão (Copa de Ébano, 1927) enriquece aquele período quase vazio já referido e entra com sua produção pelos anos 40 e 50. Foi ele, sem dúvida, um grande poeta. Mas não é o principal representante do modernismo, pois  sua estética era mesclada de tardio simbolismo e seu espírito, mais sincrético do que moderno, mais clássico do que popular. Precisa ser bem estudado na sua forma pessoal de expressão e no que possa ter influído na cultura da nossa terra, posto que vivia muito mais lá (no Sul) do que aqui.

          Introdutor do modernismo no Piauí, embora tardiamente, foi o jovem José Newton de Freitas. Deslumbrado, seu livro que seria de estréia, totalmente nos moldes do movimento de 22, saiu em 1940, só que o poeta morreria no mesmo ano, antes de ver a publicação.  Mas seus poemas nos dão a certeza de ter absorvido o verso moderno, as técnicas e a filosofia do mo­dernismo, embora vivendo a maior parte de seus dias na província.  Simples e emotivo, seu discurso é direto e comunicador, e  possui uma vibração sincera e firme.

          Renato Castelo Branco é o ficcionista desse período - os anos 40 - com o  bem logrado romance Teodoro Bicanca, 1948. Sua imensa obra prolonga-se até os nossos dias, sempre crescendo em quantidade e qualidade, além de ter sido historiador e estudioso da sociologia e da economia do Piauí. Mas sua importância maior para a história da literatura do Piauí é ser o primeiro prosador moderno,  trazendo  já um sabor de regionalismo, em cujo aspecto, depois Fontes Ibiapina se tornaria  mestre.

                                                            

                             

                                  POESIA MODERNA        

                   

                             

Antônio Veras de Holanda (1903 –1942) era militar (3º Sargento do Exército) e também professor e jornalista. Embora tendo nascido em Caxias, viveu em Teresina e Floriano, na última cidade durante 11 anos, abrindo um colégio para lecionar português. Compôs o Cenáculo Piauiense Letras, cadeira nº7, tendo como patrono o acadêmico Pedro Borges da Silva.  Deixou três livros de poemas inéditos: Sombras Noturnas, Suplício e Redenção e Trinta e Dois (poema da fome). Participou dos seguintes: Antologia de Sonetos Piauienses, de Félix Aires, e de Caminheiros da Sensibilidade, de J. Miguel de Matos. Era sonetista exemplar. Leia-se O Boi de Carro:

   

 À noite, à luz da lua, à porta da vivenda,

Sobre o frio lençol de um areal tristonho,

Deitado a ruminar, sem que ninguém o entenda,

Vê-se um pobre animal, triste, quieto e bisonho.

 

É um velho boi de carro. Um lutador, suponho,

Que depois de vencer contenda por contenda,

Ali tombou vencido, a divagar um sonho,

Piedoso a contemplar o curral da fazenda...

 

Já não dá mais serviço. É um velho boi cansado,

Que as tacadas em cruz, as cangas e o labor

Deixaram-no por terra, ao luar, desprezado.

 

Este boi me faz ver as misérias da vida:

Depois de lutas mil, é sempre o lutador

Julgado coisa vã, no abandono, esquecido...

 

Segundo depoimento de Bugyja Britto, “Veras de Holanda tentou fazer poesias diferentes dos padrões clássicos”,  e,  mesmo discordando das experiências do amigo, recolheu algumas dessas produções. “Reflexões de uma noite” é exemplo do seu talento e do esforço de trazer para o Piauí a técnica do verso livre:

 

                    Eu me lembro de todos os mortos conhecidos

                    E qual o conhecido que lembrará de mim, quando

                                                                               eu estiver morto?

                    Sobre o meu túmulo

                    Quem acenderá uma vela ou depositará uma flor?

                    Serás tu, companheira de todas as horas?

                    Ou qual de vós, minhas irmãs?

 

                    Junto ao meu túmulo,

                    Enchendo o espaço de sorrisos claros,

                    Eu sei que passarão alegremente

                    As crianças mais lindas

                    E as mulheres mais belas...

 

                    À borda do meu túmulo,

                    De ervas talvez coberto,

                    Os pássaros mais felizes

                    Soltarão os mais ternos gorjeios...

 

                    E eu morto, e eu suplantado pelo inevitável,

                    Serei um eterno esquecido...

                    O homem que tombou na  voragem do nada

                    Como um lampejo de luz no abismo do oceano...

 

                    Poetas do amanhã,

                    Poetas que hão de surgir para a glória

                                                            das gerações futuras;

                    Lembrai-vos de mim,

                    Afastai do meu túmulo o anonimato da morte!

 

Sem dúvida seu verso é solto, modernizado. Mas o poema, embora cheio de sentimento, ainda não possui suporte notável na imagem, por isto se vale da súplica. É compreensível para sua época e para os poetas afeitos aos padrões tradicionais. Veras de Holanda tentou renovar e renovou, de fato, o verso, dentro de suas possibilidades físicas e espirituais.

 

Costa Andrade (1906 – 1974) – José Severiano da Costa Andrade nasceu em Simplício Mendes – PI, sul do Estado. Cadeira nº 1, do Cenáculo Piauiense de Letras. Foi deputado e prefeito, implantando as primeiras escolas da zona rual do Estado. Poeta exímio, orador, amante das artes. Foi promotor público em Floriano- PI, deputado estadual e prefeito de Simplício Mendes-PI.  No dia 2 de fevereiro de 2010, foi homenageado pela Assembleia Legislativa, reinaugurando biblioteca com o nome “Deputado Costa Andrade”.  Publicou, em 1927, o livro “Rosal da Vida”. Faleceu em Brasília - DF. O poema “A Carnaubeira” caracteriza bem sua poesia e aptidão para o verso moderno:

 

“De longe é hostiário suspenso

do templo azul, claro, imenso

do infinito

O pileque da carnaubeira

 é uma bandeira,

quebra-luz do sol a pino;

e o planto,

 esgalgo, fino,

é esbelto equilibrista

 - pés poisados nas margens dos ribeiros

 e lagos brasileiros –

 com um disco plúmbeo na crista.

 

Nestas palmas recortadas

 e espalmadas

 ao vento

 com exóticas pantalhas,

 - na pobreza dessas palhas,

 quanta esplêndida riqueza

 dadivosa natureza

 encerra,

para a glória da terra,

de que se tira a cera

e faz a vela

que ilumina o pobre;

e a palha com que se cobre

o lar e tece esteira,

redes, cofos, abanos e chapéus!

 

- “Copernica cerífera”,

bênção do céu e planta aurífera,

eu te amo!

Eu te amo!

E te proclamo

raínha das palmeiras brasileiras!

   

                             

José Newton de Freitas (1920 – 1940), nasceu no dia 21 de novembro, em Piripiri e faleceu no dia 8 de fevereiro, em Teresina. Poeta. Fez os estudos primários na terra natal, com os pais, concluindo em Teresina, como aluno da Profª  Evangelina Parentes Fortes. Já o secundário foi iniciado no então Ginásio “São Francisco de Sales” e concluído no Liceu Piauiense, em 1936. Em 1937 é estudante do curso pré-jurídico, em Fortaleza. Faleceu precocemente, às vésperas da publicação de seu livro Deslumbrado, 1940, todo ele composto de poemas modernos, com prefácios de seu pai, Prof. Felismino de Freitas Weser, e do grande poeta simbolista, Celso Pinheiro. Este último, entre outros conceitos sobre a poesia do jovem, diz: “De posse dos quarenta e cinco poemas que constituem o seu livro, foi com especial emoção que percorri aquele jardim de ritmos novos (o grifo em negrito é nosso), bizarros, tão cheio ainda do rumor das últimas quimeras. Realmente, que farpas de estrelas não lhe atravessaram as frondes altas da imaginação, no rincão de sol das idéias e pensamentos...”

Foi o próprio prefaciador, poeta Celso Pinheiro, quem escolheu, com muito bom faro, o poema “Natal”, como mostra, no prefácio:

 

          Senhor! No teu Natal tanta ventura,

          tantos sorrisos, tantas esperanças,

          e eu cansado e sozinho,

          sentindo tanta mágoa em meu Natal

          Senhor, no teu Natal tanta alegria,

          e eu sem fé, sem vontade de viver ?

          Ah! Meus dez anos de ilusão tão bons,

          o tempo em que eu beijava a borda dos presepes

          e sorria feliz, contemplando os pastores!

          Senhor! No teu Natal tanta ventura

          e eu pensando em saudade e eu sentindo amargura!

         

É um grande poema, com a medida e o ritmo já completamente  moderno, à feição da poesia dos revolucionários de 22.  José Newton de Freitas foi o verdadeiro introdutor do Modernismo no Piauí, não obstante sua tão pouca vida e,  em consequência, a escassa obra. Mas sabe-se que vinha publicando nos jornais sua poesia e seu fazer literário, seus princípios estéticos.

Disse um certo crítico que a biografia de um poeta começa com o seu primeiro poema. É preciso, então, conhecer o poema que abre o livro Deslumbrado, cujo título tão simples é “Belo Exemplo”, supondo-se que seja um dos  primeiros aprovados pela  autocrítica do poeta:

 

Olho a serra apontando para o céu

          com os braços grandes dos seus picos,

          com os dedos verdes das suas árvores.

          Mas bem que ela não esquece os humildes,

          nem o chão, nem as pedras que jazem a seus pés.

 

          E pelo abismo, vinda das alturas,

          como se fosse um véu de rendas,       

          como se fosse prata liquefeita,

          salta a linda cascata,

          borbulhando eternal.

                   

                    Ouço. A água geme entre as pedras lodosas,

                    canta e murmura, ou será que soluça?

                    Esse barulho de água beijando os penhascos

                    deve ser um poema de amor.

                    que a serra sabe de cor para dizer ao chão...

 

                    Bendito o Deus poeta que te fez, cascata!

                    Bendita a Natureza onde palpitam sonhos,

                    sonhos de amor, belezas, ilusões,

                    em todos os recantos, até nos abismos!

                    Cascata, és um sonho líquido e sublime.

 

                    De dia o sol se veste de ouro para contemplar-te,

                    de noite a lua e as estrelas te namoram sorrindo.

                    Tu vens do coração profundo das montanhas

                    e és um beijo eterno da nobreza da serra

                    à humanidade chã das campinas sem glória.

 

                    Quando os homens passarem a teus pés,

                    Quando os homens te contemplarem,

                    os deslumbrados e os indiferentes,

                    ensina a eles o teu exemplo de fraternidade,

                    mostra-lhes a tua lição, cascata!

 

Patrono da cadeira 39, da Academia Piauiense de Letras, que tem como primeiro ocupante Celso Barros, o poeta  José Newton de Freitas, mais que sua biografia, conta a seu favor a obra deixada e divulgada pela família através de uma segunda edição. Deveria ser mais conhecido das novas gerações, não só pela introdução do verdadeiro verso moderno no Piauí, mas também pela ternura e doce poesia que ofereceu, não obstante cantar sofrimento, angústia e dor.                          

 

       FICÇÃO MODERNA

 

 

Permínio Asfora (1913 - 2001), nasceu em Valença do Piaui e faleceu no Rio de Janeiro. Romancista “da linha socialista”. No estilo, alinha-se ao romance regional do Nordeste. Estreou com Sapé, Editora Guaíra, Curitiba, 1940, obra apreendida pela ditadura getuliana. Por causa de sua ideologia, suas obras foram pouco reeditadas e obstaculizadas na distribuição.  Depois de Sapé, publicaria Noite Grande, 1947;  Fogo Verde, 1951; Vento Nordeste, 1957 - romance comentado por Álvaro Lins, de forma positiva, mas sem deixar de anotar seu viés socialista; O Amigo Lourenço, 1962; Bloqueio, 1972, e O Eminente Senador, 1973. Importantes intelectuais e escritores como Raquel de Queiroz, Gilberto Freyre e Guimarães Rosas, colocam Asfora entre os principais escritores brasileiros do ciclo regional nordestino.

 

          Anita largou no sofá o romance que estava lendo e correu à porta para ver quem batita. Era um tropeiro que chegara de Fortaleza trazendo notícias de Marta. Ao ouvir falar na irmã, Anita ofereceu a sala:

          - Entre pra descansar, seu Nequinho.

          Não podia não, disse ele. Tinha muito que fazer, ainda nem tirara a carga dos animais.

          - Mandou avisar a vosmicê que não tem dia nem hora pra conhecer o Rio de Janeiro- repetiu mais uma vez.

          - E cartas? – indagou ansiosa a moça.

          - Só me disse mesmo isto – respondeu apertando o cinto largo a fim de suspender o facão. Com o lenço encardido enxugou o suor do rosto vermelho, pintado de sarda. Teria no máximo quarenta anos, era um magro bem chocho. Pelos olhos acesos Anita revelava inquietação.

          - Mas Marta vai fazer um viajão desse sem pedir consentimento a papai nem a mamãe? – a voz baixa era menos pergunta que censura.

          Apertando os olhos miúdos e azulados contra o sol,o homem descansou no banco do copiar o pé de dedos espalhados:

          - Tou canso de ver dizer que gente do mato depois que chega na praça não enxerga matuto. Pois siá dona Marta faz um bocado de tempo que anda lá pela Fortaleza e foi me vendo foi me conhecendo.

          Numa rápida volta, Anita apanhou os dois patacões no consolo.O arrieiro levantou o chapéu de aba larga.

          - Precisava desse trabalho não, siá dona moça – falou descendo a calçada e se esforçando para enfiar as pratas no bolso da calça azul remendada.

          Anita esteve prestes a lembrar que sem afrouxar o cinto o cabo do facão não daria passagem a abertura do bolso. Mas lá se foi Nequinho no seu aperreio. Anita voltou ao sofá e novamente abriu o livro para continuar uma história que agora lhe parecia falsa e sem interessse. No velho relógio da parede os ponteiros fechavam-se e doze pancadas fanhosas, quase sem intervalo, encheram o casarão. Os pais não chegavam mais da missa! Anita mesma fizera o almoço, e, embora faminta, preferia esperá-los. Que ocorrera à irmã para se decidir a viajar ao Rio, justamente quando se pensava estivesse sonhando com o dia de voltar?  Há quatro meses Marta se fora aos prantos para Fortaleza. Naturalmente a cidade lhe virava a cabeça.

          Pela janela caiada de novo, Anita contempla um pedaço de céu azul, farrapos de nuvens se espalham pelo norte. Espelhando nas folhas verdes defronte, o sol desce ao muro coberto de hera,onde canta uma cigarra. É uma música que não enlanguece, a da cigarra, porque entrecortada pelo trinar dos canários do alpendre. Anita gostava de ler à noite, mas de um mês para cá aproveitava a manhã dos domingos, e, na hora da missa, grudava-se aos novos livros que lhe vieram de Oeiras. Teve muito que argumentar contra o coronel Luís Romão até convencê-lo de que aos domingos sentia preguiça de acordar cedo para ir rezar. Enquanto vivesse na dependência do pai haveria aquela obrigação de prestar conta de tudo. Aliás, não podia negar-lhe certa evolução: antigamente bastava o coronel vê-la folheando um livro para querer botar a casa abaixo. Nos últimos dias Anita vinha se interessando por

Aluízio de Azevedo. Andava pelos primeiros capítulos, mas já se enchera de pena pelo destino do pequeno André. Se conhecesse o autor perguntaria de o “Coruja” era de verdade: há tanta gente enjeitada! A irmã se preparava para viajar. Era capaz de, na volta do Rio, querer ficar de vez na casa da tia em Fortaleza, não querer mais saber de Valença. Sob o calor ardente, Anita desabotoa a pressão do robe creme de extensas flores cor de vinagre, transformando o ligeiro decote numa abertura longa que deixava aparecer os pequenos seios.  O cabelo farto e castanho, enrolado sem cuidado no alto da cabeça,  tinha sido preso desde a noite passada por uma larga fita branca de gorgurão. No lado esquerdo do rosto moreno e oval aparecia a marca dos botõezinhos do travesseiro. Já fora advertida de que não devia ler deitada, mas nem por isto virava uma página sem estar espichada na rede ou no sofá de palhinha. Fixou os ponteiros que outra vez se dividiam, levantou-se e ficou a se mirar no espelho grande de douradas ramagens. Puxara à mãe naqueles olhos rasgados, nos lábios estreitos e escuros que guardavam dentes largos e certos. A temperatura queimava-lhe as faces de penugens quase imperceptíveis. De adorno, só usava mesmo o trancelim e a medalhinha – promessa de d.Catarina a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro quando Anita gatinhava.  (Cap.1, pg. 11/13, de Fogo Verde, Ed. Scortecci, S. Paulo, 2003).

 

Renato Castelo Branco  (1914 – 1996)  nasceu em Parnaíba e faleceu em São Paulo. Publicitário, poeta, ensaísta, cronista, romancista, historiador. Possui uma obra vasta, praticando vários gêneros. Ao romance histórico trouxe inovações. Mas, para a literatura piauiense, nenhum dos seus livros tem a importância de Teodoro Bicanca, 1948. Trata-se de um romance regionalista, mas não visceralmente regionalista, sendo saudado pela crítica quando apareceu, e colocado ao lado de autores como Jorge Amado, Afonso Schmidt, Paulo Duarte e Ledo Ivo.

De Monteiro Lobato a Josué Montelo, Renato Castelo Branco só  amealhou elogios. Assim foi que Teodoro Bicanca, 1948, conseguiu o prêmio do Clube do Livro e foi distinguido e selecionado pelo Circulo Literário do Brasil. Realismo, observação local, personagens psicologicamente coerentes, além da linguagem correta, elegante, em ritmo de bom agrado, eis  as características dessa obra.

          Outras livros:  A Civilização do Couro, 1942, O Piauí, a Terra, O Homem e o Meio, 1970, e Pré-História Brasileira - Fatos e Lendas, 1971, são alguns dos seus ensaios;  os principais romances são, além de Teodoro Bicanca, já mencionado, A Conquista dos Sertões de Dentro, 1983,  Rio da Liberdade, 1982,  Senhores e Escravos, 1984,  O Rio Mágico, 1987,  A Ilha Encantada, 1992. Mas, na poesia, também foi importante a sua contribuição:  Os Sertões (poema baseado na obra de Euclides da Cunha), 1943;  Candango, Gagarin, Blaiberg e Outros Poemas, 1968;  A Janela do Céu, 1969;  Amor e Angústia, 1986;  O Anti-Cristo, 1987.

          Falando sobre a vida e a obra de Renato Castelo Branco, Assis Brasil conceitua sua poesia assim:   “Embora o feijão possa ter sido a parte do leão na vida de R.C.B., o fato é que ele construiu a sua obra literária, escreveu seus livros de poemas, uma poesia atuante, forte, de sabor universal, sem descurar os valores telúricos e regionais, líricos e emblemáticos.”

Nelson Werneck Sodré, põe ênfase na simplicidade do seu estilo e resume: “Forma superior e difícil”.

Renato Castelo Branco é, assim, o introdutor da ficção moderna, na literatura piauiense.

Veja-se um trecho de Teodoro Bicanca:

 

Pairava sobre a fazenda um ar de miséria e de morte, quando Crispim, Damião e Teodoro chegaram à casa de telha. Nas palhoças por onde passavam, plantadas à beira da estrada, os moradores escondiam-se dentro de casa, quando viam, ao longe,  aproximarem-se os flagelados. A seca levara sua testada candente até os barrancos do Parnaíba. Também ela fora beber a água do rio poderoso, com os retirantes do Ceará. E as águas haviam baixado, matando a sede da seca, aflorando cômoros enormes do seu leito. A navegação tornara-se difícil, as barcas encalhando, os vareiros gemendo nas pontas das varas. A população ribeirinha perdera tudo do pouco que tinha. A colheita dos roçados havia se perdido inteiramente. A criação morrera sem pasto. E os retirantes tornaram a miséria ainda mais aguda, enchendo as estradas, morrendo de fome sob as árvores desfolhadas. Os caboclos da região fechavam as portas com  medo  dos amigos de outros tempos, com medo de sua visão angustiante, com pena de não terem o que lhes dar.

Só a cera proporcionava alguma coisa naquela quadra causticante – maior era o calor,  maior era a produção dos carnaubais. Mas os carnaubais eram do coronel, a cera era do coronel, não matava a fome dos agregados. Na casa de telha, enorme, cercada de alpendres por todos os lados, o coronel Damasceno pesava as sacas de pó, macio como uma seda, e ia mandando para o armazém,  para derreter nos grandes tachos ardentes. Os caboclos vinham chegando, suados, e o coronel Damasceno ia escrevendo em seu livro de notas:

- Antônio Ferreira, 5 sacas...  Bento, 4 sacas...  pesa essa cera, Malaquias!  Nonato, 3 sacas... muito pouco este ano, seu Nonato...

E antes que o Nonato pudesse justificar, já o coronel estava dando novas ordens:   

          - Seu Malaquias, vá mandando esta cera pro armazém, pra derreter!

          Damião aproximou-se do coronel, acompanhado de Crispim:

- Deus esteja com vosmicê, seu coronel!

          Damasceno parou o serviço, coçou a cabeça, olhou o grupo com piedade e irritação. Dezenas, centenas de flagelados já tinham vindo bater à sua porta. Damasceno não sabia mais o que fazer. Não tinha coragem de tocá-los naquele estado. E, mesmo que tivesse,  sua mulher se oporia. Mas ele não podia também encher a fazenda de famintos. Aquilo era um nunca acabar. Mandara improvisar um enorme rancho, longe da casa de telha, coberto de palha e sem paredes, onde permitia que pousassem alguns dias, os mais enfraquecidos.  Só que não podia lhes dar alimento. Eles que se arranjassem. E justificava-se:

          - Cada um cuide de si, que Deus cuidará de todos...

 

                          

                                            CRÔNICAS

 

Martins Napoleão (1903 -1981) – Poeta e prosador dos mais importantes da literatura do Piauí. Não é necessário repetir os demais dados, pois já está biografado na geração do Cenáculo Piauiense de Letras e antologiado como poeta. Ele cobre três gerações de escritores, não  somente como poeta, mas também como prosador, embora não tenha sido propriamente um ficcionista. Agora cabe mostrá-lo em outra faceta, transcrevendo, do “Guia de Teresina”, editado por Edilberto Martins, em  1959,  “O Sítio – Casa Grande de Meus Avós”:

 

          As terras do “Sítio” onde vivi até aos quatro anos, hoje pertencentes a meus primos Martins Castelo Branco, ficam  à margem do Parnaíba, à mesma distância de seis léguas entre Teresina e União, e estendem-se Piauí adentro, ligando-se às do Centro, lavradas outrora pelos escravos de meu bisavô Antônio Martins Viana, que ali mantinha a senzala, a pouco mais de três quilômetros da casa-grande.

          O casarão patriarcal (e foi ali que nasci em 17 de março de 1903), térreo e de sólidas paredes que têm bravamente resistido às vicissitudes do tempo  e às enchentes do Parnaíba, cujas águas,nos invernos de 24 e 26, chegaram a lamber-lhe as calçadas  de pedra, foi construído exatamente na divisa dos dois municípios, confinantes no oitão da velha saboaria e prensa de algodão, já em ruína, quando as conheci.

          Restava, nos meus dias de criança, a habitação principal intacta. Muitos e espaçosos cômodos a compunham, inclusive os quartos do “puchado” que se alongava pela estrada lateral – o caminho do rio – e onde, ainda mesmo muitos anos quenos retiramos em 1907, continuaram morando descendentes de escravos, mucamas e crias, arraigados efetivamente aos domínios dos senhores desaparecidos. Ali ficou, quase solitária até sua morte em 1920, como obsessivo fantasma dos tempos idos, a minha ama Genoveva, a Nunu, como a chamávamos eu e meu irmão Artur – a Genu de minha mãe e de minha avó Carlota, amiga fiel e companheira de ambas, e uma das minhas primeiras grandes afeições.

          Àquela época, não havia mais cercas no vasto quintal antigo, onde poucas árvores, a não ser nativas,  denunciavam a falta de trato de outros tempos, quando ainda vivo meu bisavô. Lembro-me apenas da laranjeira meio carcomida e derreada do saguão, ao fim da varanda, onde se dizia haver dinheiro  enterrado, e dos algodoeiros junto ao poço em que, certa vez, caíra o liberto Silvestre, a custo retirado com vida.

          O mato já tomara conta de tudo, à excessão do páteo de vassourinhas, que se alargava até ao tamarindeiro grande e frondoso, em frente da casa – o ponto mais distante a que me aventurava. Limpa e longa era apenas a estrada que ia ter ao porto fluvial, toda ela marginada de cajueiros anosos, cujas folhas,  manchando o chão de sombras movediças, dançavam no estirão de areal pelas noites de lua, e eu, entre medo e encanto, espreitava da janela da sala de jantar, como se fossem misteriosas coisas animadas.

          O nosso mundo era mesmo a casa-grande, com o seu piso de tijolos quebrados: a varanda, onde havia imensas arcas de cedro para guardar cereais – reminiscências da fartura passada;  o comprido salão, num dos ângulos do qual se conservavam o escritório de grades de madeira de meu bisavô e uma mesa de guarda-livros; a sala de jantar com a mesa enorme e pesada, ao redor da qual  os lugares foram, pouco a pouco, vagando; os quartos amplos, dormitórios da família, e aquele, bem menor, onde vivia a Nunu, tresandando sempre a “sebo de Holanda”, a sarro de cachimbo e a mofo, com o seu baú de couro e pregaria encostado à parede.

          As saídas para mim eram poucas: um ou outro banho de rio e pequenas vadiagens pelo pátio, sob a vigilãncia de minha Mãe e os cuidados da ama.

          Dali saímos em 1907, de muda para União, depois que meu irmão mais velhos embarcou para o Recife, a cursar a Faculdade de Direito, Recife que me sulcou a memória com a notícia da morte de meu padrinho Raul – último filho varão de minha Avó, que perdera tio Carlos, ainda pequeno, e tio Agenor, estudante do Liceu de Teresina, com dezesseis anos, afogado na curva da Boa Vista.

          Só em 1919, durante rápida estadia no Piauí, é que revi aquelas doces paragens do “Sítio”, tão profundamente aderidas à minha primeira infância. E assim mesmo, por uma tarde de cansaço e uma noite cortada a meio para a  viagem a cavalo até Teresina, de regresso a Belém.

          Só restavam de vivos então, embora fossem, na aparência, evocações defuntas da minha meninice, como últimos habitantes da mansão rual em abandono,  a velha Nunu, sardenta e reumática, e a Elisa, mulata liberta, casada com o José Carateús, que se fora de uma vez para as bandas do Ceará. E a filha de Maria Félix, mulher do mal encarado e barbudo Chico Félix, vindo do estado vizinho na seca de77 – a bela Maricô, inutilmente cobiçada pelos meus olhares de adolescente tímido, que escrevia versos e tinha amores impossíveis.  Ali apareceu, logo que chegamos, para pilar o arroz de jantar.  Pele trigueira, ancas largas e seios fartos balouçando  ao ritmo da mão-de-pilão, deitava à mostra, para a tentação da minha inexperiência, as coxas roliças e morenas.

          O mais são recordações. Pessoas que se transformaram em personagens do meu intenso mundo interior; coisas que se fixaram, como entes vivos, à fauna e à flora da minha natureza subjacente. O vaqueiro Elesbão, que servira a meu avô João Martins e era da confiança de minha avó; “tia” Chica, cega que nhos conhecia a todos pela voz, nos chamava pelos apelidos e continuava morando no “Sítio”, mesmo depois da libertação dos escravos, como,aliás, quase todos, e vivia para perpetuar, em histórias evocativas, a amizade dos “senhores”; “compadre” Sabino, que matou uma onça por engano, pensando que se tratasse de um veado, e pagou em cólicas de susto e suores frios, ao descer da “espera”, diante da pintada morta, a sua bravura inconsciente; o Gaudêncio, que veio  morrer em nossa casa de União, aos 104 anos; o Verano, dado às pingas e morador do “Centro”; o Sérigo, que tinha um defeito no pé e creio fosse bastardo de meu tio do mesmo nome; e “Mãezinha” – minha avó materna, que ali sepultou a sua viuvez inconsolável e a dor de perder meu tio Raul, que contraiu a varíola no primeiro ano de Direito, até que meus pais conseguiram levá-la para a sua companhia em União...

          Recordações sobre recordações: o outro mundo da memória, com a sua luz coada e baça, o outro lado da vida, com a presença do passado.

          E, inapagável no quadro esbatido dessas saudades,  no sofá da mobília austríaca do salão, o caixãozinho com o corpo de meu irmão Luiz, vítima de sarampo e crupe, gordo e bonito como fora em vida, pronto para a última viagem, rio abaixo até União, onde o sepultaram bem junto às covas de José e do primeiro Valdemar.

          Foi ali, naquela casa-grande encravada no latifúndio de benignos senhores de escravos, que adocei minha índole no trato de negros bons, e me  prendi ao amor da terra e do rio – da terra que troquei em vão por tantas  outras, e do rio que passou a correr nos confins da minha lembrança para desaguar, tantas vezes, nos meus olhos.

                                                                                  Rio, junho de 1958.

 

 

Berilo Neves (1901 – 1974) – Nasceu em Parnaíba – PI e faleceu no Rio de Janeiro. Já foi biogafado na geração anterior, do Cenáculo Piauiense de Letras, portanto, não há necessidade de mais dados bigráficos idendificadores.

        O texto a seguir foi colhido no Guia de Teresina, editada por Edilberto Martins, em 1959, com o título de “Imagem de Teresina”, tem característica de crônica.

 

Conheci Teresina na minha juventude, e sempre lhe conservo a imagem na retina da alma. Vi-a com suas ladeiras, suas velhas igrejas, e o rio Poti, escoando suavemente, sem quedas, nem tropeços.

Conservo, na  memória auditiva, o ronco de seus trovões: julgo ser o mais forte do mundo. Outrora chamavam-lhe “Chapada do Corisco”, precisamente por ser atreita a essas cóleras da Natureza, que a ciência da eletricidade reduz a simples encontros de forças físicas antinômicas... Mas esses trovões famosos parecem ter uma virtude essencial: fazem mais forte a alma do povo sobre o qual desabam. Entre a “Chapada do Corisco” de ontem e a Teresina de hoje, há um abismo. A cidade atual,dizem-me que é linda e atraente.Produz belas moças: ora, essa indústria, ou produção natural, ainda é a mais fascinante de todas... Teresina possui o mais completo Hospital de todo o Norte. O sentido social dos governantes fê-la adiantar-se sobre suas irmãs, no mister de acudir aos que sofrem. Eis um traço do seu caráter – e uma afirmação do seu progresso.

Recordo-me dos “gaiolas” que a punham em contato com a minha velha cidade de Parnaíba. Eram Arcas de Noé fluviais, bem mais curiosas do que a primeira, que encalhou, segundo a Bíblia, sobre o monte Ararat.

Entre as figuras do meu tempo, avulta a de Benedito Ribeiro, o pedagogo admirável, que curava os males da alma com a palmatória e os do corpo, com óleo-de-rícino. Estas duas meizinhas primitivas ainda hoje são necessárias ao Brasil.

Teresina é uma cidade que se ama à primeira vista, exatamente como as beldades dos romances de cavalaria. E, sendo amada uma vez, nunca mais a gente a esquece. Tais são as virtudes máximas que nela vejo e que bastam a justificar uma viagem a essa cidade fascinante, em que o Progresso marcha sem pisar as dedicadas e olorosas flores da Tradição e da Saudade.

                                                                             Rio, maio de 1958

 

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