TERCEIRA GERAÇÃO

   TERCEIRA GERAÇÃO

         Cenáculo Piauiense de Letras

                   

         

A 7 de setembro de 1927 foi fundado, em Teresina, o Cenáculo Piauiense de Letras. Associação sui generis, o Cenáculo seria uma Academia dos novos, pois que nele, composto de 30 cadeiras, se assentaram jovens com a idade média de 20 anos, com uma única exceção: Eudóxio Neves, já em avançada idade. Outra característica interessante: cada cadeira tinha por patrono um acadêmico da Academia Piauiense de Letras. Era uma associação de jovens, e em torno e em busca dos jovens intelectuais viveu o Cenáculo, embora com poucos frutos. Seu percurso também foi marcado pelos pequenos jornais, especialmente O Lábaro (que durou apenas quatro anos: de 1926 a 1930).

Por sua importância como movimento, numa época em que a literatura no Piauí entrava em recesso, relacionamos todos os seus membros e respectivas datas de nascimento:

José Severiano da Costa Andrade (12.12.1906); Luiz Torres Raposo (10.12.1898);  Júlio Antônio Martins Vieira (27.03.1907); Wagner Cavalcante (21.12.1912); Antônio de Sousa Lima Machado (?);  Osires Neves de Mello (26.01.1905); Antônio Veras de Holanda (24.09.1902);  Maria Iara Neves Borges de Mello (?);  Antônio Martins Castello Branco (28.06.1911); Álvaro Tito Castelo Branco (30.01.19030; Antônio Bugyja de Sousa Britto (21.05.1907); Felismino de Freitas Weser (04.03.1895); Sebastião Albuquerque Vasconcelos (20.01.1907); Jesus Augusto Medeiros (29.12.1906); Othon do Rego Monteiro (11.06.1903);  Raymundo Sobreira Cardoso (14.04.1908);  Eudóxio da Costa Neves (04.09.1878);  Álvaro Alves Ferreira (22.01.1893); Antônio Neves de Mello (05.02.1903); Alberto Abreu Chagas  (11.10.1905); Sylvio Carvalho (21.09.1897); João Francisco Ferry (26.04.1895); Moacyr Araújo Ferreira (12.02.1907);  Júlia Gomes Ferreira (12.02.1907); João Santos de Souza (07.04.1903); Benedito Borges Barros (15.04.1908); Durvalino Couto (?);  Inocêncio Machado Coelho (17.05.1907);  Antônio de Pádua Rezende (14.07.1908);  e Othilia Carvalho e Silva (31.10.1910).

Alguns dos que fizeram parte do quadro do Cenáculo  e o deixaram por renúncia ou outros motivos, não figuram aqui.  Mas outros, de acordo com suas obras, tais como José Severiano da Costa Andrade,  Júlio Antônio Martins Vieira, Osíres Neves de Melo, Antônio Veras de Holanda (um dos precursores do modernismo no Piauí), Antônio Bugyja de Sousa Britto, Álvaro Alves Ferreira e João Francisco Ferry são selecionados para mais detalhes biograficos textos.

O Cenáculo encerrou  suas atividade em 1932, com a morte prematura de Antônio Neves de Melo, seu principal idealizador, conta a historiadora Cléa Rezende. Esse marco não significa que a geração neo-acadêmica se circunscreva apenas aos anos que durou a instituição. As gerações tem dimenção biológica e humana, não somente oficiais e juntam-se no infinito cadinho da história.  

Sobre uma parte da trejetória dessa entidade, o  depoimento insuspeito de Bugyja Britto – um dos seus membros mais ilustres é representativo, pela seriedade dos seus escritos históricos, memorialisticos e literários:  

“No período de setembro de 1927 a novembro de 1930 realizaram-se dois movimentos objetivando o reconhecimento de dois valores para receberem as homenagens merecidas, além da realização, aos domingos, durante as sessões respectivas, de pugnas intelectuais, que consistiam em discussões, debates, recitativos e abordagem de teses de caráter literário por parte dos membros da novel instituição. O primeiro movimento (1928) prendeu-se a uma eleição para saber-se qual o melhor poeta piauiense, ou seja, o seu Príncipe;  o segundo movimento teve por fim angariar-se numerário para a ereção de uma herma a Olavo Bilac, em praça de Teresina.  Na eleição de Príncipe dos Poetas Piauienses  obteve  o primeiro lugar o ilustre Da Costa e Silva. Os poetas Celso Pinheiro e Jonas da Silva obtiveram respectivamente o 3º e o 2º lugares. Quanto à herma para Olavo Bilac, o escritor Martins Napoleão, - por o assunto ser de sua real vontade, - capitaneou os trabalhos, que consistiam em conferências pronunciadas, pagas pelo público, e artigos de membros do Cenáculo para efeito de propaganda. Antônio Neves foi um dos conferencistas sobre Olavo Bilac. Martins Napoleão não era membro do Cenáculo, mas um companheiro de renome do meio que,  à frente do nosso desideratum, guiou-nos no empreendimento a favor de Bilac, ou melhor,  da homenagem do Cenáculo ao grande poeta de  Tarde e patriota destemido.”   

Não foi uma geração contestatária. Alcançaria o status de geração apenas no sentido biológico, mas a história lhe faz  justiça pelo que fizeram  indiscutivelmente, embora seguindo os passos da geração da Academia Piauiense de Letras dos primeiros anos do século XX. Do final da década de 1920 até a década de 1930, a geração do Cenáculo iria distanciar-se da Academia Piauiense de Letras, na ação cultural e na estética das obras, aproximando-se do virtuosismo intermediário entre o parnasianismo e a revolução modernista, onde os prosadores formalistas como Coelho Neto, Rui Barbosa, ou sombrios e filosofantes poetas como Hermes Fontes faziam a festa. É ilustrativo um trecho da Crônica Elegante assinada por Machado Coelho, membro do Cenáculo, publicada no jornal Estado do Piauí, edição de 20.01.1931, sobre o poeta:

“Hermes Fontes, o glorificado poeta de “Apotheose”, o dedicado espírito que passou pela terra a derramar as estrofes iluminadas dos seus iluminados poemas, cansado de viver,  alma a sangrar, coração apunhalado pelas desilusões da vida, pôs termo à existência. (...) A gente moça quer bem a esse poeta, ninguém esquece os seus magníficos poemas sentidos e sinceros, de um ritmo perfeito e raro, modelados no estilo terso e inconfundivel dos que servem à Forma e dignidade da Arte.”

 O grande poeta piauiense desse período foi Benedito Martins Napoleão do Rego (Martins Napoleão). Nascido em União–PI, teve sua infância toda no Piauí e estudos também. Bacharelou-se pela Faculdade de Direito do Piauí, em 1936.  Teve uma vida bastante movimentada, cedo foi residir em Belém, Salvador e Rio, seguindo a sorte nos que nascem nesta região pelo desejo de crescimento e melhor condição de vida. Mas a maior parte de sua existência foi no Rio de Janeiro, em virtude mesmo de suas atividades profissionais, onde tornou-se conhecido e admirado. Certo que teve sua mocidade no Piauí, mas só voltou a morar em Teresina a partir de  1924 até 1946, quando volta à Capital Federal.  

 

         

          MARTINS NAPOLEÃO

 

 

Martins Napoleão (1903 – 1981), poeta, cronista, ensaísta, jornalista, advogado, professor, tradutor, orador, exerceu  na administração pública estadual e federal as mais importantes funções, inclusive a de consultor e diretor do departamento jurídico do Banco do Brasil. Cultura clássica, enciclopédica. Uma das maiores forças poéticas do Piauí. Com suas obras Do Latim Castrense ao Romance,  1928, e Da Influência Dantesca na Poesia de Camões, também do mesmo ano, inscreve-se dentro da característica da sua época. É verdade que, ao estrear em 1927, com Copa de Ébano, pratica já uma poesia diferente, revolucionária em relação ao que existia antes no Piauí,  mas ainda longe do verso moderno de 1922. 

 

                    Sobre a minha cabeça dolorida

                    cai, de repente, a sombra do Destino

                    como uma noite sobre a minha vida:

                    morre, dentro de mim, quanto é divino

 

                    em meio do caminho da  subida

                    por onde inutilmente peregrino.

                    Toda esperança desaparecida,

                    tropeço, pela treva, em desatino.

 

                    De certo, alguém me impele, alguém  me arrasta,

                    Qual uma pedra na descida escura

                    desta montanha cada vez mais vasta.

 

                    Eu sinto a sua mão, de quando em quando.

-        Sísifo é meu destino, ó criatura!

e eu sou a pedra que ele vai rolando.

 

Em O Destino da Lira, do mesmo livro, já pratica o verso aparentemente distante da medida antiga:

 

                    Dói recolher, na concha da alma, o alheio pranto

-        orvalho a gotejar de outras raízes...

          Mas é tão doce a dor de o transformar num canto

que console infelizes!...

 

O destino da Lira é como o das estrelas,

belas e inúteis, aparentemente:

mas a força vital e infinita que há nelas

faz brotar a semente.

 

O destino da Lira é o destino das rosas,

morrendo mas deixando o aroma que erra,

                    ou no ar ou no esplendor das mulheres formosas,

                    como um bem feito à terra.

 

Quase toda a sua poética é de feição simbolista e classicizante, não obstante desde a primeira obra praticasse timidamente o verso solto. Ele próprio confessa, em carta ao crítico Herculano Moraes: “Se me fosse possível definir-me, diria que sou neo-clássico – um  clássico renovado e em permanente renovação; romântico no fundo e clássico na forma.”

Tanto é verdade a autodefinição como neo-clássico que, passada a onda modernista, volta ao soneto, aos modelos clássicos e a um simbolismo mitigado. A difusa melancolia de seus versos acredita dever à influência que recebe de Keats e Shelley.

Mas, em Poemas da Terra Selvagem, de 1940, é um pouco diferente. Prelúdio bem representa a maioria dos estampados naquele livro, quando se dá sua maior aproximação com os modernistas de 22:

 

          As árvores aqui são tão altas

          que as estrelas cansadas dormem nos seus galhos.

 

          E há silêncio nos seus vales

          que o sol da tarde pára, admirado, em cima das montanhas.

 

          Os pássaros têm um canto tão bonito

          que a madrugada nasce mais cedo para os ouvir.

          E a noite é tão clara

          que as almas pensam que seja uma lagoa de se banharem.

 

          Há tanta riqueza

          que as águas mortas dos pauis brilham de noite

          fabulosamente:

          é um delírio tão grande como o da febre dessas águas

 

A luz, de tão intensa,

atravessa a alma dos meus patrícios:

é por isto que há tantos poetas

na minha terra.

 

Outros livros:  Poemas Ocultos, 1930; Caminhos da Vida e da Morte, 1941;  Poemas Humanos e Divinos, 1942; O Prisioneiro do Mundo, 1943;  Opus 7,  1953;  O Oleiro Cego, 1956;  Três Cantos do Paraíso. 1961; Pequena Antologia de Poemas Alheios,  1960;  Tema, Coral e Fuga, 1966; Três Cantos do Purgatório, 1961;  Epopéia Camoniana, 1972, e Cancioneiro Geral, 1980, além de seus inúmeros ensaios literários, políticos e educacionais.

 

 

             PRINCIPAIS PROSADORES

                             

 

Bugyja Brito (1907 - 1992) foi comerciário, jornalista, professor, funcionário público. Formou-se em direito no Rio, em 1933. Homem inquieto, historiador, folclorista, escreveu poemas, crônicas, contos e crítica literária. Estréia em poesia: Muralhas, 1934. Na literatura piauiense sobressaem seus trabalhos em torno das lendas indígenas Miridan, 1961, e Zabelê, 1962, só um pouco prejudicadas pelo tom  romântico da narrativa.  Itains (1967) e Traços em 5 Biografias (1987), crítica, e suas memórias incompletas, Narrativas Autobiográficas-I, 1977,  também são fontes seguras, vazadas em  boa forma.   

          De Zabelê, lenda romanceada, eis um pequeno trecho:

         

          Naquela tarde avermelhada por manchas sanguíneas do poente, sem nuvens multicores pairando no céu e sem luz causticante oprimindo a atmosfera, Zabelê andava, desprevenida, em veredas que lhe eram comuns, por isso que elas se situavam em terras de seus pais.

          Entrara em ridente capão que o Itahim cortava de leste a oeste..

          Era do seu agrado ver as águas desse rio, e, por isso, costumava margeá-lo em grande extensão; quantas vezes remando a tosca igara sobre ele, ou a pé, barrancando os lados, não lhe eram familiares o leito e as terras por onde passava!...

          Poético Itahim, cujo sentido dá a idéia de que corre entre pedras pequenas, de que as suas águas ondeiam entre cascalhos e lajes que não têm a brutalidade e a dureza das rochas milenárias!...

          Zabelê acompanhava agora o Itahim. Penetrando o ridente capão, enfeitado por árvores augustas e medíocres cerrados, os seus passos quebravam o silêncio reinante; a ressonância que estes provocavam era levada para longe, morrendo distanciadamente entre os augúrios abençoados do sol-posto.

                                               (...)

          Ah, que dizer da poesia que as sombras existentes e as múrmures águas que sempre passaram, puderam, alguma vez, provocar a inspiração de Alguém, cuja alma jaz por aí ?...

Zabelê, a princípio, cisma.  Depois olha a paisagem e crê ouvir uma lírica balada, que, por certo, esse Alguém compôs, ternamente. Pareciam-lhe que os sons, capazes de ferirem a sensibilidade de tudo o que tem vida, se reproduziam ao arrepio da sua vívida audição:

-  Sombras que confortam os homens, que enternecem as cousas e que dão vida aos seres, deixai, por favor, que eu sinta, adolescentemente, os bens que vós dais! Sombras que proporcionam alegria e prazer a todos os que vos procuram, deixai que eu receba as bênçãos que espargis, liberalmente! Sombras que convidam a outra Vida...

 

          Cristino Castelo Branco (1892 – 1983),  conferencista, crítico literário, memorialista, jornalista, poeta. Advogado, bacharelou-se em Recife, 1911, obtendo o primeiro lugar numa turma de 137. Foi professor do Liceu, da Escola Normal, da Faculdade de Direito do Piauí, juiz de direito, procurador geral da Justiça, desembargador e presidente do Tribunal de Justiça do Estado. Escreveu e publicou grandes trabalhos na área jurídica, mas veio a estrear na literatura, tardiamente, como os de sua geração. Publicaria apenas: Homens que Iluminam, 1946;  Frases e Notas, 1957;  Sonetos, 1962;  e  Escritos de Vário Assunto,  1968. Postumamente, sobre ele, a Academia Piauiense de Letras publicou  Cristino, Vida Exemplar, 1992. De estilo claro e limpo, era correto na informação. Seus coetâneos dizem que possuía uma memória fabulosa. Por esta e outras razões escolhemos dois trechos de seu livro “Frase e Notas”, pois nele o memorialista se transforma em cronista de muito bom gosto e vasta emoção, finalizando com o soneto “Um milagre, talvez, desta saudade”:

         

            Em 1923 estive pela primeira vez no Rio de Janeiro. Fui ao enterro de Rui Barbosa, guia e ídolo do meu liberalismo político e de meu amor à pureza vernácula. A “Replica”, as “Cartas de Inglaterra”, os discursos da campanha civilista e os proferidos no Senado, em oposição ao governo do Marechal Hermes, faziam, há muito, as delícias do meu espírito. Vi o mestre depois de morto, na Biblioteca Nacional, onde o seu corpoesteve exposto à visitação pública, e ouvi, despedindo-se dele, no cemitério São João Batista, as vozes eloquentes de João Mangabeira e Rafael Pinheiro.

            Dezesseis anos depois, na sua pópria casa transformada em museu e biblioteca pública, patenteei numa conferência, perante numerosa assistência, toda a minha admiração pelo idealismo assombroso e militante de sua grande vida.

             Bem diferente de hoje era aquele Rio de Janeiro de 1923: sem filas, sem cofap, sem carestia de vida, sem crises de habitação e de transporte; mais ordem, menos tropeços, mais moralidade.

                                                (...)

              Há ainda um mundo de notas... que ficam para depois. Delas, retiro uma, para remate deste capítulo.

              – Na cidade em que nasci, alegre e cheia de sol, as coisas mais belas são a Igreja de São Benedito e o rio Parnaíba. Este, obra de Deus para o homem.

                Tão grande é em mim a presença do rio, que, certa manhã, ao despertar aqui, nesta cidade, sentei-me à secretária, e escrevi quase automaticamente o seguinte: -

                            

                              O Parnaíba vive na minh’alma,

                             Em sonhos, vejo-o. Se ando, vejo-o ainda.

                             Que quer comigo assim o rio em linda

                             Aparição por onde sigo em calma?

 

                             Olho em redor.  Alongo pela infinda

                             Paisagem d’outrem, que no azul se espalma,

                             E muito bela a todas leva a palma,

                             Meu pobre olhar cansado, desde a vinda

 

                             Que da terra natal me separou.

                             Em vão perquiro a causa de viver

                             O rio assim a andar por onde vou.

 

                             Um milagre, talvez, desta saudade,

                             Que o faz presente dentro do meu ser,

                             Inundando-o de paz e eternidade.

                               

Lili Castelo Branco (1896 – 1993), portuguesa, mudou-se para o Brasil aos dois anos de idade, indo residir com os pais em Belém. Publicou nos jornais de lá e de cá. Romancista, cronista, memorialista. Obras principais: Ermelinda, 1959,  e  A Misteriosa Passageira, 1989. Tem como continuadora, sua filha Lilizinha Castelo Branco.

 

Lilizinha Castelo Branco do Carvalho (1919–1980), filha de Lili Castelo Branco é igualmente romancista, cronista, contista. No Rio, onde morou algum tempo. Colaborava nos jornais. Ganhou concurso de contos da Revista Doméstica. Seu melhor livro é o romance Quinze Anos Depois, 1977.    

 

Retardatárias, Lili e Lilizinh, mãe e filha, numa forma conservadora, ambas transpõem a vida da elite para a ficção, sem nenhuma novidade do ponto de vista estilístico.  Naturalismo de belle époque. A escrita da filha é mais recriada, mais  polida.  Lili Castelo Branco, ao contrário, se aproxima da crônica e dos relatos da memória.

 

         Cunha e Silva (1905 - 1990) é o nome literário de  Francisco da Cunha e Silva nascido em Amarante e falecido em Teresina. Foi professor e jornalista. Fundou os colégios Ginásio Amarantino e Ateneu Rui Barbosa, em Amarante. De Teresina, vai estudar em São Luís, no Rio e, finalmente, em São Paulo.Deixa o seminário onde estudava e volta para o Piauí. Em 1935, acusado de ser comunista e pertencer à Aliança Nacional Libertadora, vai preso. Em 1947, transfere-se de Amarante para Teresina, onde leciona português, geografia e história, no Liceu e na Escola Normal. Defendeu duas teses:  A Odisseia do Cativeiro no Brasil, 1952, e O Papel de Floriano Peixoto na Obra da Proclamação e Consolidação da República, 1957. Em 1975 entra para a Academia Piauiense de Letras.Dirigiu a Casa Anísio Brito (1953/1958). Colaborou em quase todos os jornais do Piauí e de alguns foi redator: O Piauí, 1945;  A Folha, 1949; A Luta, 1952, entre outros.  Publicou os seguintes livros: A República dos Mendigos (romance sociológico), em 1984; Gatos de Palácio, 1984; e Copa e Cozinha, em 1988 – ambos de crônicas políticas oriundas dos jornais.  Segue um depoimento do escritor Cunha e Silva Filho:

 

           Cunha e Silva foi também diretor do Liceu Piauiense. Foi contista bissexto e poeta a partir dos sessenta anos, em geral, sonetista, dado que felizmente consta da apreciação crítica da obra de Herculano Moraes, Visão Histórica da Literatura Piauiense. Além disso, foi orador de amplos recursos e polemista respeitado, dotado de enorme talento para o sarcasmo; pronto a demolir o adversário no terreno das idéias,  sabia encontrar os pontos mais vulneráveis e o retrato mais caricatural do opositor na troca de farpas e catilinárias pulverizadoras de valores consagrados ou não. Haja vista a polêmica que sustentou com A. Tito Filho anos atrás. Na história do jornalismo político e doutrinário piauiense a obra de meu pai ainda está a merecer estudos sérios (o que não o fez, não sabemos por que motivos, Celso Pinheiro Filho, na sua História da Imprensa Piauiense, 1972, onde o nome de meu pai é apenas citado de passagem), visto que, em revistas e sobretudo em jornais do Piauí, poucos como ele souberam manter uma assombrosa produção – ininterrupta! – durante mais de meio século de jornalismo combativo. Intransigente com a correção linguística, possuía, entretanto, um estilo claro, em linguagem de hoje, diria tinha uma escritura legível, fruto de uma longa prática de redação, aliás, aprendida em muitos anos de leitor voraz da grande literatura universal. Tinha ainda bossa para a apreciação literária, a se ver por alguns comentários que escreveu sobre livros que recebia de escritores. Foi professor de francês durante muitos anos, no saudoso Ginásio “Des. Antônio Costa”. Quando muito jovem, pertenceu ao Cenáculo Piauiense de Letras, para cujo ingresso concorreu, segundo me afirmou, com um longo estudo sobre a poesia de Da Costa e Silva, trabalho que infelizmente deve ter-se perdido. (Publicado no “site” Usina de Letras, em 10 de agosto de 2003 – página de Francisco Miguel de Moura).

                             

 

                                 POETAS MAIS CONHECIDOS

 

A linguagem sertaneja de João Ferry, plena de humor; a poesia simples, popular de  R. Petit; a linguagem cabocla Hermes Vieira; os sonetos e trovas de motivação de Oliveira Neto tendo por motivo a natureza e a vida do interior; e, sobretudo, o versátil, profundo e singelo Domingos Fonseca – todos concorrem para  reatar a tradição de nossa poesia popular, improvisada, de cantadores, cujo melhor exemplo é a Lira Sertaneja, de Hermínio Castelo Branco, conforme foi muito bem esclarecido por João Pinheiro, no seu livro de Literatura Piauiense, de 1937.

A alma do piauiense está na sua poesia. Em toda ela há um sumo de terra, gado, costumes arraigados e folclore, e a ingênua simplicidade do habitante desta região. O espírito de Da Costa e Silva, atualizado e vanguardeiro, sonhou e realizou isto, sem deixar de ser o poeta do universo. É que as contribuições da modernidade e do fazer artístico, as conquistas da humanidade não nos são infensas, embora nos cheguem com bastante atraso.

As duas variantes – a poesia popular e a clássica – se interpenetram e se confluem em todas as gerações de literatos piauienses.

 

João Francisco Ferry (1895 – 1962). Auxiliar de comércio e guarda-livros, depois jornalista muito participativo.   Poeta, trovador e teatrólogo.  Escreveu algumas peças no estilo folclórico, retratando ou satirizando o povo da roça. Publicou:  Princípios, 1914;  Os Meus Sonetos, 1916;  Em Busca de Luz, 1922; O Cabeção, 1937;   Chapada do Corisco, 1952;  e Meu Brasil, livro publicado no ano de sua morte, que não chegou a circular por causa dos erros e imprecisões que continha. Teatralizou e poetizou as lendas, portanto era também um folclorista. Um dos poemas que ficou famoso foi “Marias”:

 

          Marias, nem sei quantas, nem sei quantas,

          Nem sei quantas Marias e Marias,

          Nem sei quantas Marias, quantas santas,

          Passaram pela ronda dos meus dias.

 

          As Marias do Amparo foram tantas,

          Que as outras não tinham primazias,

          Mas tu, Linda-Maria, tu suplantas

          Todas elas em graças e harmonias.

 

          As do Socorro, das Mercês, das Dores,

          As de Lourdes, do Carmo, do Rosário,

          Também souberam conquistar amores.

 

          Muitas outras conhecem minha história,

          Mas só tu, de Jesus,  és meu fadário,

          No supremo esplendor de eterna glória.

 

Domingos Fonseca (1903 – 1958), poeta repentista, considerado o maior do Piauí, nos últimos tempos. Nasceu em Miguel Alves e faleceu em Fortaleza. Publicou o livro Poemas e Canções, 1956. Em Teresina, no “Teatro de Arena” foi-lhe erigida uma estátua, merecidamente. J. Miguel de Matos, na Antologia Poética Piauiense, 1974, nos dá esse depoimento sobre o poeta: “Teresina, onde viveu seus dias mais infelizes, não pôde, certamente por determinismo, sentir o fogo crepitante do seu talento, porque a fogueira de sua genialidade, acesa por estes grotões, foi arder no Ceará, que guarda, com zelo de mãe, seus restos mortais, que bem poderiam estar valorizando o cemitério de São José, ali nas adjacências do Mafuá. Mesmo assim, mesmo desprezado pela terra que guarda o eco de seus primeiros choros e a ressonância de suas traquinagens de menino, Domingos Fonseca nunca esqueceu esta “Chapada do Corisco” e, num instante de libação etílica,  transido de saudade, pediu que eu escrevesse para ele, tão fácil era o verso para seu talento, num papel de embrulho  à falta de outro mais condizente com a luminescência do mister, estes versos que a saudade guiou o manejo de pena lírica: 

 

          Cedo, deixei a minha terra amada,

          Trazendo n’alma uma saudade ingente;

          Julgando, em breve, transformar-se em nada,

          Mas... enganei-me, continua ardente.

 

          Como poeta, não julguei que fosse

          Meu peito um cofre de saudade infinda;

          Minha esperança de voltar, findou-se,

          Mas a saudade continua ainda...

 

          Segue meus passos, vai comigo à cama,

          Está junto de mim quando desperto,

          Sempre a meu lado, contemplando o drama

          Dos viajores sem destino certo...

 

          Moço, e já tenho padecido tanto,

          Que a própria vida não me satisfaz,

          Meu coração é como um campo santo,

          Onde só mora quem não vive mais.

 

          Mas sou culpado do que me acontece,

          Ninguém minora os sofrimentos meus,

          Pois acredito que até Deus esquece

          O filho ingrato que abandona os seus.

         

Fez-me partir em lágrimas banhado

          - Qual barco errante, sem seguro porto:

          Razão por ser eu hoje um torturado

          Por saudade, tristeza,  desconforto.

 

          Para não ser meu sofrimento eterno,

          Para que chegue ao fim minha agonia,

          Se me prometes teu perdão materno,

          Eu te prometo regressar um dia...”

 

R. Petit (1894 – 1969), pseudônimo de Raimundo de Araújo Chagas, nasceu em Belém e morreu em Sorocaba, SP, mas a maior parte de sua vida útil viveu em Parnaíba, colaborando constante com os jornais, com o “Almanaque da Parnaíba” especialmente. Era trovador, poeta, jornalista, teatrólogo. Seus livros: Ante os Abismos da Vida, 1921; Livro de Miss Piauí, 1929; Nortadas, 1937. Escreveu  para teatro: Chuta, meu Bem, Noite Sertaneja, Caiçara. Autor do “Hino da Cidade de Parnaíba”. Deixou muitos inéditos. Participou de várias antologias, inclusive de A Poesia Piauiense do Século XX, 1995, organizada por Assis Brasil, de onde tirou-se o poema “Papagaios de Papel”:

 

          Quando eu era pequenino, venturoso,

          Meus lindos papagaios empinando,

          Dizia: - Não há nada mais pomposo

          Que um papagaio de papel voando.

         

                    Cresci!...

 

                    Hoje, tristonho, pesaroso,

          Esses brinquedos de papel, olhando,

                    Logo descubro o vulto carunchoso

          Dos que sobem a tudo se apegando.

 

          Tipos que sobem de alma feita em trapos,

                    Mostrando ao mundo, despreocupados,

                    Uma cauda nojenta, de farrapos...

         

                    Tipos de nulidade tão cruel!

          Que só sabem subir encabrestados

                    Como esses papagaios de papel.

         

Júlio Martins Vieira (1905 - 1984) foi professor durante décadas.  Pertenceu ao Cenáculo Piauiense de Letras e à Academia Piauiense de Letras. Exerceu também o jornalismo, imprimindo e enriquecendo com sua crítica e o característico humor. Poeta, sonetista, escreveu pouco. Publica Canto da Terra Mártire, 1977, reunião de seus poemas, já quase no fim da vida. Dele disse Menotti del Picchia: «Seu Canto, dentro do espírito do seu tempo, tem majestade, emoção e poesia.»

Eis um exemplo de sua poesia no soneto “Amor”:

 

          Bendita maldição que vem do inferno,

          Oh taça de veneno! Vandalismo!

          Loucura de viver, sofrer eterno,

          Sino do bem na sé do fanatismo.

 

          Amor! Fonte de fé, outono, inverno,

          Amor! Força, Matéria, Dinamismo,

          Que faz do ser vivente um verso terno,

          Que faz da abstração um concretismo.

 

          Amor, vinho do porto da Ventura,

          Punhais ornando em cruz e sepultura

          Da dor que se afogou no mar da Mágoa.

 

          Amor! Força matriz! Afinidade

         De corações que a lira da saudade

         Banhou nos olhos turvos rasos d’água.

 

 

Hermes Vieira (1911 - ?)  nasceu na Fazenda Caiçara, naquele tempo pertencente ao  município de Valença do Piauí, hoje Elesbão Veloso. Com poucos estudos, torna-se poeta popular, folclorista e cronista. Depois, como policial, conhece a Amazônia. Sua obra poética é comparada à Lira Sertaneja, de Hermínio Castelo Branco, pelo Prof. A.Tito Filho.    É autor de poucos livros: Nordeste, 1980, e Piauí Sertão, 1988, mas continua produzindo e guardando muitos inéditos. “Como Catulo, os poemas de Hermes Vieira não exploram apenas o interiorano ou a linguagem caipira, como são exemplos de vernaculismo...”, escreve Assis Brasil, em A Poesia Piauiense do Século XX, 1995. Só a estrofe abaixo seria suficiente para demonstrar: “Meu Nordeste a boi de carro. /  Carro de boi do Nordeste,/ Tosco, humilde, simples, charro, / Submisso e a nada investe, / Que arrastado estrada afora, / Range, grita, canta e chora / Ajoujado à canga agreste.”

Mas não podemos deixar de transcrever o soneto “Piauí”, abertura do livro Piauí Sertão:

                    Teus montes, as montanhas e as colinas;

Teus vales ubertosos, florescentes;

Teus campos matizados, sorridentes;

                              Teus brejos fabulosos de águas finas;

 

Teus rios, tuas fontes cristalinas;

                              Teus lagos pequeninos, transluzentes;

Teus bosques perfumosos, viridentes;

Teus belos chapadões, tuas campinas;

 

Teus ricos e pomposos estendais

De flores e de frutas naturais,

De lindas borboletas multicores;

 

De ledos e canoros passarinhos,

São tudo para mim dourados ninhos,

São bálsamos que acalmam minhas dores.

 

          Pedro Britto (1882 – 1955) é o nome literário de Pedro de Alcântara de Souza Britto. Historiador, contista, jornalista e poeta, nascido em Oeiras.  Em 1892, por ocasião do centenário de seu nascimento, a Academia Piauiense de Letras prestou-lhe uma homenagem, com a publicação do livro O Admirável Pedro Britto, organizado pelo Prof.  A. Tito Filho. Não tinha curso superior, praticava  a advocacia como rábula.  Espírito satírico e irônico - e como tal ainda hoje é reverenciado  -  mas essencialmente poeta de um lirismo de bom quilate. Volatas, seu livro de poemas, embora anunciado, não chegou a ser publicado. Segundo Bugyja Britto, o poeta era “um semeador de maviosos cantos” como este Estrada em fora:     

                   

Gerusa – eu parto tímido, silente,

                    Cansado viajor, mudo e tristonho...

                    Mas, ao partir, nos lábios teus deponho,

                    Dos meus beijos – um beijo onipotente!

 

                    Vejo de longe o teu perfil ardente,

                    Nas alvoradas místicas do sonho;

                    Do sol do teu amor branco e risonho

                    Eu quero um raio franco e permanente.

 

          De ti jamais me esquecerei, jamais,

          Enquanto palpitar-me o coração,

          Desfeito em dor, em pesarosos ais!

 

          Seja o teu nome um céu de luz, de calma,

          Harpa sonora, lira de Sião,

          Cantando hosanas dentro de minh’alma!

 

Luís Lopes Sobrinho (1905 - 1984),  magistrado, jornalista, professor e poeta, membro do Conselho Estadual de Cultura e da Academia Piauiense de Letras. Lírico, muitas vezes epopéico, outras satírico, principalmente quando versejava para celebrar as circunstâncias, onde sempre se portou com elegância e decência. Bom sonetista. Publicou Vozes da Terra, 1980, com seus versos mais preciosos. Livro póstumo: Herculano Moraes, com apoio da Academia Piauiense de Letras,  publicou o livro Em Prosa e Verso, Teresina, 2005, de onte tiramos o texto “Dúvida” , inicialmente publicada em jornal:

“Esta coluna é para você, Margot. Você que na terça-feira última tão bem, tão expressivamente, definiu a dúvida, esse sentimento de incerteza que tantas vezes martiriza a nossa alma e em tantas e tantas ocasiões solapa o nosso entendimento, perturba a nossa mente e esmaga o nosso coração. Essa crônica é para a Margot jornalista. Não para a Margot mulher, a Margot real e humana que não conheço, a Margot que não sei se é um  brotinho inteligente e brejeiro, como a Conceição Castelo Branco, se uma respeitável e virtuosa  mãe de família, como outras cronistas de nosso jornal.

É ela a Margot-inteligência, Margot-estilo, Margot-arte É, pois, para o transcendental que escrevo. Para o espírito.

Parabéns, Margot, pela delicada peça literária saída de uma inteligência iluminada, de uma pena admirável. Você foi muito feliz nos conceitos expendidos, dizendo tantas cousas belas em tão poucas linhas.

Mas você se referiu à dúvida  traduzindo desconfiança, suspeita, temor. Confesso-lhe, ilustre confreira, que, em referência à dúvida, sob esse aspecto, não na conheço, não na conheci jamais.

Sou um homem feliz. Ou melhor, sou um velho feliz, pois no último janeiro completei meus 65 invernos bem vividos.

Possuo uma mulher boa e honesta, a toda prova virtuosa e santa, que jamais me deu motivos para a mais leve consumição de dúvida.

Minhas filhas, herdeiras dos nobres sentimentos de honestidade e inteireza de caráter da mãe, também ainda não me arrastaram ao terreno doloroso e triste de uma dúvida, por pequena que fosse.

Mas você, Margot, esqueceu-se de definir a dúvida-incerteza, a dúvida-indecisão, esta que nos deixa às vezes num terrível dilema entre o bem e o mal, entre a locura de uma paixão e o dever a ser cumprido, entre um amor impossível e os laços indissolúveis de uma união, solenemente jurada aos pés do altar. Essa, Margot, a dúvida que conheci em minha mocidade, dúvida que me torturou a alma, que me confrangeu o coração.

Confesso-lhe, Margot, o meu pecado.

Ela era bonita, meiga e envolvente.

Apaixonei-me loucamente. Não me condena, Margot, sou poeta.

Se não fora, o senso de responsabilidade que infelizmente falta a muitos homens, certamente, Margot, eu teria resvalado para o abismo.

Venci, bondosa Margot,  mas sofri, sofri muito.

Eis aí, Margot, como descrevi o martírio da minha dúvida há trinta anos, irrefletidos, para que pensem e possam recuar em tempo, como eu, graças a Deus, procedi.

                         

                           Dúvida

   

       Melhor me fora nunca ter-te visto!

       Melhor me fora não te haver falado!

       Pois, se a razão me aponta a lei do Cristo,

       O coração me põe a lei do Fado!

 

      Dentro em meu ser, apavorado, assisto 

      À luta entre o dever e o sonho amado!

      Se não te vejo, já, não mais existo;

      Se te revejo, sou ressuscitado!

 

       Dura incerteza me tortura a vida;

       Cruel tormento me devora, enquanto

       Busco, sofrendo, a verdadeira paz!    

 

       Anjo divino! Ó minha flor querida!

       Não sei se te querendo peco tanto!

       Não sei se te esquecendo peco mais!            

         

Maria Isabel Gonçalves Vilhena, conhecida por Nenen Vilhena (1896 - 1988), era professora secundarista, poetisa e cronista. Segundo Hardi Filho, sua poesia «encanta pela doçura e pela leveza da expressão». Pertenceu também à Academia Piauiense de Letras. Bibliografia: Seara Humilde, 1940, e Nada, 1944. O poema “Alma das Coisas” é uma bonita mostra de sua alma também:

 

          Olhando a serra, lá distante,

          E o sol que sobre a serra desce,

          Escuto neste instante

          O pássaro feliz e as flores da campina,

          O arvoredo que vive sem saber

          Agasalhando a paz dos ninhos,

          Dizerem sua prece !

          E quando no horizonte o dia acorda,

          Na pompa da alvorada,

          À hora virginal do amanhecer,

          É para mim como se eu mesma visse

          O próprio Deus olhando para o mundo !

          Então, minha alma reza ajoelhada,

          Em silêncio profundo,

          A prece mais bonita que eu já disse

          E que a ninguém na terra vou dizer!

          Ao ver o rio deslizar sereno,

          Na sua vida plena de bonança,

          Nessa marcha saudosa de partida,

          Refletindo no espelho de águas mansas

          Um retalho do céu todo estrelado,

          Os ninhos e um pedaço da montanha,

          Eu o comparo àquele que, na vida,

          É bem feliz, porque o rio

          Sonha acordado...

          E sem saber que sonha !

 

Oliveira Neto, nome completo José Ferreira de Oliveira Neto  (1907 - 1983). Bacharel em direito, funcionário público federal. É daqueles que publicam muito tarde,  mas, uma vez iniciando, não deixam mais de publicar. Ícaro, 1951, foi sua estréia. Poeta prolífico. Foram nove livros, sem contar Trovas da Agonia, que saiu postumamente. Apesar de seu isolacionismo, sua forma de vida anti-acadêmica, aceitou entrar para a Academia Parnaibana de Letras (APAL). Selvagem é o soneto que melhor e mais simplesmente o exprime:

 

                    Dentro de mim existe uma floresta,

                    Mata virgem, esplêndida, selvagem.

                    Há um bugre espiando em cada fresta

                    Dos postigos de minha personagem.

 

                    Há senzala e um engenho de moagem,

                    Farinhada, alambique – obra modesta,

                    Patativas cantando na ramagem

                    E minha alma vivendo sempre em festa.

 

                    Há um rio gemendo e soluçando...

                    Cascatas, cachoeiras, pororocas,

                    Espumas alvacentas flutuando...

 

                    Eu sou o representante da beleza:

                    Dos astros, dos mendigos, das minhocas,

                    De tudo o que nos deu a Natureza!...

         

Almir Fonseca (1918 - 1972) é um poeta bem aproximado do simbolismo. Odontólogo e jornalista, não publicou livro em vida.  Marília, filha do poeta, reúne seus inéditos num único volume, com o título de Mensagem Poética, 1990. Melhor sonetista do que ele, no Piauí, somente Celso Pinheiro. Suas influências mais notadas eram Augusto dos Anjos e Cruz e Sousa. Basta o soneto “Mistério” para comprovar:

 

                    De onde vim?  Quem sou eu?  Para onde vou?

                    Perguntas que não foram respondidas,

                    E que ninguém jamais as explicou

                    Durante vidas, sucessivas vidas...

 

                    A inteligência humana aí parou;

                    Pois as respostas todas conhecidas

                    Não definem o que se perguntou

                    E permanecem incompreendidas...

 

Os filósofos, sábios, cientistas,

                    Físicos, químicos, naturalistas,

                    Há séculos estudam, sofrem, suam,

                   

                    E as respostas nenhum jamais achou:

                    - De onde vim?  Quem sou eu? Para onde vou?

                    E os profundos mistérios continuam...

 

                                

       NOMES MENOS CONHECIDOS

 

 

O Piauí tem sido muito fértil em poesia e os poucos prosadores quase sempre são poetas também, isto é, praticam o verso, especialmente nesse perído de 1930 a 1940. Considerados os seus escritos, não podem ser esquecidos os poetas e prosadores Ozires Neves de Melo, Wagner Cavalcante, Jesus Augusto Medeiros, Antônio Martins Castelo Branco, Machado Coelho e Moacyr Araújo Ferreira.  

 

Ozsires Neves de Mello (1905 – 1964) – Funcionário  do antigo Fomento Agrícola, para não sair de Piripiri, onde nasceu, quando transferido, pediu demissão e passou a ocupar o cargo de tesoureiro na Prefeitura Municipal. A cidade de Piripiri deu seu nome a uma rua  e criou, para sua  memóra, a Casa  “Osíres Neves de Melo”.  No Cenáculo, sua cadeira era a nº 6, patroneada por Antônio Chaves.  Poeta e prosador, na época era costume usar pseudonônimos e assinava matérias  como Ítalo Seven, Ítalo d’Alembert ou Ítalo d’Arentino. Dele, é tanscrito o soneto Romântico  

             

Como um sonho de luz, na minhas estrada

Passaste... E ao ver-te os olhos doloridos,

No grande anseio dos desiludidos

Parei a olhar-te de alma deslumbrada.

 

E na minha existência amargurada,

Na tristeza real dos meus sentidos,

Tu contaste aos meus sonhos comovidos

O poema de beleza iluminada.

 

Cantaste... E a tua voz,  serena e calma,

Espalhou, suavizando os meus abrolhos,

Doce consolação sobre a minha alma.

 

Hoje trago, nos sonhos meus perdidos,

A tua imagem dentro dos meus olhos

E tudo que cantaste, em meus ouvidos.

 

Da pesquisa feita pela Profª Cléa Rezende Neves de Mello e publicada com o título de Cenáculo Piauiense de Letras – Compromisso e Memória (1927-1997), escolhemos mais os seguintes autores e textos:

 

Wagner Cavalcante – Nasceu em 21 de dezembro de 1912. Membro do Cénaculo Piauiense de Letras, cadeira nº 04, que elegera para patrono Crommwel de Carvalho.  Sonetista. A amostra é de um dos primeiros poemas do autor.

                      

                      Transfiguração

 

Alta noite, entre a luz e os sulcos do espaço,

tendo a alma delirante e o espírito profundo,

sinto às vezes o ritmo e as essências do mundo

que torturam meu sonho e conduzem meu passo...

 

Beijos quentes de amor, que, entre vozes, confundo,

vibram cheios de sons, sem estranho compasso...

E o esplendor que me cerca e o silêncio que faço

são a glória e a emoção de um milagre fecundo...

 

Sombras mortas, sem gestos, e olhar que transfigura,

tudo aquilo que é sonho e que o sonho enclausura,

brilha sempre no céu, embora a terra o encarne...

 

          E  no espaço sombrio, alta noite, eu pressinto,

sob o canto do amor, na apoteose do instinto,

corpos feitos de luz... e almas feitas de carne...                                               

 

Jesus Augusto Medeiros  -  Nasceu a 29 de dezembro de 1906, titular da cadeiranº 14, do Cenáculo Piauiense de Letras, cujo patrono era  Mathias Olímpio de Mello. Assinava apenas Jesus Medeiros. Poeta, praticou o poema em prosa bem representativos da época:

                                        

                                         Pétalas Murchas

 

          Jazem no chão, fragmentadas, as pétalas murchas, arrojadas ali pela

impiedade de umas mãos frenéticas.

           De manhã, no esplendor do seu perfume estonteante, elas pediam da haste, na pompa magnífica de sua floração.

           Agora, são apenas ruínas inodoras, disse: - minadas e pisadas...

            Triste destino dessas pétalas murchas que, como as rosas de Malherbe cantou, só florescem no espaço de uma manhã de névoa.

                                      

                                      Terra torturada

 

            Lassidão em tudo. Nos campos desolados e nas serras. No ar parado.

Nas charnecas desertas. Na terra que esbraseia. Esse pedaço da natureza, onde há a desolação e o aniquilamento, onde nem urzes vegetam, seco, árido, combusto, miserável, parece sofrer na sua mudez perpétua e irremediável, a tortura secular de um destino ingrato como se um deus possante e enfurecido o acorrentasse para sempre, na desesperada e suprema inércia da terra que sufoca. Não há a doçura das sombras, a harmonia dos painésis coloridos, o claro dos horizontes dilatados. Nas suas entranhas não foi fecunda a semente boa, o seu solo não ouviu a cantiga doce dos ceifadores, o seu seio não recebeu o suor dos titãs do machado.

             É a terra torturada, a receber eternamente o castigo do sol sem misericórida.

                                                          

Antônio Martins Castello Branco – Nasceu  em 28.06.1911, ocupou a cadeira nº 9, do Cenáculo, que tinha como patrono Celso Pinheiro. Poeta de forte dicção e bons recursos, comparece neste rol com o poema “Estrada Torta”:

 

Caminho estreito, poeirento e torto,

Caminho torto, estreito e poeirento

É o desta vida só de sofrimento,

De misérias, de dor, de desconforto...

Da ventura, jamais achei o porto,

Só da desgraça me bafeja o vento,

E eu trago nalma o triste desalento

Dos que vegetam sem achar conforto...

 

Na minha frente já não vejo o bando

De brancas ilusões de cor nevada,

                        Que  pela estrada, mortas, fui levando...

 

Já nem um sonho me encoraja e alenta,

E vou seguindo pela mesma estrada,

- Estrada estreita, torta e poeirenta.

 

Só da desgraça me bafeja o vento,

E eu trago nalma o triste desalento

Dos que vegetam sem achar conforto...

    

De diversos jornais da época, através de pesquisa exaustiva realizada pela professora, escritora e pesquisadora Áurea Queiroz,  foi possível extrair  alguns textos bastante significativos, exceto o de  Berilo Neves, que foi colhido na internet:

               

            Machado Coelho, nome literário de Inocêncio Machado Coelho,  nascido em 17 de maio de 1907, membro do Cenáculo Piauiense de Letras, cadeira nº 28, cujo patrono era o acadêmico  Jonas da Silva. Uma lenda sob a forma de crônica é seuu texto mais signficativo,  encontrado nos jornais da época:

 

                               Lemda sempre renovada

                                                                  

– Canta, Colombina, uma canção ligeira como um sopro, porém capaz de encher a noite de harmonia!

E a Colombina, com os olhos cor de enxofre e a boca de coral,  pôs-se a olhar o céu cheio de estrelas e a sorrir vagarosamente.

Ele suplicou de novo, ajoelhando-se levemente e tangendo na bandurra uns sons nervosos que os dedos, esfolando as cordas, jogavam como beijos...

Ele ficou a sorrir.

Canta, Colombina!...

A taça como uma pequena mão aberta, em cima da banquinha era quase vazia. Pela cabeça dos dois a embriaguês do éter e da champagne bordava paisagens brumosas, figuras incompletas em danças descompassadas...

– Colombina, eu te amo!

A lua veio por cima dos dois espiar por uma abertura das folhas. 

O Pierrot alvo, sentimental, romântico olhou-a tristemente e murmurou:

– Tu és outra Colombina, mais esquiva do que esta...

Ela sorriu de novo. Nos seus olhos bailava ainda, como uma sombra, o vulto do homem audacioso, ousado, que a apertara na festa e machucara os seus lábios de seda num beijo largo e violento.  Ficara-lhe, como lembrança, o sinal imperceptível do beijo. Enquanto o Pierrot, amoroso, procurava conquistar a mulher pela alma e pelo coração, o outro a escravizara pelos sentidos.

Achava quase ridícula aquela figurinha esquisita, sempre lamurienta, do branco Pierrot, que só pensava em conquistá-la com versos e cantos.

O Pierrot, porém, insistia sempre:

– Canta, Colombina!

Ela fez, então, um gesto de enfado e saiu, num riso velado de ironia, pelo silêncio da noite.

                                                                   

                             

          Moacyr Araújo Ferreira, jornalista e prosador, nasceu a 12 de fevereiro de 1907, era membro do Cenáculo Piauiense de Letras, cadeira nº 23 (a publicação de Clea Rezende Neves de Melo não registra o nome do acadêmico-patrono). Capricho de mulher é uma espécie de conto daquela época.

                                                                            

                                            Capricho de mulher

 

 

Todas as tardes, na tristeza lilás dos ocasos, quando o sol entre nuvens de sangue e cinza desaparecia no infinito e a noite começava a descer com o seu manto de ébano sobre a cidade, a janela de uma casa simples se abria e a gente via que uma figura de mulher, pálida e linda, alta e esbelta, de cabelos de azeviche e os olhos escuros, como noites sem luar – olhos que nos parecem abismos insondáveis, melancolicamente se sentava junto ao balcão gótico da mesma e aí ficava a pensar, com a vista perdida no azul-roxo.

E assim os dias passavam e todas as tardes, à mesma hora, reproduzia-se a cena.

Toda mulher tem na vida um grande e misterioso segredo. Vamos conhecer o dessa.

Àquela hora mais triste do dia, sua casa se entregava ao maior silêncio, só se ouvindo, de quando em quando, o andar trôpego de uma mulher de cabelos brancos como a neve. Era a sua mãe. Vivia só.

A mulher pálida, sentada junto à janela pensava na vida. Na vida remota, no tempo que era esposa e senhora do homem que lhe conduzira, um dia, um dia de tarde cor de rosa, perante Deus.

A sorte ingrata havia-lhe arrebatado seu companheiro. Via que seus castelos de ilusões se desmoronaram, talvez, para não mais se edificarem. Sentia-se como um náufrago perdido em meio do oceano. Contudo, era moça, podia ser feliz ainda. Mas era mister que uma mão lhe arrancasse desse mar de tristeza.

Mas sempre essa melancolia a dominá-la? Que fazer? Sacudir esse manto de tristeza e procurar um homem que lhe pudesse manter no luxo em que vivera. Era sua resposta a essas interrogações. Mas esse homem não aparecia. É que o homem foge, principalmente, da viúva que deseja casar-se. Veio à sua imaginação um idoso comerciante. Seu fornecedor...

Todas as tardes, na tristeza lilás do ocaso, o negociante vinha lhe ver. Ela era indiferente a esse amor, porque a juventude não pode amar carnalmente a velhice.

Como são ridículos os velhos. A velhice é árvore que não dá mais fruto.

Ela, logo após, possuía lindos vestidos, joias caras, andando de auto, com muitos criados e um mundo de futilidades de mulher chique. Em troca do seu sacrifício, ela o trazia subjugado a seus pés.

Por último a fortuna foi-se esgotando. Não tendo mais dinheiro para manter a mulher, desprezado, suicidou-se.

A mulher seguiu a sua rota de luxo e conforto até onde o recurso a permitiu, depois, procurou novo arrimo. Queria agora mocidade e dinheiro. Travou relações com um estudante, filho de ricaços. Ele se apaixonou, desperdiçou  uma fortuna em orgias borgianas... Seu pai cortou-lhe a mesada.

Acabou-se o amor dela por ele com novo relacionamento – um oficial. Na alma do estudante ficou a saudade e a loucura do grande amor. Procurou na volúpia do álcool o esquecimento para essa paixão. Tornou-se um mendigo, um fantasma. Atirado nas sargetas, dorme. Desmantelou-se num capricho de mulher...

A vida é assim com os seus casos comuns e banais, mas profundamente humanos.

 

 

                                                        BERILO NEVES

 

 

Berilo Neves (1901 – 1974), nome literário de Berilo da Fonseca Neves, nascido em Parnaíba – PI, viveu a maior parte de sua vida no Rio de Janeiro, onde veio a falecer. Farmacêutico, militar, professor e jornalista, na sua época foi um dos mais festejados escritores brasileiros. Seu tema principal: a mulher, numa prosa irônica e às vezes sarcásica. Reformado como general do Exército.

Escreveu críticas para o Jornal do Brasil. Obras publicadas: A Costela de Adão, 1929;   A Mulher e o Diabo, 1930;  Língua de Trapo, 1934;  Século XXI, 1934; Cimento Armando, 1936, entre muitas outras. O conto selecionado para esta antologia foi publicado pela Editora Civilização Brasileira, em 1934, no Rio de Janeiro.

 

 

                                                        A última Eva

 

 

Quando o Malaquias (esse velho criado preto que me acompanha há vinte anos) me trouxe os jornais,eu ainda gozava esse vago torpor delicioso que é como o crepúsculo matinal do sono... Com desinteresse, e bocejando, abri o Diário da República, cuja primeira página estava ocupada, toda ela, por uma notícia de sensação, sob o título "O mundo despovoa-se de mulheres!" Corri os olhos pelo jornal e logo senti a grandeza da catástrofe. Começava, assim, a notícia do Diário da República:

               “Telegramas de todas as partes do mundo anunciam o aparecimento de uma epidemia cujos caracteres a tornam inédita na história epidemiológica do universo. É uma doença estranha, ainda não identificada pelos patologistas e que só ataca as criaturas de sexo feminino. Em 24 horas morreram, na Rússia, cinco milhões de mulheres. Os seus maridos, filhos, irmãos etc., nada sofreram,entretanto. Parece tratar-se.  de um germe até agora desco¬nhecido e cuja virulência só se revela no sangue das mulheres. Milionários norte-americanos,recém-casados, tomaram os seus iates ou embarcaram nos grandes transatlânticos com receio de que as suas esposas se contaminassem do terrível mal, cuja mortalidade tem sido, até agora, de 100%. Mesmo a bordo, porém, a doença se tem manifestado, tornando inúteis todas as medidas até agora adotadas no sentido de salvar da destruição o sexo de Eva. Segundo o cálculo dos cientistas, a não ser que se descubra um específico para a enfermidade, dentro de uma semana o mundo estará totalmente despovoado de mulheres. O sábio professor Banting, da Universidade de Filadélfia, acredita tratar-se de um espirito,de virulência excepcional e crescente”.

Tomei o meu café, lentamente, pensando no que seria o mundo sem as mulheres. A lembrança de  antigos amores reviveu, de súbito, no meu espírito, trazendo à flor da memória as alegrias e as torturas que eles me tinham acarretado. É verdade que, naquele momento, não gostava, realmente, de nenhuma mulher, mas quantos amigos meus, ainda estariam apaixonados pelas suas esposas, ou pelos sucedâneos delas? E as senhoras, tão distintas, das minhas relações, com quem me aprazia conversar, aos domingos, no footing vespertino de Copacabana, ou nos jantares dançantes do Botafogo? Toda aquela gente elegantíssima, perfumada, amando as belas frases e os belos automóveis iria morrer por aí,estupidamente, vítima de uma doença de que não se sabia, sequer, o nome?Essa perspectiva, tão sombria, que me encheu a fronte de suor, viria a realizar-se, infelizmente, mais depressa do que o imaginava. A tarde, já os jornais registravam os primeiros casos da moléstia que eu resolvi chamar, de conta própria, a ginacose.

A Academia de Medicina, depois de três dias de discussão, aceitou o neologismo que batizava a moléstia, mas não conseguiu arranjar um remédio para as vítimas dela... E eu via a cidade despovoar-se de mulheres como uma praça forte ameaçada pelo inimigo. A avenida, dantes tão iluminada de toilettes e sorrisos de mulher, ficou sombria e triste. Os homens, de luto, passavam cabisbaixos e pensativos. A ausência das damas caiu como uma catástrofe, na alma dos homens. Elas eram - coitadas! - excelentes motivos ornamentais... Como é que se poderia, agora, dar um baile, sem mulheres?... Ou animar o banho de mar, sem os seus corpos nervosos, fremindo, seminus, sob o tecido fino dos maillots...?

No dia primeiro do mês, milhares de homens (sobretudo os noivos) tinham-se suicidado. Alguns andavam alegríssimos, mas disfarçavam a satisfação sob um sorriso convencional e uma frase triste:"Coitadas! Quem diria, hein?...  E fingiam que enxugavam uma lágrima ao canto do olho. E a cidade ia retomando, aos poucos, o ritmo comum da sua vida, quando uma notícia sensacional a envolveu, de ponta a ponta: tinha-se descoberto uma mulher em uma das ilhas da baía! Era moça, de 17 anos, e de uma beleza estranha. Segundo explicaram, mais tarde, os sábios da Academia de Medicina, essa moça, de compleição robustíssima, tinha no sangue uma substância qualquer (uma emolisina, se me não engano) que neutralizara o tóxico secretado pelo espirito inimigo das mulheres. O fato é que o governo teve que recolher a dama à Casa da Moeda, como um tesouro, porque 1.200.000 homens se tinham proposto, ao mesmo tempo, para seu marido. A dama, que era pobre e tinha pelo casamento uma atração ingênua,quase enlouquecera de alegria, e ficara indecisa entre milhares de moços e velhos, ricos uns, poetas outros,apaixonados e amantes quase todos...O presidente da República propusera-lhe casamento sob pretexto de precisar garantir a continuidade da espécie e a salvação do gênero humano, mas, logo, os ministros também se candidataram e ameaçaram o Estado de uma revolução sangrenta. Ia resolver-se o caso por meio da loteria (entrando como candidatos apenas os homens principais da República) quando se soube que a moça fugira da Casa da Moeda com o tenente comissionado da guarda. A decepção, nas altas esferas administrativas, foi, como pode imaginar-se, violentíssima. Por toda parte mobilizaram-se forças à procura dos fugitivos, que foram, afinal, encontrados em Mato Grosso, vivendo, poeticamente, à margem do rio Paraná. Fuzilado o tenente, guardou-se a dama entre ferros, de sentinela à vista, numa fortaleza da Barra. Cinco dias depois apareceram mortos os guardas, e a fortaleza sublevada: o comandante fugira com a única Eva do mundo.A esse tempo chegavam, do estrangeiro, as mais tentadoras propostas ao nosso governo, para ceder a dama. Os Estados Unidos dispensavam todas as dívidas e ainda nos mandavam 26.000.000.000 de dólares em ouro. Isso representava a salvação da nacionalidade. Mas onde estaria, àquelas horas, a mulher fatal?Um mês depois, um telegrama do chefe da estação de Jacareíva, no Paraná, anunciava a queda de um avião naquelas proximidades. O raptor morrera e a dama estava ferida. Transportada em um navio de guerra, para a capital da República, o governo internou-a numa casa de saúde guardada por 10.000 homens em armas, com canhões e metralhadoras. Ia fechar-se o negócio com os Estados Unidos. Do Rio a San Diego foi uma esquadra inteira, comboiando a única mulher que existia na Terra. Naquele país, porém, ocorreram tantas desgraças por sua causa que o governo yankee resolveu dar outros 26.000.000.000 de dólares para que ficássemos com ela. Aceitamos o negócio, que nos fazia, de repente, riquíssimos. Infelizmente, ao pisarem terra pátria, rebentou uma revolução que tinha como intuito principal eliminar o presidente da República, indigitado noivo da rapariga. Uma parte da tropa, fiel ao governo, entrincheirou-se numa fortaleza, com a dama fatídica. A notícia de que a única mulher do mundo estava a dois passos da avenida enlouqueceu os rebeldes. Durante três dias e três noites sitiaram o forte e arrasaram-no a bala. A última Eva foi encontrada entre os mortos com o coração atravessado por uma estocada. Dizia-se que fora morta por um sargento que perdera o juízo ao vê-la ao alcance de sua mão e de seu desejo. Enterrada por um grupo de soldados, muitos cidadãos tiveram notícia do lugar para onde lhe tinham levado o corpo e assaltaram-no, à noite, com as armas na mão. Foi resolvido, afinal, incinerar-lhe o cadáver para pôr termo à pendência, e as suas cinzas, perfumadas a "mitsouko" por um dos seus milhares de adoradores, foram espalhadas a 1.000 metros da praia, em Copacabana. Assisti, chorando, àquele espalhar de poeiras que eram o resumo de 40 séculos de amor e de ilusão... Ao outro dia, o mar, em Copacabana, amanheceu revolto. Avançando 100 metros sobre a praia,destruiu a Avenida Atlântica e só amainou depois que lhe espargiram, no dorso violentíssimo, as cinzas de um homem...

 

                                            

 

                                A CRÍTICA E OS CRÍTICOS

 

           A época da geração do Cenáculo Piauiense de Letras foi pobre em criatividade literária. Equivale a uma belle époque desgarrada no tempo, nesta província praticamente ilhada e sem mar, aonde as notícias e a literatura do Centroeste (Rio e São Paulo) vinham tardiamente, já desbotadas e amarrotadas - se chegavam. Não havia crítica literária, daí porque o que florescia era a poesia, geralmente de galanteio e amorosa como vimos e a crônica social.

           Mas, como diz a crônica de Mocyr da Costa Ferreira, “a vida... com seus casos comuns e banais... profundamente humanos” era rica de beleza. Na pequena burguesia e nas principais cidades como Teresina e Parnaíba a arte era quase coisa do passado. Contava com a existência heroica de uma revista literária O Almanaque da Parnaíba e nada mais, além de jornais e pasquins. O que valia era o presente, um presente feliz, daí por que não havia necessidade de crítica, salvo a política e religiosa, que infestava a imprensa. 

           Colhemos este pequeno exemplo de crítica válida, de autoria de Veras de Holanda, poeta que conseguiu alcançar, medrosamente, o verso modernista, como será registrado no capítulo MODERNISMO. Crítica substanciosa, embora louvaminheira, onde situa um pouco do gosto literário da época.

                                     

                                      Choro verde

 

Não há choro verde, como não há choro azul, nem vermelho, nem preto, nem róseo, nem lilás, etc. Só há choro branco, dirão. Martins d’Alvarez, no entanto, concebe-o no fulgor de sua ardente imaginação criadora. Fez um livro de versos e chamou-o  – “Choro Verde”.

Acham extravagante o título?

Eu o defendo: há choros de todas as espécies e de todas as cores. Cada qual verte o seu pranto conforme as suas mágoas. Azul é o choro do firmamento nas tardes silenciosas da evocação. Ninguém o vê, cai sobre as franjas dos horizontes longínquos e se espalha depois sobre a terra, transformando em suaves cintilações de estrelas, em tranqüilos resplendores de ouro. Vemelho é o choro surdo das cicatrizes veladas no coração. É o choro das rosas cor de sangue do outono.  Preto é o choro angustioso dos desgraçados. É o choro negro dos grandes infelizes. Róseo é o choro das noivas. É o choro que nasce do amor e se cristaliza n’alma, povoando a vida de sonhos acariciadores. Lilás é o choro-afeto e carinho. É o choro que se não define. É o choro amantíssimo das mães. Verde é o choro das folhas verdes, machucadas por mãos de virgens. É o choro das esmeraldas e das ametistas. Verde é o choro da esperança, verde é o CHORO VERDE  do poeta que surge.

          Abramos o livro. Divide-se em três partes:

– Horas do coração

– Horas do cérebro

– Horas da alma.

A primeira foi feita para os que amam, a segunda para os que pensam e a terceira para os que sofrem.

Não indaguemos a que Escola pertence o poeta. Que nos importa a cor da chita? O que devemos saber é se é tinta segura.

Se Hermes Fontes, parnasianista, valia uma geração de poetas, Ronald de Carvalho, modernista, assinala uma época.

Libertemo-nos de toda e qualquer corrente literária. Não as consideremos como existentes. Escrevamos à vontade. A arte não tem limites. Não deve, portanto, se prender ao rigorismo ou desprendimento de uma determinada Escola. A arte é o artista. O momento é que o faz. Só ele, pois apenas ele deve saber como principiar ou acatar a sua obra.

Há, em Martins d’Alvarez, uma grande virtude: É simples e espontâneo. Os seus versos são correntes como os veios d’água da nossa terra selvagem, da nossa terra queimada de sol. Como Bastos Portela,  Martins d’Alvarez não compreende o século que se passa sem um pouco de “rouge” ou de “baton” nos lábios frívolos dessas melindrosas sapecas.

Vejamos:  “Gosto sem distinção de todas elas! / Mas prefiro as bonecas de bombons, / As bonequinhas simples, tagarelas, / Comuns,  misto de rouge e de batons”.

            O poeta é irônico e na sua ironia está o menospreso com que encara com que encara as coisas deste velho mundo. Ele é quem nos diz:

                   “No meio deles, vivo satisfeito,

                     Numa futilidade harmonizada.

                     Não vês? Longe do amor, do preconceito,

                               A vida é uma “ pilhéria apimentada”...

            E mais adiante:

                            “A vida é para os fúteis,

   Para os adoradores do matiz!

                               Todas as realidades são inúteis,

                               Quando a gente deseja ser feliz.

                               Se ser fútil é iludir amarguras hostis,

                               Se ser fútil é vencer o travo da verdade,

                               Bendita seja esta ilusão feliz,

                               Bendita seja esta futilidade”.

            

Bem, não é preciso mais. Não há joio a separar do trigo. O poeta é poeta. Neste ritmo e nesta suave espontaneidade, vai longe. Seu livro é bom. Mando-lhe o meu aperto de mão pela feliz estreia e faço ponto aqui.

 

                                                                              Veras de Holanda

 

 

                                          DIGRESSÃO II  

 

                                                                                        

             A que seria a terceira geração da literatura do Piauí, resultante do envelhecimento ou morte dos  participantes da geração acadêmica, fundadora da Academia Piauiense de Letras, não possui marco nem feição, pois foi   atabalhoada pela fundação do Cenáculo Piauiense de Letras em 1927, entidade de jovens jornalistas, que se estabeleceu como geração, prolongando-se até o advento do Modernismo. Assim, considera-se que o Piauí teve um período de quase vazio literário - a geração perdida - do final do anos 1930 e começo dos 1940, porém cheio de professores e gramáticos, os quais  bisextamente praticavam a poesia, a crônica e a crítica literária.

            Nomes representativos da cultura piauiense, nesse período, não podem ser desprezados, embora tenham ficado no meio termo entre a geração do Cenáculo Piauiense de Letras e a chegada dos reflexos do Modernismo. Clemente Fortes (1914 – 1974), um dos fundadores da Faculdade Católica de Filosofia do PiauíCromwell Barbosa de Carvalho (1883 – 1974), um dos fundadores da Faculdade de Direito do Piauí; e José Pires de Lima Rebelo (1885-1940), natural de Barras, formado em Direito no Rio de Janeiro, depois fixando residência em Parnaíba, onde, durante cinco lustros, dedicou-se ao magistério, sendo glorificado com o cognome de O Preceptor da Parnaíba, não podem ser obliterados nesta história. Lima Rabelo publicou obras didáticas, ensaios e discursos, de cujos trabalhos a Academia Piauiense de Letras fez uma antologia, publicando-a com o título de Lima Rebelo –  o Homem e a Substância,  Teresina, s/data.       

Outros intelectuais que caracterizaram esses anos:  Luiz Mendes Ribeiro Gonçalves (1895-1984), professor,  crítico literário, senador da República nas legislaturas iniciadas em 1935 e 1947, engenheiro de renome, diretor da Secretaria de Obras Públicas no período de 1916 a 1930, publicou Impressões e Perspectivas, onde tece algumas considerações críticas sobre autores piauienses, especialmente a obra de William Palha Dias, além uma série de poemas; e Cláudio Pacheco (1909-1993), poeta, romancista, professor, historiador, constitucionalista, deputado estadual (1935) e suplente de senador da República, chegando a ser Conselheiro da Delegação do Brasil à Assembléia da ONU (1957). Obras: História do Banco do Brasil (5 volumes), As Pedras Ficaram Magras (romance) e Luzes e Águas na Planície (poesia).

Porém muito pouco florescia naquele tempo a escritura literária propriamente dita.

Já os gramáticos e latinistas granjeavam reconhecimento e fama, não ocorrendo, entretanto, a publicação dos seus trabalhos, salvo os mais ligeiros, de que a imprensa se assenhoreava. Registrem-se as publicações tardias do Prof. Antônio Soares da Silva (Português sem Auxílio do Professor, 1955) e do Prof. Antônio  Veríssimo de Castro - Tonhá (Adornos de Palavras, 1959).

           Outros nomes não podem ser totalmaente esquecidos: Moura Rego (músico, poeta e romancista), Arimathéa Tito (pai), José Vidal de Freitas,  Pedro Borges, Vidal da Penha Ferreira e Ulisses Pereira da Silva, todos poetas, e mais Souza Neto, ocupado com seus trabalhos jurídicos, o qual deixou para escrever literatura  (um romance) já no final da carreira.

É um tempo confuso e difícil também politicamente, pois que recortado pela primeira e segunda guerras na Europa e pela ditadura no Brasil. Martins Napoleão é, de longe, o nome mais forte representativo no Cenáculo Piauiense de Letras e no MODERNISMO, ultrapassando essas gerações em quantidade e qualidade.  Mas na prosa  quem  se sobressai é Berilo Neves, com seus romances satíricos, especialmente contra a mulher. São dois nomes que alcançaram o patamar nacional, em virtude talvez de morarem no Rio de Janeiro.

 Uma observação a mais: - O que até então foi definido como «geração literária» tem pouca semelhança ou proximidade com a proposta de Ortega y Gasset, onde predomina a biologia (indo a distância entre uma e outra a, no máximo, 15 anos). Não obstante jogar com a dissincronia, aqui interessam mais os princípios estéticos e o modo de escrever dos participantes do que mesmo a idade, embora, em alguns  casos, esta possa pesar também.

Foi assim que o Piauí recebeu os reflexos da época brasileira que teve como prógonos e mentores Rui Barbosa e Coelho Neto, onde a forma era tudo;  a gramática, o livro de cabeceira de qualquer beletrista;  e a Réplica, de Rui Barbosa contra o Prof. Carneiro Ribeiro, o livro sagrado.

          No Piauí, o mestre Higino Cunha, tal como o Prof. A. Tito Filho, depois presidente da Academia Piauiense de Letras por mais de 20 anos, ambos jornalistas, oradores, historiadores e sociólogos, seriam os lídimos expoentes do período, em virtude da influência que exerceram na juventude,  através de ensaios filosóficos e literários de magnitude, da empolgante oratória e da militância na imprensa, sob cujo intelectualismo e cerebração escondiam o sentimento e a beleza de suas emoções.  

          Porém, louve-se o caso do Prof. A. Tito Filho, que, talvez por ser mais novo, conseguiu ultrapassar as barreiras desse tempo e ingressar na modernidade, com o grupo da revista Meridiano, como se verá mais tarde.

 

                              

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