SEGUNDA GERAÇÃO

 

SEGUNDA GERAÇÃO

         Academia Piauiense de Letras

                                      

                             

Em 1901, encerrada praticamente a onda da poesia romântica e do cancioneiro dos  vaqueiros, houve a tentativa de criação de uma sociedade literária que seria a Academia. Era o início da geração acadêmica, somente consolidada com a efetiva fundação da Academia Piauiense de Letras  em 30 de dezembro  de 1917. 

No limiar dessa nova geração do começo do século, encontra-se o poeta  Taumaturgo Vaz. Poesia terna, simples, espontânea, segundo Herculano Moraes. Marca o período de transição entre a poesia popular/folclórica e a parnasiano/simbolista adotada pela geração acadêmica, no Piauí.

          A Academia Piauiense de Letras é a mais antiga, permanente, ininterrupta instituição cultural do Estado.  Essa segunda geração da nossa literatura, ou segundo período, abriga não somente os que fundaram a Academia, mas todos aqueles que viveram aquela época, beberam as doutrinas filosóficas da Escola de Recife e trouxeram o novo para sua terra. Também os que aqui ficaram  e  passam a comungar com os que vinham chegando.

            Foram fundadores da Academia: Lucídio Freitas, João Pinheiro, Celso Pinheiro, Higino Cunha, Clodoaldo Freitas  (pai de Lucídio e Alcides Freitas), o próprio Lucídio Freitas, mais Jônatas Batista, Antônio Chaves, Baurélio Mangabeira, Edson Cunha e Fenelon Castelo Branco.  

            Alcides Freitas, falecido em 1913, portanto antes da fundação, ficou com patrono da cadeira nº 9, cujo primeiro titular foi seu irmão Lucídio Freitas.

            Outros nomes igualmente importantes da geração:  Abdias Neves, Félix Pacheco e Da Costa e Silva. Estes não participaram da fundação, mas posteriormente foram chamados a integrar o quadro da imortalidade acadêmica.            

 

  NOMES  EMBLEMÁTICOS

                           

                       

Lucídio Freitas (1894 - 1921), poeta, jornalista, crítico literário,  jurista e professor, bacharelando-se em Direito com apenas 19 anos, pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro.  Morou algum tempo no Pará, exercendo o magistério e a magistratura, em Belém. Foi o principal fundador da Academia Piauiense de Letras e ocupante da cadeira nº 9. Publicou Alexandrinos, 1912, em colaboração com seu irmão Alcides Freitas; Vida Obscura, 1917, Minha Terra, 1921, todos de poemas, deixando alguns trabalhos inéditos no campo da história literária e afins.  Questões Processuais, publicado em 1919, foi sua dissertação de concurso à Faculdade de Direito do Pará. Poeta de muita imaginação, grande sonetista, obteve as melhores referências, inclusive de poetas e críticos nacionais de sua época, como por exemplo Peregrino Júnior: «Os seus versos podem e devem figurar em todas as antologias do Brasil, porque são dos mais significativos que nossa literatura possui.»

          «A meu Pai» é escolhido por João Pinheiro, que declara ser «uma das mais artísticas laudas do seu último livro de versos»:

                   

Esqueço todo o bem que, em minha estrada,

                    Prodigamente, como um Deus, semeio,

                    Fazendo meu o sofrimento alheio,

                    Amparando toda alma abandonada.

                   

                    Quantas e quantas vezes tenho em meio

                    Da vida, dentro a noite erma e gelada,

                    Confortado a velhice desgraçada,

                    Na mornidão amiga do meu seio!...

 

                    Para servir aos meus irmãos padeço

                    E dou-lhes a água e o pão, o teto e o leito

                    E o beijo que consola e que bendiz...

 

                    Mas todo bem que faço logo esqueço

                    Para guardar apenas no meu peito,

                    A saudade de um bem que nunca fiz... 

         

Mas não se pode deixar de ver «A minha Terra», seu soneto mais perfeito e que diz muito do sentimento piauiense.

                   

Teresina apagou-se na distância,

                    Ficou longe de mim, adormecida,

                    Guardando a alma de sol da minha infância

                    E o minuto melhor da minha vida.

 

                    E eu sigo, e eu vou para a perpétua lida.

                    Espera-me, distante, uma outra estância...

                    É a parada da luta indefinida,

                    É minha febre, minha dor, minha ânsia...

 

                    Como são infinitos os caminhos!

                    E como agora estou tão diferente,

                    Carregado de angústias e de espinhos!...

                   

                    Tudo me desconhece. Ingrata é a terra.

                    O céu é feio. E eu sigo para a frente

                    Como quem vai seguindo para a guerra...

         

No período há uma certa indefinição entre parnasianismo e simbolismo - que eram as grandes correntes da  poesia nacional.

          Havia de sobra, na geração acadêmica, sonetistas de grande valor. De modo geral, os grandes poetas eram sonetistas e vice-versa. Difícil é saber quem melhor soneteou: Da Costa e Silva ou Celso Pinheiro? Antônio Chaves ou Jonas da Silva? O próprio Clodoaldo Freitas, mais prosador que poeta, compõe belíssimos sonetos, assim como Abdias Neves.

 

          Da Costa e Silva (1885 - 1950),  cujo nome completo é Antônio Francisco da Costa e Silva,  forma-se em Direito, na Escola de Recife, em 1913. Já era escriturário da Delegacia Fiscal do Tesouro Nacional, emprego que assume  em 1910, através de concurso público. Como funcionário do Ministério da Fazenda, serviu em diversos Estados: São Luís, Minas, São Paulo, Rio, Rio Grande do Sul. Nas suas viagens, de passagem por Salvador, tentou matricular-se na Escola de Medicina. Homem inquieto, segundo descrição de Mário Rodrigues (citado por Pedro Nava), aos 23 anos, “era um rapaz anêmico, de espáduas estreitas e olhos estrábicos, imberbe e luminosamente feio”. Nessa época, por causa de sua figura física, foi reprovado por Rio Branco para a carreira diplomática. 

Sangue, seu primeiro livro, publicado em Recife, 1908, teve grande sucesso.  Depois vieram  Zodíaco, em 1917;  Verhaeren, em 1917;  Pandora, em 1919;  Verônica, 1927. Outros trabalhos, em prosa e verso, foram estampados na imprensa, entre 1928 e 1933. Os poemas que constavam nos seus papéis como pertencentes a Alhambra, cujo livro não chegou a publicar, eram dessa última fase.  A crítica do país inteiro já se manifestara e continuava aprovando o “Poeta da Saudade”, de livro para livro. Talvez por isto e porque estivesse acossado pela doença que o dominaria, Da Costa e Silva organiza e publica a Antologia Poética, em 1934, onde reúne o que achava definitivo em sua obra. Já várias edições dessa Antologia saíram depois de sua morte, graças ao amor, zelo e competência de seu filho, também poeta, Alberto da Costa e Silva.

          “Saudade”, já no seu primeiro livro, dá muito bem a medida do poeta:

                   

                    Saudade! Olhar de minha mãe rezando,

                    E o pranto lento deslizando em fio...

                    Saudade! Amor da minha terra... O rio

                    Cantigas de águas claras soluçando.

 

                    Noites de junho... O caburé com frio,

                    Ao luar, sobre o arvoredo, piando, piando...

                    E, ao vento, as folhas lívidas cantando

                    A saudade imortal de um sol de estio.

 

                    Saudade! Asa de dor do Pensamento!

                    Gemidos vãos de canaviais ao vento...

                    As mortalhas de névoa sobre a serra...

 

                    Saudade! O Parnaíba – velho monge

                    As barbas brancas alongando... E, ao longe,

                    O mugido dos bois de minha terra...

                   

          Do segundo livro é “A Moenda”, soneto também bastante conhecido, recitado, imitado e parodiado de norte a sul do Brasil:

 

                    Na remansosa  paz da rústica fazenda,

                    À luz quente do sol e à fria luz do luar,

                    Vive, como a expiar uma culpa tremenda,

                    O engenho de madeira a gemer e a chorar.

 

                    Ringe e range, rouquenha, a rígida moenda;

                    E, ringindo e rangendo, a cana a triturar,

                    Parece que tem alma, adivinha e desvenda

                    A ruína, a dor, o mal que vai, talvez, causar...

 

                    Movida pelos bois tardos e sonolentos,

                    Geme, como a expiar, em doridos lamentos,

                    Que as desgraças por vir sabe-as todas de cor.

                   

Ai! dos teus tristes ais! Ai! moenda arrependida!

                    - Álcool! para esquecer os tormentos da vida

                    E cavar, sabe Deus, um tormento maior!

         

Da Costa e Silva é o maior poeta da terra. Ele encarnou toda a piauiensidade em sua vida e nos versos que compôs, sem deixar de ser um poeta do orbe. Cantando sua saudade, o rio Parnaíba, Amarante, sua gente, seus sentimentos, numa leveza, numa naturalidade impressionante, vai acompanhando a evolução da poesia brasileira até a Semana de 22. Seus últimos poemas são a comprovação. De Alhambra, extraímos “O Carrossel Fantasma”:

 

          Ganhei o dia a meditar na minha vida,

          porque a saudade me levou à longínqua Amarante

          que cisma, talvez por mim, debruçada sobre as águas

          lentas e sonolentas do Parnaíba

          a rolar para o mar como eu para o mistério...

          Então, num sonho de criança convalescente,

          vem-me à memória o carrossel que fascinava,

          no seu giro constante, os meninos de minha idade:

          Cesário, Luís, Holanda.... meus irmãos Nica e Joca,

          na vertigem do carrossel arrebatados tão cedo!

 

          Tal qual o largo da matriz em noites de novena,

          meu pensamento se ilumina de uma luz ardente e doce

          como a dos balõezinhos pendentes dos arcos verdes,

          festonados de folhagem e frementes de bandeirolas...

          E vejo, com os olhos de hoje, ao fundo do largo em festa,

          o mesmo carrossel ruidoso da minha ruidosa infância,

          rodando... rodando... rodando continuadamente...

 

          Eu fui o mais feliz dos meninos do meu tempo:

          gastava todas as moedas das imagens que fazia

          (já tinha o dom divino de um criador de imagens)

          a dar voltas e voltas nos cavalos de madeira,

          que galopavam automaticamente feito cavalos árabes...

          Era arrogante e destemido que nem os vaqueiros da minha terra,

          quando galgava o lombo de um desses pégasos sem asas,

          mas nem por sombra imaginava o meu destino de poeta...

 

          O carrossel parou no largo... mas não parou a vida....

          Continua em meu sonho, rodando... rodando sempre...

          E andando e desandando, num ritmo contraditório,

          ainda me dá a alegria inevitável de dar voltas...

          de girar, de rolar como os astros no espaço,

          de elevar-me a um destino superior ao do planeta,

          que em torno da sua órbita, como um símbolo, roda..

 

Upa!  upa!  meu pensamento!.

 

Celso Pinheiro (1887 - 1950), um dos poetas mais prolíficos da literatura do Piauí, faleceu no mesmo dia em que Da Costa e Silva. Havia publicado apenas Almas Irmãs, coletânea de poemas em conjunto com Zito Batista e Antônio Chaves, em 1907, e Flor Incógnita, em 1912, quando a Academia Piauiense de Letras, reconhecendo seu valor, editou-lhe o volume Poesias, 1939, com 542 páginas, numa reduzida tiragem de 500 exemplares. E foi tudo o que viu publicado antes de falecer, exceto as dezenas e centenas de outros poemas que estampou em jornais e revistas do seu tempo. Deixou inéditos 25 volumes, sendo apenas dois de prosa. Deles, Hardi Filho extraiu alguns sonetos que foram publicados como apêndice de  Poesia e Dor, no Simbolismo de Celso Pinheiro, em 1976, reeditado em 1987.  Segundo o citado estudo crítico, “ninguém melhor do que Celso Pinheiro soube externar a sensação dolorosa  em todas as suas nuanças e expressões de vivência. Ninguém como ele, no Brasil e quiçá neste lado do mundo,  pôs a nu o sofrimento do ser humano, suas limitações, ânsias, esperanças, conflitos e desejos, com tanta harmonia, engenho e arte.

Ilustrativo é o segundo soneto que, praticamente, abre Poesias, pois o primeiro é uma espécie de prefácio. Normalmente os sonetos de Celso Pinheiro, nesse livro,  não possuem título, como este:

 

          Bendita seja a minha Dor! Bendito

          seja o punho de amor do Sentimento

          que me prega na cruz do Pensamento

          com marteladas secas de Infinito...

         

          Bendito seja o Pássaro Maldito

          do meu Ser, no seu rude isolamento,

          amando a catedral do Sofrimento,

          na mudez eloquente do granito...

 

          Dá-me a beber mais trágicos venenos,

          ó jardineira pálida e formosa

          do jardim tenebroso do meu fado!...

 

          Pois que bendito é quem possui ao menos,

          entre tanta inconsciência dolorosa

          a consciência de ser um Desgraçado!...

 

Mas não somente de dor o poeta se nutre. Há verdadeiras jóias de amor de sua pena.

 

          Minha, só minha, só, unicamente minha!...

          as tuas mãos de luar, macias e cheirosas,

          os teus seios ardendo em músicas de rosas,

          a tua boca ideal, ó pérola marinha!

 

          É minha a tua carne, a fulgurante vinha

          que tem uvas de sangue, etéreas, luminosas,

          e resplende na luz em ânsias ondulosas,

          minha, só minha, só, unicamente minha!

 

          Minha toda tu és!  A graça, o enlevo, o encanto,

          a blandícia do olhar, a alva melancolia,

          o dealbar do sorriso e o estelário do pranto!

 

          É minha a exaltação, minha a esperança, minha

          a glória de te ter nos meus braços um dia,

          minha, só minha, só, unicamente minha!...

 

Funcionário público, cronista e conferencista, Celso Pinheiro foi sobretudo poeta, e nunca é um poeta cerebral. Ele, ao contrário do andejo  Da Costa e Silva, nunca morou fora do Piauí. Mas, por onde ia, recitava seus poemas. Sua simplicidade de inspiração toca o singelo coração do povo.

A geração acadêmica é, sabidamente, pródiga em poetas. Porém, justiça se faça, deu também alguns prosadores de peso.  Mas até os estritamente prosadores fizeram poesia. Ou seja, eram polígrafos. Assim foram Clodoaldo Freitas, Higino Cunha, Abdias Neves, João Pinheiro e o próprio Esmaragdo de Freitas.

 

          Clodoaldo Freitas (1855 – 1924)  bacharelou-se na Faculdade de Direito de Recife, em 1880. Sua atuação sócio-cultural não se cingiu apenas ao Piauí e Pernambuco: estendeu-se  por outros Estados (Amazonas, Pará, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Rio de Janeiro). Atuante como jornalista, político e magistrado. Mas sua ação maior avulta na literatura, deixando publicadas cerca de 14 obras e muito mais inéditas. Começou com Os Fatores do Coelhado, 1892, obra política, e entrou pela história com História do Piauí, 1902. Praticamente, o que se conhece hoje de Clodoaldo Freitas se resume a História de Teresina,  Em Roda dos Fatos (crônicas) e Vultos Piauienses (crítica),  todos reeditados pela Fundação Cultural Monsenhor Chaves, de 1988 em diante.  Mas foi também contista e romancista, além do poeta já conhecido de poucos e bons sonetos.

          Na sua História da Faculdade de Direito do Recife, Clóvis Beviláqua assim se expressa a respeito de Clodoaldo: “Inteligência superior, possuindo largo preparo literário e filosófico, tendo-se ensaiado em várias direções, (...) foi principalmente jornalista vivaz, solerte, elegante e maleável, para quem não havia assunto árido, e cuja pena mais se enriquecia em vibrações e mais se aligeirava no produzir, quanto mais dela exigiam a circunstâncias.”

          Para  mostrar a prosa de um livre-pensador, destaque-se uma página do livro Em Roda dos Fatos:

         

Aproxima-se o dia dos mortos!

          Entremos no campo santo. Aqui dormem no sono exaustivo da morte os que descansam da peregrinação terrestre e se afundaram no eterno não ser, nesse abismo insondável, de que todas as religiões pretendem medir a extensão e explicar os mistérios.

          Como filosofava o poeta de Hamlet, ninguém nunca voltou da viagem às terras desse país desconhecido e longínquo, cujas raias ninguém pode atravessar duas vezes.

          Todos sonham referindo-se a esse sono sem sonhos. É nos mistérios desse mistério que as religiões de todos os povos vão buscar títulos para as suas visões teológicas.

          O poeta hebraico, no seu soberbo materialismo, só lembrava ao homem mortal que era pó e em pó havia de se tornar. Realmente, aqui neste lúgubre recinto, povoado por centenas de cadáveres, só existem, como remanescentes da vida, as ossadas e a poeira das ossadas já consumidas. Os próprios gusanos, que nasceram e se alimentaram da sânie apodrecida das carnes em decomposição, extinto o pasto, morreram a seu turno na hedionda solidão sepulcral. Para além desse mistério é que podem vicejar pomposamente os rosais do sonho com a sua floração ridente de ilusões imortais.

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          Não morrerei de todo, dizia o poeta, e este brado de vaidade é, simultaneamente, o brado unânime dos crentes, que supõem não morrerem completamente e, mais ainda,  esperam nessa vida imortal, desconhecida, ficar na convivência e na intimidade de Deus, que é infinito, na plenitude de um gozo também infinito, e nada conturba.

          Essas campas solitárias, eloquentes na sua gélida mudez, respondem às interrogações de todas as religiões e de todas as filosofias. Aí se dissolvem as afinidades da matéria transformadas em substâncias simples, que vão fecundar a terra, nossa mãe carinhosa.

         

De  Clodoaldo Freitas poeta, assim registra Cristino Castelo Branco, em seu livro Frases e Notas:  “Em 1921, quando seu filho, o grande Lucídio Freitas, estava no leito de morte,  aos vinte e sete anos de idade, vencido pela tuberculose, saíram do coração de Clodoaldo dois sonetos profundamente sentidos, que leio sempre com viva emoção, testemunha que fui daquela dor imensa.”  

O primeiro dos ditos sonetos é aqui mostrado:

                   

Dou-te esperanças que não tenho, e ponho

                    Nessa doce ilusão minha ventura...

                    Mártir do amor de pai, quanta amargura

                    Me punge ao despertar de cada sonho!

 

                    Eu nunca me postei ante os altares

                    Nem jamais invoquei de Deus o nome;

                    Vendo entretanto o mal que te consome,

                    Ergo, contrito, ao céu tristes olhares!

 

                    Bem sei que as leis fatais da natureza

                    Não se amolgam jamais ao nosso pranto,

                    Não têm jamais da nossa dor piedade!

 

                    Na agonia mortal dessa certeza,

                    Contemplo a definhar, cheio de espanto,

                    Gênio, glória, beleza e mocidade!

 

           Outro soneto de Clodoaldo que o representa muito bem é O Combate de Jenipapo: 

 

Parda manhã de março. Espessos nevoeiros

Cobem o campo fatal de flores matizado.

Propaga o eco o som estrídulo e pausado

Das vozes de avançar em carga dos guerreiros.

 

Soa o clarim marcial num brado agudo e forte,

Os bravos impelindo às fúrias do combate.

O tropel dos corceis mais brusco torna embate

Dos férreos batalhões marchando para a morte.

 

Povo do Piauí, vaqueiros ou soldados,

Quando a pátria te chama, aflita, nesses dias,

Nessas horas fatais de transes desgaçados,

 

É que sabes mostrar-te abnegado e valente!

Se Fidié triunfou, tu, ao morrer, sabias

Que a nossa boa terra ficava independente.

 

 

                     PROSADORES E POETAS

 

 

Higino Cunha (1858 – 1943) é o protótipo do polígrafo:  professor, poeta, crítico literário, historiador, magistrado, orador, filósofo, jornalista. Entre essas atividades a que mais se destaca é a de jornalista, permitindo que polemizasse sobre os assuntos que  fustigavam os espíritos da época. Deixou alguns livros publicados e que estão a merecer reedição, para conhecimento  da juventude.  Estreou com Pro-Veritate, 1883, depois vieram  O Idealismo Filosófico e o Ideal Artístico, 1913; História das Religiões, 1924;  Os Revolucionários do Sul, 1936; A Revolução de 30 no Piauí, 1939;  Memórias, 1940, entre outros. Mas a maior parte de sua obra está sepultada nos jornais e revistas da época, muitos deles exterminados nos arquivos. Livre-pensador , propagandista dos movimentos sociais e  da Abolição, consumiu sua vida entre a polêmica no jornal e a palavra de orador ou de mestre. Aliás, era mesmo de Mestre que o tratavam os intelectuais seus contemporâneos e os das gerações seguintes.

Edson Cunha, seu filho e também acadêmico, fez-lhe o retrato em poucas palavras: “Grande semelhança a dele com Clodoaldo Freitas:  ambos tinham permanentemente, um prato a mais à mesa de refeições, para moços inteligentes e  esperançosos, poetas, jornalistas, sonhadores, que traziam, invariavelmente, da rua. E eram, então, refeições transcorridas em um ambiente de franca e sadia espiritualidade, com declamações, prosa variada e encantadora. (...) Polemista desasombrado e impiedoso, teve sempre, todavia, um grande coração, solar da bondade, com um extraordinário espírito de renúncia. (...)  Como professor, nunca reprovou um aluno.

          De Memórias  foi extraído o capítulo A Construção da Igreja de S. Benedito, a seguir:

 

          Foi no dia 10 de maio de 1874 que chegou a Teresina o velho missionário franciscano  (já contava 63 anos de idade) fr. Serafim de Catânia, vindo de Caxias a pé, com grande acompanhamento de pessoas devotas. Saiu a recebê-lo, em vapor expresso, na fronteira vila de São José das Cajazeiras, imensa multidão de fiéis, de todas as classes sociais,  inclusive o presidente da província, autoridades civis e militares e muitas famílias teresinenses. Foi hospedado no palácio do governo, donde se retirou poucos dias depois, porque a sua humildade religiosa não se coadunava com ostentações de luxo.

          Fr. Serafim, como verdadeiro apóstolo, dedicou-se, de corpo e alma, à edificação do templo de S. Benedito, que se ostenta hoje na mais bela avenida deste capital. Durante doze anos, trabalhou sem cessar,  contando com o apoio moral e material do governo e do povo, que o idolatrava. Percorria as duas margens do rio Parnaíba, à busca de recursos. Vi-o mais de uma vez na casa de meu pai, que lhe fornecia um bote com cereais e um boi para o consumo dos seus trabalhadores.

          Só deu por pronta a obra depois da sagração a 3 de junho de 1886 pelo bispo da diocese do Maranhão. Retirou-se  no fim desse mesmo ano para a Itália, sua terra natal, com 75 anos de idade. Elias Martins consagrou-lhe um estudo completo, em estilo radiante de entusiasmo pela sua benemérita atuação na sociedade teresinense.

 

Mas não pode ser esquecido o poeta que foi Higino Cunha. É conferi-lo neste soneto de nome Madona:

 

          Vede-a: galhardamente o passo alterna

          Num ritmo encantador de garça branca,

          Evocando, no andar, na curva da anca,

          Nossa Senhora da Beleza Eterna.

 

          Dos seus lábios de fogo o amor governa

          Todo o ambiente, cuja treva espanca;

          Uma alegria sã, ingênua e franca

          Pulsa na fita que se enrosca à perna.

 

          E assim vai dominando sobranceira

          Com seu olhar a multidão cativa,

          Ao contemplar-lhe a  fronte prazenteira.

 

          Renda-se um culto à peregrina Diva!

          Quem não quisera ver-lhe a forma inteira,

          Gozar-lhe a carnação forte e lasciva?

 

Abdias Neves (1876 – 1928) foi jornalista, político, poeta e professor. Como ficcionista, representa as idéias do naturalismo, no seu único romance, Um Manicaca, 1909.

Mas era também um historiador de grande valia. A Guerra de Fidié, 1907, e O Piauí na Confederação do Equador, 1921, são provas. Nesses  estudos históricos extravasou o espírito positivista da Escola de Recife. Na área ensaística, escreveu Psicologia do Cristianismo, 1910, alentado volume onde tenta a aproximação do mito de Jesus com o dos deuses solares. É um estudo que bem merecia já ter sido reeditado, pela profundidade das considerações filosóficas que expõe.

Aqui vai de mostra um trecho do cap. XV, de Um Manicaca:

 

Araújo conchegou a roupa ao tronco e cruzou os braços sobre o peito. As trevas eram densas. Circunvagou o olhar procurando ver dentro da escuridão. Não vendo nada, escutou... Fazia um silêncio pesado, interrompido apenas pelo canto de um grilo e pelo chi chi chi da chuva nas telhas. A varanda estava deserta. E ia retirar-se, certo de se ter enganado, quando uma risada espirrou do quarto de d. Júlia,  em frente.

Estremeceu. Voltou-se para a porta e foi quando viu que, nas trevas, esplendia, luminoso e rubro, o pequeno orifício da fechadura. No mesmo instante, chegaram-lhe aos ouvidos palavras dispersas de uma conversa travada à meia voz.  Estavam, dentro, duas pessoas; mas, o que acabou de pasmá-lo, foi parecer-lhe que uma das vozes era de homem e que a conhecia.

A surpresa foi tão violenta que ele esteve para cair. Tremiam-lhe as pernas. Sua respiração tornou-se estertorosa. Sentiu um mal-estar intraduzível e apoiou-se no portal cambaleando.

Quis aproximar-se, olhar pela fechadura, pelas trinchas da porta, espiar o que se passava  ali  dentro, que homem era esse,  -  saber que nova desgraça lhe chegava, depois de tantas outras. Uma curiosidade terrível arrastava-o para aquele orifício de fogo, -- brilhante, vermelho, abrasado como a clarabóia de uma torre do inferno. Teve o maior dos sofrimentos de sua vida,  -  uma suspeita da esposa. Tudo denunciava um crime que um olhar comprovaria. Perturbava-o, porém, o ridículo da sua posição e vacilou até que a curiosidade venceu.  Queria certificar-se.  Chegou à porta e espreitou...  No quarto, bem iluminado, estavam, somente, a rede armada, no centro, e uma cadeira onde se amontoavam, em desordem, anáguas e um par de calças de brim. O olhar de Araújo não se fixou, imediatamente, na rede. Foi escorregando pela parede, para se demorar sobre a cadeira.

 

João Pinheiro (1877 -  1946), formado em odontologia, foi professor e diretor do Liceu Piauiense, diretor da Instrução Pública do Estado e membro da Academia Piauiense de Letras. Crítico literário,  historiador,  ficcionista e poeta, publicou Solar de Sonhos,  1906, À Toa... Aspectos do Piauí, 1913,  Fogo de Palha, 1925, Literatura Piauiense, 1937 - primeiro obra a historiar o fenômeno da arte literária em nosso meio). Teve a má sorte dos historiadores e críticos literários que também são criadores: – Não devem ou não podem falar de si mesmos, por modéstia ou por princípio ético. E os outros lhes esquecem, deixando-os apenas como historiadores ou críticos.  Por tudo isto e por mais, entre os nossos prosadores, João Pinheiro ocupa  um lugar à parte.  Num ensaio sobre o conto piauiense, o Prof. Wilson Brandão disse das qualidades de João Pinheiro: “É o nosso primeiro regionalista. (...) Não é um estilista. Mas sua linguagem fica sempre em perfeita correspondência com o meio e os personagens das narrativas, que constrói com simplicidade e maestria.”

          Tomando-se por base a estrutura do conto pós-romântico, é nosso primeiro contista. Possui a tradição do homem e da terra, até então explorada somente na poesia, e leva-a para a prosa de ficção naturo-realista, porém já, inusitadamente, com um toque poético.

          Coração de Negro, do livro Fogo de Palha, é bem um exemplo:

 

          Ainda sob a dolorosa  impressão que lhe causara o falecimento da irmã, ocorrido na véspera, em condições tão inexplicáveis como imprevistas, Reginaldo recolheu-se, vagarosamente, ao vasto aposento que ocupava, por último, na ampla casa da fazenda.

          A princípio, tentou pôr em ordem certos papéis: acercou-se da mesa, aproximou a cadeira, abriu as gavetas mas, ao avistar a letra da morta no primeiro que deparara, um azulado fragmento de almaço em que ela, na véspera, distraidamente, traçara, por diversas formas,  o próprio nome, afastou, imediatamente,  a recheada pasta. Teve um longo suspiro seguido de rápido movimento de pesar.  Deixou pender conturbado a fronte num expressivo gesto de abatimento e permaneceu imóvel, por alguns momentos.

          Depois, se ergueu como um autômato, circunavegou o olhar demorado por todo o aposento, deu alguns passos ao acaso,  chegou à porta que abria para a sala de jantar e, com as retinas ainda profundamente impressionadas pela graciosa imagem da morta adorada, como que a viu se afastando, pouco distante,  no claro vestidinho caseiro, um sorriso a esvoaçar garridamente nos lábios puníceos, o passarinho sutil... Que evocações! Julgou mesmo ouvir o timbre de sua voz harmoniosa... as mesmas frases prediletas...  Como aquilo ia longe! Coitada!...

          Retrocedeu...  Demorou-se algum tempo indeciso, sentando-se, por último, na rede que pendia de um canto.

          Levou as mãos à cabeça e, insensivelmente, incidiu nas mais dolorosas cogitações.

          Fora, na doce inquietação do meio-dia,  flabelavam palmeiras.

          Monótonos, retardados, como que impregnados de nostalgias indefiníveis e transportados de paragens muito remotas, ecoavam cantos de capotes que sesteavam placidamente sob o protetor ensombro de copadas árvores do pátio.

          De onde em onde, em notas agudíssimas, dispersas, denunciavam-se maviosos chicos-pretos ou xexéus, em grandes ninhos pendentes do alto de cajazeiras, ensinavam aos filhos implumes velhíssimos trechos de sentidas endeixas que, por sua vez e pelo mesmo sistema, haviam aprendido ainda quando pequenitos.

          De longe, da casa da bolandeira, partiram esgarradas vozes de crianças intercaladas de retumbantes brados de excitamento a animais ordinariamente empregados na faina diurna ou uma ou outra agreste melodia não raro interceptada por outros rumores:

                              O sabiá quando canta,

Treme com a língua no bico...

 

Amélia de Freitas Bevilaqua (1861 – 1946), romancista, contista, cronista, foi a primeira mulher a tentar ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, em 1930, e  não conseguiu. A entidade representativa da cultura brasileiro negou sua inscrição, alegando que o estatuto admitia a entrada de brasileiros, mas era omisso com relação à inscrição de  brasileiras.

Entretanto, ela foi a primeira mulher a ocupar uma cadeira na Academia Piauiense de Letras, após a morte de seu primo Lucídio Freitas, em 1921.

Espírito da belle époque. Sílvio Romero, à  época da publicação de um de seus romances, em 1936,  assim classificou-a: “A autora do romance Vesta, sem pretensão, sem vaidades inovadoras, sem amor ao efeito, naturalmente, placidamente, recordando cenas que viu, tem, em seus contos e novelas, tratado temas novos ou pelo menos pouco vulgares.” Vivia muito mais na Corte do que na Província. 

Publicou mais os seguintes livros: Alcione, 1902;  Aspectos, 1906;  Através da Vida, 1906; Angústia, 1913;  Açucena, 1921; Impressões, 1929; Silhouettas, 1931;   Jornadas pela Infância, 1940;  Milagres do Natal, Reminiscências e muitos outros. 

O conto  Pedro Cego,  do qual  foi extraido o texto a seguir, mostra bem o seu estilo:

Todas as tardes, na hora do arrebol, batia à nossa porta um homem alto, de porte esbelto  e distinto, já envelhecido, extremamente simpático; vestia sempre sobrecasaca preta, muito longe da moda, e calças, que variavam as cores, tudo gasto, cheio de remendos, porém asseado. Era cego e cearense. Lá em casa todos o amavam. Assim que se ouvia a zoada soturna de seu velho bastão, sondando os espaços, corria, afoitamente, a criançada para recebê-lo. Havia um alvoroço desadorado, onde todos se agitavam, barulhentos, muito alegres, como num porto os passageiros, na ocasião do desembarque. Uns sorriam, outros gritavam, mostrando as dádivas guardadas para o pobre cego. O Vinício, muito meigo e humilde, vinha, entre nós, conduzindo o jantarzinho do velho, fazendo gestos de alegria radiosa, dizendo (ainda hoje me lembro de suas palavras): “Deixe eu também me assentar no seu colinho, seu Pedro.”  Arrebentava, no mesmo momento, a revolta.  O lugar não era dele!  Preto se assenta no chão...

 

Esmagado de Freitas e Sousa (1887 – 1946),  professor, jornalista, jurista, historiador, contista, crítico e poeta, não se lembrou ou não teve tempo de colocar sua produção em livro, exceto a novela Consolo Amargo, 1908, em Recife.  Depois de falecido, foi publicado o volume O Visconde da Parnaíba”, 1947, Justiça Piauiense, 1959, além da reunião desses dois trabalhos e mais outros recolhidos de revistas e livros com o título de Homens e Episódios, 1974. Exerceu muitas funções públicas em sua vida, desde que recebeu o diploma de bacharel em Direito, na Faculdade de Recife,  em 1911, até falecer como Senador, no Rio de Janeiro. Delegado de polícia, promotor público, juiz, desembargador, como bem o disse Gilberto Freyre, “ele foi um homem de bem, homem de vida difícil, desses que a atividade pública consome e gasta quase sem lhes dar oportunidade de experimentar as chamadas delícias do poder.” Em 1939, aposentado violentamente, com os desembargadores José de Arimathéa Tito e Simplício de Sousa  Mendes, pelo então Interventor Federal do Piauí, Leônidas Melo, esse fato  deixar-lhe-ia marcas por toda a vida.

          No historiador e cronista  tem-se a melhor parte de sua obra. Portanto, a pequena mostra recai sobre O Testamento de Domingos Sertão:

         

          Quando o superior dos jesuítas soube que Domingos Sertão acamara, destacou uma de suas patrulhas para assistir o famoso ricaço, sobre cujos haveres pousavam, havia tempo, as vistas cobiçosas da astuta Companhia.

          Soldados de Santo Inácio meteram-se – num pronto –  em casa do precioso enfermo prestativos, dominadores, exclusivistas, velando mal o propósito de não deixar morrer ab intestato o antigo agregado dos Ávila. E ali ficaram à espera do momento azado para comover o apático mortal por demais apegado às coisas do mundo e, em especial, às riquezas que acumulara.

          Mas eis que imprevista crise se manifesta,  em consequência da qual o cansado vencedor dos agrestes e caatingas perde a fala... Os animosos padres depressa mandaram chamar, na vizinhança, o tabelião de que eram fregueses – velho escriba “camarada”, desambicioso e maneável, que não se fez esperar;  e, ao penetrar na alcova, encontrou – junto ao leito de Domingos Afonso – dois jesuítas: um, sentado à cabeceira, apoiava a cabeça do moribundo; o outro estava defronte, e de pé.

          Este logo foi falando:

          - O irmão não disse que legava todos os seus haveres aos padres jesuítas do Colégio da Bahia para o fim piedoso de dotar donzelas, amparar viúvas e órfãos e dar esmolas aos pobres?

          Do alto dos travesseiros, sob que se metera a mão do primeiro inaciano, a cabeça do nababo exânime flectiu com anuência.

          Logo, logo o notário tomou a  palavra, igualmente interrogativo:

          - E o irmão não disse, outrossim, que destinava uma das suas fazendas do Canindé para o oficial que lhe houvesse de lavrar o testamento?

          Desta vez a cabeça não se moveu. Os padres intersondaram-se atônitos. Crescia-lhes a estupefação em face do inópino colegatário, que, meia volta dada, se dispôs a sair, exclamando com decisão e ironia:

          - Pois se não disse isto, também não disse a outra coisa: nada disse!

          Um dos reverendíssimos presentes salvou a situação, embargando os passos do estomagado velho e concitando-o a que tivesse calma e reparasse. O irmão estava respondendo afirmativamente.

          O padre da outra ponta do leito conseguiu ainda da valiosa cabeça o movimento reclamado. O tabelião reumanizou-se: e foi logo tratando de passar para o papel a expressão da última vontade do importante latifundiário.

          E minutos após a morte em cristandade de Domingos Afonso Sertão era anunciada “urbe et orbe”.

         

 

                   

                 MAIS POETAS

Os fundadores da Academia e outros que lhes seguiram os passos representam uma evolução estética, tendo em vista que, em sua maioria, estudaram em Recife e trouxeram a influência dos grandes mestres daquele cenário renovador do pensamento e da arte brasileiros. A fundação da Academia Piauiense de Letras foi um feito importante para a época.

          Além de Lucídio Freitas, Da Costa e Silva, Celso Pinheiro e Clodoaldo Freitas, já estudados, merecem menção e leitura os poetas Félix Pacheco, Jonas da Silva, Antônio Chaves, Zito Batista, Jônatas Batista, Baurélio Mangabeira, Fenelon Castelo Branco e Nogueira Tapety.

         

Félix Pacheco ( 1879 - 1935), jornalista, político, parlamentar e poeta parnasiano-simbolista,  é um dos nomes mais celebrados do Piauí fora dos seus limites. Não obstante tenha escrito e publicado muito, dois  acontecimentos extraliterários contribuíram para que se fizesse e se sustentasse como nome nacional: primeiro, sua eleição e posse na Academia Brasileira de Letras, 1913;  segundo, sua atuação como Ministro das Relações Exteriores, de 1922 a 1926.  Importante também foi ter introduzido o sistema datiloscópico, durante os anos em que dirigiu o Gabinete de Identificação e Estatística da Polícia da Capital Federal.

Estreou como poeta, com Chicotadas, 1897, e continuou escrevendo e publicando poesia: Via Crucis, 1900, Mors-Amor, 1906; Inezita, 1915; Martha, 1917;  Tu, só tu.... 1917;  No Limiar do Outono, 1918;  Lírios Brancos, 1919, e muito mais, encerrando com Poesias, edição definitiva, 1932. A poesia de Félix Pacheco, não resta dúvida, é intelectualizada, há um trabalho intenso por trás daqueles versos. Mas, com uns restos da impetuosidade e da fúria dos seus primeiros anos, que não conseguiu domar,  pratica um lirismo meio ríspido, sem aquela naturalidade que o leitor espera. Mesmo em seu mais famoso poema, Estranhas Lágrimas, sujeito de algumas versões e  muitas polêmicas, esses aspectos podem ser detectados:

 

                    Lágrimas... noutras épocas verti-as. 

                    Não tinha o olhar enxuto como agora.

-        Alma, dizia então comigo, chora!

Que assim minorarás as agonias!

 

Ah! quantas vezes pelas faces frias,

Umas, outras após, a toda hora,

Gota a gota rolando elas, outrora,

Marcaram noites e marcaram dias!

 

Vinham do oceano d’alma, imenso e fundo,

De espuma as ondas salpicando o flanco,

Numa fremência amargurada e louca.

 

Nos olhos hoje as lágrimas estanco...

Rolam,  porém, sem que as descubra o mundo

Sob a forma de risos pela boca.                 

 

          Alcides Freitas (1890-1913) foi grande poeta, vivendo tão pouco e morrendo do “mal do século”.  E era também bom prosador. Formado em Medicina pela Escola da Bahia. Mesmo tendo falecido tão jovem, deixou as seguintes obras:  Álvares de Azevedo, conferência, 1912;  Alexandrinos, sonetos, em colaboração com Lucídio Freitas, 1912;   A Tesoura, conferência, 1912, e os inéditos Da Lágrima, estudo de físio-psicologia, e Noturnos, volume de crônicas, conferências e poemas.

“Em Alcides se chocam  as duas causas contraditórias: A vida objetiva, exterior, do habitat formoso  da sua infância e adolescência, e a vida subjectiva, minada pelo virus cruel, no íntimo do seu frágil organismo. Mas a alma dominada quase sempre pela tristeza, alçava-se por vezes sobre o último para cantar o primeiro”, diz João Cabral. E mostra o primor que é o soneto inicial da coleção de Alexandrinos:

 

                    Mais um ano cruel de tédio e de desgraça

                    Risca o lápis do tempo, e o papel é a tortura!

                    E eu sigo, e eu vou assim, rumo da sepultura,

                    - Desvairada visão que pela noite esvoaça...

 

                    Qual Gerard de Nerval num lampião de praça,

                    Hei de a vida enforcar à corda da amargura!

                    E adeus sonhos de amor! dias bons de ventura!

                    Que se foram pelo ar em ondas de fumaça...

 

                    Morte, sombra do amor que os meus sonhos deslumbra!

                    Abre os braços a mim, velha caveira triste!

                    Que eu não fique por mais no horror desta penumbra...

 

                    Ai! no grande pesar da minha alma de monge,

                    A dor, somente a dor, impassível,   persiste...

                    A dor de uma saudade... a Morte que vem longe...

 

 

          Jonas da Silva (1880 – 1947) é o nome literário de Jonas Fontenele da Silva.  Cirurgião-dentista formado pela Faculdade do Rio de Janeiro. Poeta, colaborou na imprensa do Piauí e do Amazonas, sendo membro das duas Academias: Piauiense de Letras e Amazonense de Letras. Estreou com Ánfora, 1900, quando recebeu merecidamente elogios de B. Lopes, Artur Azevedo e de muitos outros intelectuais brasileiros. Depois publicaria Uhlanos, 1902, e Czardas, 1932. “A poesia de Jonas da Silva é brilhante e de recursos variados em cor e timbre”, diz  Andrade Muricy. Viveu muito tempo em Manaus, daí porque sua obra não é muito divulgada no Piauí. É conhecido no país inteiro pelo soneto “Coração”:

 

          Meu coração é um velho alpendre em cuja

          Sombra se escuta pela noite morta

          O som de um passo, o gonzo de uma porta

          Que a umidade dos tempos enferruja.

         

                    Quem vai passando pela estrada torta

                    Que leva ao alpendre, dessa estrada fuja!

                    Lá só se encontra a fúnebre coruja

                    E a dor que à prece o caminhante exorta.

 

                    Se um dia abrindo o casarão sombrio

                    Um abrigo buscasses contra o frio

                    E entrasses, doce criatura langue,

 

                    Fugirias tremente, vendo ao lado

                    A Crença morta, o Sonho estrangulado

                    E o cadáver do amor desfeito em sangue!

 

Antônio Chaves (1882 – 1938), funcionário público estadual e jornalista (redator de “O Arrebol” e “Alvorada”, diretor do “Diário do Piauí´” e colaborador de  “Litericultura” e  “Correio de Teresina”),  foi um dos fundadores da Academia Piauiense de Letras. Embora não bafejado pela crítica, foi um bom poeta e sobrtudo um poeta do amor. Publicou o primeiro livro em parceria com Celso Pinheiro e Zito Batista, em 1907, com o título Almas Irmãs,  depois  individualmente, Nebulosas, 1916, e  Poemas da Mágoa, 1919. Deixou inéditos: Líricas e Poesias. Eis um soneto representativo de sua lírica:

 

Ouvindo a voz dulcíssima e macia,

A doce voz com que ela me falava,

Como que o próprio vento se calava,

E além, no alto do azul, o luar sorria.

 

E enquanto, resplandente de alegria,

Ela o seu grande amor me confessava,

A natureza toda palpitava,

Talvez sentindo o que eu então sentia...

 

Eu sentia a ilusão de estar fitando,

Ao despontar suavíssimo do dia,

Uma estrela suavíssima cantando...

 

Pois que lhe ouvindo a voz límpida e bela,

Eu, repleto de amor, apenas via

A beleza imortal dos olhos dela.

         

Zito Batista (1887–1926). Funcionário dos Telégrafos e depois do Ministério da Agricultura. Era autodidata. Poeta, crítico literário e jornalista. Foi diretor da Imprensa Oficial do Piauí. Redigiu  “A Alvorada” e “Cidade Verde”, jornais de Teresina, e  “O Jornal”, diário carioca de grande circulação, onde publicou muitos dos seus poemas. Viveu no Rio muitos anos.  Produção:  Almas Irmãs, com Antônio Chaves e Celso Pinheiro, 1907; Chama Extinta, 1918; Harmonia Dolorosa, 1924;  Poesias Reunidas, 1924.  Segundo Raul Machado, “Zito Batista transmite às suas produções um calor suave de sentimento e uma sinceridade de emoção menos comuns na maioria dos nossos versejadores.”  Sentimental, romântico, Zito Batista tinha a empatia dos temas tristes.  Monólogo de um Cego é uma prova substancial da afirmação:

 

                    Falaram-me do sol!  Maravilhoso sol

Refulgindo na altura...

Ah! se o pudesse ver, assim como um farol

Imenso, inacessível

Em vertigens de luz sobre a nossa cabeça...

E -  eterna desventura! –

                    Eu fiquei-me a pensar: por que o sol invencível

                    Não rasga o negro véu de minha noite espessa

                              Quando brilha na altura?

                    Falaram-me também da  floresta e das aves,

                              Das aves cujo canto

                    Põe na minha alma, em febre, uns arrepios suaves

                              De vaga nostalgia...

                    Ah! se eu pudesse ver as aves e as florestas!

                              Soberbo o meu encanto,

                    Se eu pudesse aclarar minha noite sombria,

                    Quando ouvisse, enlevado, em delírios e festas,

                              Num soberano canto,

                    Todo o poema de amor das aves nas florestas!

                    E o mar?  onde mais um belo símbolo da vida?

                              O mar é um rebelado

                    Que vive, noite e dia, em soluços, gemendo

                              De cólera incontida,

                    A investir contra o céu, como um tigre esfaimado!

                    É lindo o mar no seu desespero tremendo!

                    Eu não o vejo, não, mas chega aos meus ouvidos,

                              E escuto,  alucinado,

                    A música fatal dos seus grandes gemidos!

                    Há toda uma tragédia enorme a interpretar

                    Nesse choro convulso e incessante do mar...

 

                    Ah! Que destino o meu, que desgraçada sorte

                    Me traçou, pela terra, a mão de um Deus brutal!

 

                    Na vida, em vez da vida, anda comigo a Morte,

                    A escuridão sem fim...

                    Tenho a envolver-me o corpo a asa torva do mal!

                    E falam-me do céu, das aves e das flores,

                    E dizem-me que o mundo é um paraíso, assim

                    Todo cheio de luz, de aroma, de esplendores!

 

                    E eu creio! Eu creio em tudo...

                    Os homens têm razão!  Eu creio, e desejara,

                    Ver o mar, ver o sol no firmamento mudo

                    A brilhar!  A brilhar!

 

                  Mas, o meu grande sonho, o meu sonho infinito  

                 É outro, um outro ainda, o que me faz chorar

                 E há-de, em fúria, arrancar-me o derradeiro grito,

                Quando eu daqui me for, aos trambolhões, a  esmo,

                 É a ânsia indefinida, o desejo profundo

                De conhecer o que há de original no mundo:

                    Conhecer a mim mesmo!

         

                    Porque, a julgar, talvez, pelo mal que me oprime,

                    Eu devo ser, por força, um monstro desconforme,

                    Na eterna expiação do mais nefando crime,

                    Atado ao poste real de minha dor enorme!...

 

Baurélio Mangabeira (1884 – 1937),  nome literário de Benedito Aurélio de Freitas, sócio-fundador da Academia Piauiense de Letras, poeta, na vida prática foi jornalista, funcionário do Liceu Piauiense e juiz distrital. Publicou Sonetos Piauienses, 1910. “Boêmio, dado ao álcool, vida irregularíssima, recitava constantemente, com uma entonação especial de voz” ,  assim  Cristino Castelo Branco    o homem e o poeta, recitando este e outros sonetos:

 

Não julgues que se a vida não maldigo

Seja porque minh’alma não sofreu

Os travos da desgraça, agro castigo,

Que dizem vir do inferno e vir do céu.

 

Poucos anos meu pai viveu comigo,

Cinco rápidos anos e morreu...

E minha mãe, com lágrimas te digo,

Dentro de algumas horas faleceu.

 

Escuta lá: nos cemitérios vastos

Os ossos dos meus pais devem estar gastos

Pelo tempo que tudo estraga e rói.

 

Olha: quem cedo nesta estrada cai,

Sem ter mãe, minha filha, e sem ter pai,

Há de sentir o quanto a vida dói.

         

Fenelon Castelo Branco (1874 - 1925). Magistrado, promotor público e juiz em várias comarcas, nos Estados do Piauí e Maranhão. No Governo de Miguel Rosa, foi nomeado Secretário de Polícia. Jornalista eficiente e dos mais destemidos. Figura entre os fundadores da Academia Piauiense de Letras, sendo o seu primeiro secretário, reeleito várias vezes e, assim, prestou um grande serviço à cultura. Poeta de feição ora satírica, ora popular. João Pinheiro confessa gostar mais dessa última característica, lamentando haver dado menor vazão a esse lado. Obras: Ano de Luto,  1902, elegias escritas  após o falecimento de Ana Fortes Castelo Branco, sua mulher; União por Dentro, 1916, satíricos, com o pseudônimo de João Elisiário;  Das Galerias, 1914,  idem,  com pseudônimo de  Dr. Chaleira;  Desabafos,  1918; e  Nossos Imortais,  inédito.  O poema “Álbum” é exemplo de sua melhor poesia:

 

          Do meu álbum na folha cor de rosa,

          Onde o amor filial canta e fulgura,

          Dedico a minha mãe, meiga e bondosa,

          Todo o meu ser repleto de ternura.

 

          E na página branca o doce emblema,

          Dum sentimento que jamais se esvai,

          Entre as belas estrofes de um poema

          Escreverei o nome do meu pai.

 

          Relembrarei aqui todo o martírio,

          Toda a mágoa que um dia me envolveu,

          Conservando na folha cor de lírio

          A saudade da esposa que morreu.

 

          Como um astro fulgurante e luminoso

          Surge depois a página dourada,

          Onde cintila o vulto gracioso

          De quem me trouxe à vida outra alvorada.

 

          Aos meus filhos, um bando de crianças,

          Meigas e frágeis, como passarinhos,

          Na folha verde, um ninho de esperanças

          Lhes tecerei com beijos e carinhos.

 

          A folha azul tão linda e recamada

          De flores, as mais belas e louçãs,

          Representa uma abóbada estrelada;

          E as estrelas sois vós, minhas irmãs!

 

          E esse livro elegante e primoroso,

          No que o meu amor todo concentro,

          Guardo-o sempre num cofre precioso

- Meu próprio coração – Ei-lo lá dentro!

 

          Nogueira Tapety (1890 – 1918) fez os primeiros estudos na sua terra e formou-se em direito em Recife. Em 1912 torna-se promotor de sua cidade natal, Oeiras. Lecionou filosofia e lógica. Quando, em 1915, surgiram os primeiros sinais da tuberculose, “consciente visceralmente de que  tinha pouco tempo para realizar-se, o poeta explodiu em versos como um vulcão”, eis o que Celso Pinheiro Filho observa sobre ele. Faleceu eleito para Academia Piauiense de Letras. Considerando a sua obra e o seu valor, a instituição lhe deu posse depois da morte, mesmo em desacordo com o estatuto. O Instituto Histórico e Geográfico de Oeiras reuniu seus poemas e publicou-os, em 1990, com o título Arte e Tormento.  O soneto “Senhora da Bondade” é lindo e bastante  representativa de sua poética:

 

          Não te quero por tua formosura

          De rainha da graça entre as mulheres,

          Quero-te porque és boa, porque és pura

          E inda mais porque sei que tu me queres.

 

          A beleza exterior nem sempre dura.

          E a d’alma... estejas tu onde estiveres,

          Ungirás de meiguice e de doçura

          Tudo em que a bênção desse olhar puseres.

 

           Eu sou artista: encanta-me a beleza,

           Em ti, porém, abstraio-a inteiramente,

           E penso amar-te assim com mais nobreza.

 

           Pois se te esqueço a forma e a mocidade,

           É para amar em ti unicamente

           A encarnação suprema da bondade.

 

                                

Édison Cunha  (1891 - 1973).  Misto de poeta e prosador. Em sua vida extraliterária, notabilizou-se como professor, em Parnaíba, onde viveu a maior parte do tempo. Publicou pouco: Razões Finais, 1941; Correspondência para Você, 1943; Vozes Imortais, 1943, e mais alguns discursos. 

Sobre sua personalidade, o depoimento de Manfredi Mendes de  Cerqueira, que foi seu aluno, é sumamente valioso: “Édison Cunha e Lima Rebelo eram advogados e mantinham estreitos laços de uma sincera amizade. Na região Norte do Estado eram profissionais emblemáticos.” E, em seguida, completa. “Cidadão probo, cordato,  humilde,  de fino trato social e um verdadeiro diretor de consciências. Os alunos encontravam nele um amigo sincero, um colaborador bem intencionado, uma dessas pessoas que justificam, com seus atos a etmologia do vocábulo amizade.”

          Seus textos eram simples e bem cuidados. Eis aqui uma crônica em que descreve Teresina da entrada do século:

         

          Quando o século vinte chegou, Teresina era uma cidadezinha com fisionomia e costumes profundamente sertanejos, longe, muito longe do Brasil e do resto do Estado, com os quais se punha em comunicação pelo tráfego sem pressa dos rios Parnaíba e Itapecuru, ou pelas morosas tropas de cargas e cavalgadas através do sertão, tal como se viajava em São Paulo e noutras províncias do sul, ali pelo ano de 1839, e nos conta Daniel Kidder nas suas Reminiscências de Viagens e Permanência no Brasil.

          Vivíamos, assim, com setenta anos de atraso  nas comunicações com o resto do país.

          Daí, poder-se-ia deduzir a quietação,  a calma, a monotonia de Teresina.

          Efetivamente, a cidade do Conselheiro Saraiva, embora de alinhamento impecável,  tinha ruas descalças, escavadas, na quadra chuvosa,  por onde corriam regatos rápidos, comprimidos nos altos e baixos dos passeios laterais. Para iluminá-la, de longe em longe, a municipalidade mantinha faróis a querosene, até dez horas da noite.  Mal serviam eles de ponto de referência aos notívagos. Dado o toque de silêncio e recolhimento, nos quartéis, os lampiões baixavam as pálpebras, fechavam os olhos e dormiam.

                                                (...)

          Recolhidas as famílias, depois das nove, entravam em cena os boêmios, trovadores, apaixonados, aproveitando as melhores horas enluaradas e sacudindo o sossego com flautas, violões e modinhas próprias ou de Castro Alves, Casimiro de Abreu e outros poetas em moda. De quando em quando os instrumentos plangiam em surdina e algum enamorado recitava os mesmos poetas. Lá pelo alto de São Benedito havia discursos. O local assemelhava-se a vasta tribuna.        

Um exemplo de sua poesia:

 

          O vento passa, inalteravelmente,

          Tangendo a areia,  vergastando a vaga;

          Sensações de volúpia a praia sente,

          As carícias do mar que a beija e afaga.

         

          O farol entre as pedras  lentamente,

          Ao contato do mar todo se estraga:

          Já não mais sua luz, candentemente,

          Cintila, nem se acende, nem se apaga.

 

          A natureza, ao por-do-sol parece

          Grandiosa catedral, em cujo seio

          O oceano verde reza sua prece.

         

          Quanta saudade evoca aquela praia!

          Que de emoções sentimos, quanto enleio,

          Olhando a vaga imensa que desmaia.

 

 

                          TEATRO  

                       Jônatas Batista

 

 

A dificuldade da história da criação teatral é que nem sempre os autores cuidam de publicar suas peças. Depois de encenadas, dão por encerrado o seu trabalho. A posteridade muitas vezes fica impedida ler os textos. No passado foi muito pior do que agora.

Higino Cunha, em sua obra “O Teatro em Teresina”, registra que pouco havia digno de menção entre os piauienses daquele tempo. “Os nossos escritores, mesmo os mais fecundos, como David Caldas, Clodoaldo Freitas e Abdias Neves entre os vivos, não se dedicaram a esse gênero. Além de algumas tentativas malogradas de Licurgo de Paiva e  de um drama religioso sobre o Natal, do Dr. Luiz Correia, somente as obras de Jônatas Batista merecem figurar nesta resenha histórica. O seu drama Jovita ou a Heroína de 1865, as suas revistas de costumes, principalmente O Bicho, os seus monólogos e cançonetas, tão aplaudidos pelo nosso público, já tiveram repercussão lá fora,  onde não contamos nenhum teatrólogo, e lhe facilitaram o ingresso na Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, da qual é sócio, o único piauiense que mereceu tamanha honra até hoje.”

 

Jônatas Batista (1885 – 1935) foi antes de tudo um apaixonado pelo teatro. Expressivo autor, dominou por mais de três décadas o palco em Teresina.  Peças de sua autoria: Teresina de Improviso, O Coronel Pagante,  Cidade Feliz, Frutos e Frutas, e Jovita, a Heroína de 1865. Como poeta, publicou: Sincelos, 1907;  Maio, 1908; e Alma sem Rumo, 1934.  Jornalista, conferencista. Foi promotor público e secretário da Recebedoria Federal de São Paulo.

Do teatro de Jônatas Batista restou apenas a segunda parte de Jovita..., representada no “Teatro 4 de Setembro”, em 19 de abril de 1914 e depois publicada numa das revistas da Academia Piauiense de Letras.  

 

    Cena I:

 

Personagens: Jovita Alves Feitosa, 17 anos;  Pedro Martins Feitosa pai de Jovita),  58 anos;  Anacleto Ferreira, 25 anos;  Padre João da Natividade, 46 anos.

Palco:  Sala pobre, tendo porta e janela ao fundo, e mais uma porta à esquerda. Uma pequena mesa de pinho, ao centro, alguns bancos ou tamboretes espalhados...

 

Martins – O teu casamento está se tornando, deveras, encantado. Tanta demora já me vai tornando apreensivo. Eu estou velho e doente: desejaria, pois, ver-te, de algum modo, amparada, antes da minha morte que pouco tardará.

Jovita –  Ninguém mais ansiosa do que eu,  papá bem sabe disso; mas, que havemos de fazer ...  Henrique também tem muito desejo de se casar logo. Precisava, porém, segundo afirma, se preparar com mais alguma decência.  A colheita deste ano, como ninguém ignora, foi péssima, e, por mais que se esforçasse,  não lhe foi possível adquirir o dinheiro necessário às últimas despesas.

          Martins – Lá  isto é verdade. Cheguei mesmo a recear uma seca tremenda,  como a que nos fez fugir do Ceará. (Pensativo) -  Eras, nesse tempo,   tão pequenina!...  Nem podes, mesmo, fazer uma idéia aproximada do quanto sofremos – eu e a tua infeliz mãe!...  (Suspirando) – Pobre Carlota!...  Morreu, lutando pela vida... Tinha tanto receio de emigrar, e, ao fim de contas lá se foi para as longas terras de onde não se volta mais. (Retendo as lágrimas) – Aí, quanto custa se recordar essas cousas...

          Jovita (carinhosa) – Papá sabe, perfeitamente, o quanto lhe fazem mal tristes recordações. O capitão José de Campos e até mesmo o Dr. Manoel Rosendo, que por aqui passou o ano atrasado, recomendaram, insistentemente, muita calma, muito sossego de espírito e...

          Martins – Sim, sim, minha filha; mas é que o sofrimento, como o amor, tem também as suas raízes. A saudade, uma vez plantada em nossos corações, jamais ou dificilmente me poderá arrancar.  E se tentamos isso por meios violentos, pode levar consigo um pedaço da terra onde germinou e nos causar a morte.

          Jovita – Pois sim, pois sim, mas... Mudemos de assunto. As tristezas também me causam tormento, principalmente depois da já prolongada ausência de  Henrique. (Grande Pausa).

          Não conheci, ou quase não cheguei a conhecer minha infeliz mãe; contudo, venero a sua memória, como tenho amor à terra que me viu nascer. Ao Ceará, a bendita terra dos “verdes mares bravios, onde canta a jandaias nas frondes da carnaúba”, devo o meu nascimento, e ao Piauí – a rijeza do meu caráter e a sensibilidade de minh’alma de virgem. Deixemos, porém, essas tristes recordações que  muito me  atormentam e muito mal fazem ao senhor.               

Martins – Pois bem.  (Levantando-se). Vou fiscalizar o trabalho da vazante. (Pegando no chapéu que deve estar sobre a mesa) – Só o trabalho me poderá distrair.(Sai pelo fundo).

                             

 

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