SEGUNDA GERAÇÃO
Academia Piauiense de Letras
Em 1901, encerrada
praticamente a onda da poesia romântica e do cancioneiro dos vaqueiros, houve a tentativa de criação de
uma sociedade literária que seria a Academia. Era o início da geração acadêmica, somente consolidada
com a efetiva fundação da Academia Piauiense de Letras em 30 de dezembro de 1917.
No limiar dessa nova
geração do começo do século, encontra-se o poeta Taumaturgo Vaz. Poesia terna, simples,
espontânea, segundo Herculano Moraes. Marca o período de transição entre a
poesia popular/folclórica e a parnasiano/simbolista adotada pela geração acadêmica, no Piauí.
A
Academia Piauiense de Letras é a mais antiga, permanente, ininterrupta
instituição cultural do Estado. Essa segunda geração da nossa literatura, ou
segundo período, abriga não somente os que fundaram a Academia, mas todos
aqueles que viveram aquela época, beberam as doutrinas filosóficas da Escola de
Recife e trouxeram o novo para sua terra. Também os que aqui ficaram e
passam a comungar com os que vinham chegando.
Foram fundadores da Academia: Lucídio Freitas, João Pinheiro, Celso
Pinheiro, Higino Cunha, Clodoaldo Freitas (pai de Lucídio e Alcides Freitas), o próprio
Lucídio Freitas, mais Jônatas Batista, Antônio Chaves, Baurélio Mangabeira,
Edson Cunha e Fenelon Castelo Branco.
Alcides Freitas, falecido em 1913, portanto antes da fundação, ficou com
patrono da cadeira nº 9, cujo primeiro titular foi seu irmão Lucídio Freitas.
Outros nomes igualmente importantes
da geração: Abdias Neves, Félix Pacheco
e Da Costa e Silva. Estes não participaram da fundação, mas posteriormente foram
chamados a integrar o quadro da imortalidade acadêmica.
NOMES EMBLEMÁTICOS
Lucídio Freitas (1894 - 1921), poeta,
jornalista, crítico literário, jurista e
professor, bacharelando-se em Direito com apenas 19 anos, pela Faculdade de
Direito do Rio de Janeiro. Morou algum
tempo no Pará, exercendo o magistério e a magistratura,
«A
meu Pai» é escolhido por João Pinheiro, que declara ser «uma das mais artísticas laudas do seu último livro de versos»:
Esqueço todo o bem que, em minha estrada,
Prodigamente, como um Deus,
semeio,
Fazendo meu o sofrimento
alheio,
Amparando toda alma
abandonada.
Quantas
e quantas vezes tenho em meio
Da vida, dentro a noite erma
e gelada,
Confortado a velhice
desgraçada,
Na mornidão amiga do meu
seio!...
Para
servir aos meus irmãos padeço
E dou-lhes a água e o pão, o
teto e o leito
E o beijo que consola e que bendiz...
Mas
todo bem que faço logo esqueço
Para guardar apenas no meu
peito,
A saudade de um bem que nunca
fiz...
Mas não se pode
deixar de ver «A minha Terra», seu soneto mais perfeito e que diz muito do
sentimento piauiense.
Teresina apagou-se na distância,
Ficou longe de mim,
adormecida,
Guardando a alma de sol da
minha infância
E o minuto melhor da minha
vida.
E eu sigo, e eu vou para a perpétua
lida.
Espera-me, distante, uma
outra estância...
É a parada da luta indefinida,
É minha febre, minha dor,
minha ânsia...
Como
são infinitos os caminhos!
E como agora estou tão diferente,
Carregado de angústias e de
espinhos!...
Tudo me desconhece. Ingrata
é a terra.
O céu é feio. E eu sigo para
a frente
Como quem vai seguindo para
a guerra...
No período há uma
certa indefinição entre parnasianismo e simbolismo - que eram as grandes
correntes da poesia nacional.
Havia
de sobra, na geração acadêmica, sonetistas de grande valor. De modo geral, os
grandes poetas eram sonetistas e vice-versa. Difícil é saber quem melhor
soneteou: Da Costa e Silva ou Celso Pinheiro? Antônio Chaves ou Jonas da Silva?
O próprio Clodoaldo Freitas, mais prosador que poeta, compõe belíssimos
sonetos, assim como Abdias Neves.
Da Costa e Silva (1885 - 1950), cujo nome completo é Antônio Francisco da
Costa e Silva, forma-se em Direito, na
Escola de Recife, em 1913. Já era escriturário da Delegacia Fiscal do Tesouro
Nacional, emprego que assume em 1910,
através de concurso público. Como funcionário do Ministério da Fazenda, serviu
Sangue, seu primeiro livro, publicado em Recife,
1908, teve grande sucesso. Depois
vieram Zodíaco, em 1917; Verhaeren, em 1917; Pandora,
em 1919; Verônica, 1927. Outros trabalhos, em prosa e verso, foram
estampados na imprensa, entre 1928 e 1933. Os poemas que constavam nos seus
papéis como pertencentes a Alhambra,
cujo livro não chegou a publicar, eram dessa última fase. A crítica do país inteiro já se manifestara e
continuava aprovando o “Poeta da Saudade”, de livro para livro. Talvez por isto
e porque estivesse acossado pela doença que o dominaria, Da Costa e Silva
organiza e publica a Antologia Poética, em
1934, onde reúne o que achava definitivo em sua obra. Já várias edições dessa Antologia saíram depois de sua morte,
graças ao amor, zelo e competência de seu filho, também poeta, Alberto da Costa
e Silva.
“Saudade”,
já no seu primeiro livro, dá muito bem a medida do poeta:
Saudade! Olhar de minha mãe rezando,
E o pranto lento deslizando
em fio...
Saudade! Amor da minha terra... O rio
Cantigas de águas claras soluçando.
Noites de junho... O caburé
com frio,
Ao luar, sobre o arvoredo,
piando, piando...
E, ao vento, as folhas
lívidas cantando
A saudade imortal de um sol
de estio.
Saudade! Asa de dor do
Pensamento!
Gemidos vãos de canaviais ao
vento...
As mortalhas de névoa sobre
a serra...
Saudade! O Parnaíba – velho
monge
As barbas brancas alongando...
E, ao longe,
O mugido dos bois de minha
terra...
Do
segundo livro é “A Moenda”, soneto também bastante conhecido, recitado, imitado
e parodiado de norte a sul do Brasil:
Na
remansosa paz da rústica fazenda,
À luz quente do sol e à fria
luz do luar,
Vive, como a expiar uma culpa
tremenda,
O engenho de madeira a gemer
e a chorar.
Ringe e range, rouquenha, a
rígida moenda;
E, ringindo e rangendo, a
cana a triturar,
Parece que tem alma,
adivinha e desvenda
A ruína, a dor, o mal que
vai, talvez, causar...
Movida pelos bois tardos e
sonolentos,
Geme, como a expiar, em
doridos lamentos,
Que as desgraças por vir
sabe-as todas de cor.
Ai! dos teus tristes ais! Ai! moenda
arrependida!
- Álcool! para esquecer os
tormentos da vida
E cavar, sabe Deus, um
tormento maior!
Da Costa e Silva é o maior poeta da terra.
Ele encarnou toda a piauiensidade em sua vida e nos versos que compôs, sem
deixar de ser um poeta do orbe. Cantando sua saudade, o rio Parnaíba, Amarante,
sua gente, seus sentimentos, numa leveza, numa naturalidade impressionante, vai
acompanhando a evolução da poesia brasileira até a Semana de 22. Seus últimos poemas
são a comprovação. De Alhambra,
extraímos “O Carrossel Fantasma”:
Ganhei
o dia a meditar na minha vida,
porque
a saudade me levou à longínqua Amarante
que
cisma, talvez por mim, debruçada sobre as águas
lentas
e sonolentas do Parnaíba
a
rolar para o mar como eu para o mistério...
Então,
num sonho de criança convalescente,
vem-me
à memória o carrossel que fascinava,
no
seu giro constante, os meninos de minha idade:
Cesário,
Luís, Holanda.... meus irmãos Nica e Joca,
na
vertigem do carrossel arrebatados tão cedo!
Tal
qual o largo da matriz em noites de novena,
meu
pensamento se ilumina de uma luz ardente e doce
como
a dos balõezinhos pendentes dos arcos verdes,
festonados
de folhagem e frementes de bandeirolas...
E
vejo, com os olhos de hoje, ao fundo do largo em festa,
o
mesmo carrossel ruidoso da minha ruidosa infância,
rodando...
rodando... rodando continuadamente...
Eu
fui o mais feliz dos meninos do meu tempo:
gastava
todas as moedas das imagens que fazia
(já
tinha o dom divino de um criador de imagens)
a dar
voltas e voltas nos cavalos de madeira,
que
galopavam automaticamente feito cavalos árabes...
Era
arrogante e destemido que nem os vaqueiros da minha terra,
quando
galgava o lombo de um desses pégasos sem asas,
mas
nem por sombra imaginava o meu destino de poeta...
O
carrossel parou no largo... mas não parou a vida....
Continua
em meu sonho, rodando... rodando sempre...
E
andando e desandando, num ritmo contraditório,
ainda
me dá a alegria inevitável de dar voltas...
de
girar, de rolar como os astros no espaço,
de
elevar-me a um destino superior ao do planeta,
que
em torno da sua órbita, como um símbolo, roda..
Upa!
upa! meu pensamento!.
Celso Pinheiro (1887 - 1950), um dos poetas
mais prolíficos da literatura do Piauí, faleceu no mesmo dia
Ilustrativo é o
segundo soneto que, praticamente, abre Poesias,
pois o primeiro é uma espécie de prefácio. Normalmente os sonetos de Celso
Pinheiro, nesse livro, não possuem
título, como este:
Bendita
seja a minha Dor! Bendito
seja
o punho de amor do Sentimento
que
me prega na cruz do Pensamento
com
marteladas secas de Infinito...
Bendito
seja o Pássaro Maldito
do
meu Ser, no seu rude isolamento,
amando
a catedral do Sofrimento,
na
mudez eloquente do granito...
Dá-me
a beber mais trágicos venenos,
ó
jardineira pálida e formosa
do
jardim tenebroso do meu fado!...
Pois
que bendito é quem possui ao menos,
entre
tanta inconsciência dolorosa
a
consciência de ser um Desgraçado!...
Mas não somente de
dor o poeta se nutre. Há verdadeiras jóias de amor de sua pena.
Minha,
só minha, só, unicamente minha!...
as
tuas mãos de luar, macias e cheirosas,
os
teus seios ardendo em músicas de rosas,
a tua
boca ideal, ó pérola marinha!
É
minha a tua carne, a fulgurante vinha
que
tem uvas de sangue, etéreas, luminosas,
e
resplende na luz em ânsias ondulosas,
minha,
só minha, só, unicamente minha!
Minha
toda tu és! A graça, o enlevo, o
encanto,
a
blandícia do olhar, a alva melancolia,
o
dealbar do sorriso e o estelário do pranto!
É
minha a exaltação, minha a esperança, minha
a
glória de te ter nos meus braços um dia,
minha,
só minha, só, unicamente minha!...
Funcionário público,
cronista e conferencista, Celso Pinheiro foi sobretudo poeta, e nunca é um poeta
cerebral. Ele, ao contrário do andejo Da
Costa e Silva, nunca morou fora do Piauí. Mas, por onde ia, recitava seus
poemas. Sua simplicidade de inspiração toca o singelo coração do povo.
A geração acadêmica é, sabidamente,
pródiga
Clodoaldo Freitas (1855 – 1924) bacharelou-se na Faculdade de Direito de
Recife, em 1880. Sua atuação sócio-cultural não se cingiu apenas ao Piauí e
Pernambuco: estendeu-se por outros
Estados (Amazonas, Pará, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Rio de Janeiro).
Atuante como jornalista, político e magistrado. Mas sua ação maior avulta na
literatura, deixando publicadas cerca de 14 obras e muito mais inéditas. Começou
com Os Fatores do Coelhado, 1892,
obra política, e entrou pela história com História
do Piauí, 1902. Praticamente, o que se conhece hoje de Clodoaldo Freitas se
resume a História de Teresina, Em Roda dos Fatos (crônicas) e Vultos Piauienses (crítica), todos
reeditados pela Fundação Cultural Monsenhor Chaves, de 1988
Na
sua História da Faculdade de Direito do
Recife, Clóvis Beviláqua assim se expressa a respeito de Clodoaldo: “Inteligência superior, possuindo largo
preparo literário e filosófico, tendo-se ensaiado em várias direções, (...) foi
principalmente jornalista vivaz, solerte, elegante e maleável, para quem não
havia assunto árido, e cuja pena mais se enriquecia em vibrações e mais se
aligeirava no produzir, quanto mais dela exigiam a circunstâncias.”
Para mostrar a prosa de um livre-pensador,
destaque-se uma página do livro Em Roda dos Fatos:
Aproxima-se o dia dos mortos!
Entremos no campo santo. Aqui dormem
no sono exaustivo da morte os que descansam da peregrinação terrestre e se afundaram
no eterno não ser, nesse abismo insondável, de que todas as religiões pretendem
medir a extensão e explicar os mistérios.
Como filosofava o poeta de Hamlet,
ninguém nunca voltou da viagem às terras desse país desconhecido e longínquo,
cujas raias ninguém pode atravessar duas vezes.
Todos sonham referindo-se a esse sono
sem sonhos. É nos mistérios desse mistério que as religiões de todos os povos
vão buscar títulos para as suas visões teológicas.
O poeta hebraico, no seu soberbo
materialismo, só lembrava ao homem mortal que era pó e em pó havia de se
tornar. Realmente, aqui neste lúgubre recinto, povoado por centenas de
cadáveres, só existem, como remanescentes da vida, as ossadas e a poeira das
ossadas já consumidas. Os próprios gusanos, que nasceram e se alimentaram da
sânie apodrecida das carnes em decomposição, extinto o pasto, morreram a seu
turno na hedionda solidão sepulcral. Para além desse mistério é que podem
vicejar pomposamente os rosais do sonho com a sua floração ridente de ilusões
imortais.
..........................................................................................................................
Não morrerei de todo, dizia o poeta, e
este brado de vaidade é, simultaneamente, o brado unânime dos crentes, que
supõem não morrerem completamente e, mais ainda, esperam nessa vida imortal, desconhecida,
ficar na convivência e na intimidade de Deus, que é infinito, na plenitude de
um gozo também infinito, e nada conturba.
Essas campas solitárias, eloquentes na
sua gélida mudez, respondem às interrogações de todas as religiões e de todas
as filosofias. Aí se dissolvem as afinidades da matéria transformadas em
substâncias simples, que vão fecundar a terra, nossa mãe carinhosa.
De Clodoaldo Freitas poeta, assim registra Cristino
Castelo Branco, em seu livro Frases e Notas: “Em 1921, quando seu filho, o grande Lucídio Freitas, estava no leito
de morte, aos vinte e sete anos de idade,
vencido pela tuberculose, saíram do coração de Clodoaldo dois sonetos profundamente sentidos, que leio sempre com viva
emoção, testemunha que fui daquela dor imensa.”
O primeiro dos ditos
sonetos é aqui mostrado:
Dou-te esperanças que não tenho, e ponho
Nessa doce ilusão minha
ventura...
Mártir do amor de pai,
quanta amargura
Me punge ao despertar de
cada sonho!
Eu nunca me postei ante os
altares
Nem jamais invoquei de Deus
o nome;
Vendo entretanto o mal que
te consome,
Ergo, contrito, ao céu
tristes olhares!
Bem sei que as leis fatais
da natureza
Não se amolgam jamais ao nosso
pranto,
Não têm jamais da nossa dor
piedade!
Na agonia mortal dessa
certeza,
Contemplo a definhar, cheio
de espanto,
Gênio, glória, beleza e mocidade!
Outro soneto de Clodoaldo que o
representa muito bem é O Combate de
Jenipapo:
Parda manhã de março. Espessos nevoeiros
Cobem o campo fatal de flores matizado.
Propaga o eco o som estrídulo e pausado
Das vozes de avançar em carga dos guerreiros.
Soa o clarim marcial num brado agudo e forte,
Os bravos impelindo às fúrias do combate.
O tropel dos corceis mais brusco torna embate
Dos férreos batalhões marchando para a morte.
Povo do Piauí, vaqueiros ou soldados,
Quando a pátria te chama, aflita, nesses dias,
Nessas horas fatais de transes desgaçados,
É que sabes mostrar-te abnegado e valente!
Se Fidié triunfou, tu, ao morrer, sabias
Que a nossa boa terra ficava independente.
PROSADORES E POETAS
Higino Cunha (1858 – 1943) é o protótipo
do polígrafo: professor, poeta, crítico
literário, historiador, magistrado, orador, filósofo, jornalista. Entre essas
atividades a que mais se destaca é a de jornalista, permitindo que polemizasse
sobre os assuntos que fustigavam os espíritos
da época. Deixou alguns livros publicados e que estão a merecer reedição, para
conhecimento da juventude. Estreou com Pro-Veritate, 1883, depois vieram
O Idealismo Filosófico e o Ideal Artístico, 1913; História das Religiões, 1924; Os Revolucionários
do Sul, 1936; A Revolução de 30 no
Piauí, 1939; Memórias, 1940, entre outros. Mas a maior parte de sua obra está
sepultada nos jornais e revistas da época, muitos deles exterminados nos arquivos.
Livre-pensador , propagandista dos movimentos sociais e da Abolição, consumiu sua vida entre a
polêmica no jornal e a palavra de orador ou de mestre. Aliás, era mesmo de Mestre que o tratavam os intelectuais
seus contemporâneos e os das gerações seguintes.
Edson Cunha,
seu filho e também acadêmico, fez-lhe o retrato em poucas palavras: “Grande semelhança a dele com Clodoaldo
Freitas: ambos tinham permanentemente,
um prato a mais à mesa de refeições, para moços inteligentes e esperançosos, poetas, jornalistas,
sonhadores, que traziam, invariavelmente, da rua. E eram, então, refeições
transcorridas em um ambiente de franca e sadia espiritualidade, com declamações,
prosa variada e encantadora. (...) Polemista desasombrado e impiedoso, teve
sempre, todavia, um grande coração, solar da bondade, com um extraordinário
espírito de renúncia. (...) Como
professor, nunca reprovou um aluno.
De
Memórias foi extraído o capítulo
A
Construção da Igreja de S. Benedito, a seguir:
Foi no dia 10 de maio de 1874 que chegou a
Teresina o velho missionário franciscano
(já contava 63 anos de idade) fr. Serafim de Catânia, vindo de Caxias a
pé, com grande acompanhamento de pessoas devotas. Saiu a recebê-lo, em vapor
expresso, na fronteira vila de São José das Cajazeiras, imensa multidão de
fiéis, de todas as classes sociais, inclusive o presidente da província,
autoridades civis e militares e muitas famílias teresinenses. Foi hospedado no
palácio do governo, donde se retirou poucos dias depois, porque a sua humildade
religiosa não se coadunava com ostentações de luxo.
Fr. Serafim, como verdadeiro apóstolo,
dedicou-se, de corpo e alma, à edificação do templo de S. Benedito, que se
ostenta hoje na mais bela avenida deste capital. Durante doze anos, trabalhou
sem cessar, contando com o apoio moral e
material do governo e do povo, que o idolatrava. Percorria as duas margens do
rio Parnaíba, à busca de recursos. Vi-o mais de uma vez na casa de meu pai, que
lhe fornecia um bote com cereais e um boi para o consumo dos seus trabalhadores.
Só deu por pronta a obra depois da sagração
a 3 de junho de 1886 pelo bispo da diocese do Maranhão. Retirou-se no fim desse mesmo ano para a Itália, sua
terra natal, com 75 anos de idade. Elias Martins consagrou-lhe um estudo
completo, em estilo radiante de entusiasmo pela sua benemérita atuação na
sociedade teresinense.
Mas não pode ser
esquecido o poeta que foi Higino Cunha. É conferi-lo neste soneto de nome Madona:
Vede-a:
galhardamente o passo alterna
Num
ritmo encantador de garça branca,
Evocando,
no andar, na curva da anca,
Nossa
Senhora da Beleza Eterna.
Dos
seus lábios de fogo o amor governa
Todo
o ambiente, cuja treva espanca;
Uma
alegria sã, ingênua e franca
Pulsa
na fita que se enrosca à perna.
E
assim vai dominando sobranceira
Com
seu olhar a multidão cativa,
Ao
contemplar-lhe a fronte prazenteira.
Renda-se
um culto à peregrina Diva!
Quem
não quisera ver-lhe a forma inteira,
Gozar-lhe
a carnação forte e lasciva?
Abdias Neves (1876 – 1928) foi
jornalista, político, poeta e professor. Como ficcionista, representa as idéias
do naturalismo, no seu único romance, Um
Manicaca, 1909.
Mas era também um
historiador de grande valia. A Guerra de
Fidié, 1907, e O Piauí na
Confederação do Equador, 1921, são provas. Nesses estudos históricos extravasou o espírito
positivista da Escola de Recife. Na área ensaística, escreveu Psicologia do Cristianismo, 1910,
alentado volume onde tenta a aproximação do mito de Jesus com o dos deuses
solares. É um estudo que bem merecia já ter sido reeditado, pela profundidade das considerações filosóficas que expõe.
Aqui vai de mostra
um trecho do cap. XV, de Um Manicaca:
Araújo conchegou a roupa ao tronco e cruzou os
braços sobre o peito. As trevas eram densas. Circunvagou o olhar procurando ver
dentro da escuridão. Não vendo nada, escutou... Fazia um silêncio pesado,
interrompido apenas pelo canto de um grilo e pelo chi chi chi da chuva nas
telhas. A varanda estava deserta. E ia retirar-se, certo de se ter enganado,
quando uma risada espirrou do quarto de d. Júlia, em frente.
Estremeceu. Voltou-se para a porta e foi quando viu
que, nas trevas, esplendia, luminoso e rubro, o pequeno orifício da fechadura.
No mesmo instante, chegaram-lhe aos ouvidos palavras dispersas de uma conversa
travada à meia voz. Estavam, dentro,
duas pessoas; mas, o que acabou de pasmá-lo, foi parecer-lhe que uma das vozes
era de homem e que a conhecia.
A surpresa foi tão violenta que ele esteve para
cair. Tremiam-lhe as pernas. Sua respiração tornou-se estertorosa. Sentiu um
mal-estar intraduzível e apoiou-se no portal cambaleando.
Quis aproximar-se, olhar pela
fechadura, pelas trinchas da porta, espiar o que se passava ali dentro, que homem era esse, -
saber que nova desgraça lhe chegava, depois de tantas outras. Uma curiosidade
terrível arrastava-o para aquele orifício de fogo, -- brilhante, vermelho,
abrasado como a clarabóia de uma torre do inferno. Teve o maior dos sofrimentos
de sua vida, - uma suspeita da esposa. Tudo denunciava um
crime que um olhar comprovaria. Perturbava-o, porém, o ridículo da sua posição
e vacilou até que a curiosidade venceu.
Queria certificar-se. Chegou à
porta e espreitou... No quarto, bem
iluminado, estavam, somente, a rede armada, no centro, e uma cadeira onde se
amontoavam, em desordem, anáguas e um par de calças de brim. O olhar de Araújo
não se fixou, imediatamente, na rede. Foi escorregando pela parede, para se
demorar sobre a cadeira.
João Pinheiro (1877 - 1946), formado em odontologia, foi professor
e diretor do Liceu Piauiense, diretor da Instrução Pública do Estado e membro da
Academia Piauiense de Letras. Crítico literário, historiador,
ficcionista e poeta, publicou Solar
de Sonhos, 1906, À Toa... Aspectos do Piauí, 1913, Fogo
de Palha, 1925, Literatura Piauiense,
1937 - primeiro obra a historiar o fenômeno da arte literária em nosso meio).
Teve a má sorte dos historiadores e críticos literários que também são criadores:
– Não devem ou não podem falar de si mesmos, por modéstia ou por princípio
ético. E os outros lhes esquecem, deixando-os apenas como historiadores ou críticos. Por tudo isto e por mais, entre os nossos
prosadores, João Pinheiro ocupa um lugar
à parte. Num ensaio sobre o conto
piauiense, o Prof. Wilson Brandão disse das qualidades de João Pinheiro: “É o nosso primeiro regionalista. (...) Não
é um estilista. Mas sua linguagem fica sempre em perfeita correspondência com o
meio e os personagens das narrativas, que constrói com simplicidade e
maestria.”
Tomando-se
por base a estrutura do conto pós-romântico, é nosso primeiro contista. Possui
a tradição do homem e da terra, até então explorada somente na poesia, e leva-a
para a prosa de ficção naturo-realista, porém já, inusitadamente, com um toque
poético.
Coração
de Negro, do livro Fogo de
Palha, é bem um exemplo:
Ainda sob a dolorosa impressão que lhe causara o falecimento da
irmã, ocorrido na véspera, em condições tão inexplicáveis como imprevistas,
Reginaldo recolheu-se, vagarosamente, ao vasto aposento que ocupava, por
último, na ampla casa da fazenda.
A princípio, tentou pôr em ordem
certos papéis: acercou-se da mesa, aproximou a cadeira, abriu as gavetas mas,
ao avistar a letra da morta no primeiro que deparara, um azulado fragmento de
almaço em que ela, na véspera, distraidamente, traçara, por diversas
formas, o próprio nome, afastou, imediatamente, a recheada pasta. Teve um longo suspiro
seguido de rápido movimento de pesar.
Deixou pender conturbado a fronte num expressivo gesto de abatimento e
permaneceu imóvel, por alguns momentos.
Depois, se ergueu como um autômato,
circunavegou o olhar demorado por todo o aposento, deu alguns passos ao
acaso, chegou à porta que abria para a
sala de jantar e, com as retinas ainda profundamente impressionadas pela
graciosa imagem da morta adorada, como que a viu se afastando, pouco
distante, no claro vestidinho caseiro,
um sorriso a esvoaçar garridamente nos lábios puníceos, o passarinho sutil...
Que evocações! Julgou mesmo ouvir o timbre de sua voz harmoniosa... as mesmas
frases prediletas... Como aquilo ia
longe! Coitada!...
Retrocedeu... Demorou-se algum tempo indeciso, sentando-se,
por último, na rede que pendia de um canto.
Levou as mãos à cabeça e, insensivelmente,
incidiu nas mais dolorosas cogitações.
Fora, na doce inquietação do
meio-dia, flabelavam palmeiras.
Monótonos, retardados, como que impregnados
de nostalgias indefiníveis e transportados de paragens muito remotas, ecoavam cantos
de capotes que sesteavam placidamente sob o protetor ensombro de copadas
árvores do pátio.
De onde em onde, em notas agudíssimas,
dispersas, denunciavam-se maviosos chicos-pretos ou xexéus, em grandes ninhos
pendentes do alto de cajazeiras, ensinavam aos filhos implumes velhíssimos
trechos de sentidas endeixas que, por sua vez e pelo mesmo sistema, haviam aprendido
ainda quando pequenitos.
De longe, da casa da bolandeira,
partiram esgarradas vozes de crianças intercaladas de retumbantes brados de excitamento
a animais ordinariamente empregados na faina diurna ou uma ou outra agreste
melodia não raro interceptada por outros rumores:
O
sabiá quando canta,
Treme com a língua no bico...
Amélia de Freitas Bevilaqua (1861 – 1946), romancista,
contista, cronista, foi a primeira mulher a tentar ocupar uma cadeira na
Academia Brasileira de Letras, em 1930, e
não conseguiu. A entidade representativa da cultura brasileiro negou sua
inscrição, alegando que o estatuto admitia a entrada de brasileiros, mas era omisso
com relação à inscrição de brasileiras.
Entretanto, ela foi
a primeira mulher a ocupar uma cadeira na Academia Piauiense de Letras, após a
morte de seu primo Lucídio Freitas, em 1921.
Espírito da belle époque. Sílvio Romero, à época da publicação de um de seus romances,
em 1936, assim classificou-a: “A autora do romance Vesta, sem pretensão, sem vaidades inovadoras, sem amor ao efeito,
naturalmente, placidamente, recordando cenas que viu, tem, em seus contos e
novelas, tratado temas novos ou pelo menos pouco vulgares.” Vivia muito
mais na Corte do que na Província.
Publicou mais os
seguintes livros: Alcione, 1902;
Aspectos, 1906; Através da Vida, 1906; Angústia, 1913; Açucena,
1921; Impressões, 1929; Silhouettas, 1931; Jornadas pela Infância,
1940; Milagres do Natal, Reminiscências
e muitos outros.
O conto Pedro Cego, do qual foi extraido o texto a seguir, mostra bem o
seu estilo:
Todas as tardes, na hora do arrebol,
batia à nossa porta um homem alto, de porte esbelto e distinto, já envelhecido, extremamente
simpático; vestia sempre sobrecasaca preta, muito longe da moda, e calças, que
variavam as cores, tudo gasto, cheio de remendos, porém asseado. Era cego e
cearense. Lá em casa todos o amavam. Assim que se ouvia a zoada soturna de seu
velho bastão, sondando os espaços, corria, afoitamente, a criançada para
recebê-lo. Havia um alvoroço desadorado, onde todos se agitavam, barulhentos,
muito alegres, como num porto os passageiros, na ocasião do desembarque. Uns
sorriam, outros gritavam, mostrando as dádivas guardadas para o pobre cego. O
Vinício, muito meigo e humilde, vinha, entre nós, conduzindo o jantarzinho do
velho, fazendo gestos de alegria radiosa, dizendo (ainda hoje me lembro de suas
palavras): “Deixe eu também me assentar no seu colinho, seu Pedro.” Arrebentava, no mesmo momento, a
revolta. O lugar não era dele! Preto se assenta no chão...
Esmagado de Freitas e Sousa (1887 – 1946), professor, jornalista, jurista, historiador,
contista, crítico e poeta, não se lembrou ou não teve tempo de colocar sua
produção em livro, exceto a novela Consolo
Amargo, 1908,
No
historiador e cronista tem-se a melhor
parte de sua obra. Portanto, a pequena mostra recai sobre O Testamento de Domingos Sertão:
Quando
o superior dos jesuítas soube que Domingos Sertão acamara, destacou uma de suas
patrulhas para assistir o famoso ricaço, sobre cujos haveres pousavam, havia
tempo, as vistas cobiçosas da astuta Companhia.
Soldados de Santo Inácio meteram-se –
num pronto – em casa do precioso enfermo
prestativos, dominadores, exclusivistas, velando mal o propósito de não deixar
morrer ab intestato o antigo
agregado dos Ávila. E ali ficaram à espera do momento azado para comover o
apático mortal por demais apegado às coisas do mundo e, em especial, às
riquezas que acumulara.
Mas eis que imprevista crise se
manifesta, em consequência da qual o
cansado vencedor dos agrestes e caatingas perde a fala... Os animosos padres
depressa mandaram chamar, na vizinhança, o tabelião de que eram fregueses –
velho escriba “camarada”, desambicioso e maneável, que não se fez esperar; e, ao penetrar na alcova, encontrou – junto
ao leito de Domingos Afonso – dois jesuítas: um, sentado à cabeceira, apoiava a
cabeça do moribundo; o outro estava defronte, e de pé.
Este logo foi falando:
- O irmão não disse que legava todos
os seus haveres aos padres jesuítas do Colégio da Bahia para o fim piedoso de
dotar donzelas, amparar viúvas e órfãos e dar esmolas aos pobres?
Do alto dos travesseiros, sob que se
metera a mão do primeiro inaciano, a cabeça do nababo exânime flectiu com
anuência.
Logo, logo o notário tomou a palavra, igualmente interrogativo:
- E o irmão não disse, outrossim, que
destinava uma das suas fazendas do Canindé para o oficial que lhe houvesse de
lavrar o testamento?
Desta vez a cabeça não se moveu. Os
padres intersondaram-se atônitos. Crescia-lhes a estupefação em face do inópino
colegatário, que, meia volta dada, se dispôs a sair, exclamando com decisão e
ironia:
- Pois se não disse isto, também não
disse a outra coisa: nada disse!
Um dos reverendíssimos presentes
salvou a situação, embargando os passos do estomagado velho e concitando-o a
que tivesse calma e reparasse. O irmão estava respondendo afirmativamente.
O padre da outra ponta do leito
conseguiu ainda da valiosa cabeça o movimento reclamado. O tabelião
reumanizou-se: e foi logo tratando de passar para o papel a expressão da última
vontade do importante latifundiário.
E minutos após a morte em cristandade
de Domingos Afonso Sertão era anunciada “urbe et orbe”.
MAIS POETAS
Os fundadores da
Academia e outros que lhes seguiram os passos representam uma evolução
estética, tendo em vista que, em sua maioria, estudaram em Recife e trouxeram a
influência dos grandes mestres daquele cenário renovador do pensamento e da
arte brasileiros. A fundação da Academia Piauiense de Letras foi um feito importante
para a época.
Além
de Lucídio Freitas, Da Costa e Silva, Celso Pinheiro e Clodoaldo Freitas, já
estudados, merecem menção e leitura os poetas Félix Pacheco, Jonas da Silva,
Antônio Chaves, Zito Batista, Jônatas Batista, Baurélio Mangabeira, Fenelon Castelo
Branco e Nogueira Tapety.
Félix Pacheco ( 1879 - 1935), jornalista,
político, parlamentar e poeta parnasiano-simbolista, é um dos nomes mais celebrados do Piauí fora
dos seus limites. Não obstante tenha escrito e publicado muito, dois acontecimentos extraliterários contribuíram
para que se fizesse e se sustentasse como nome nacional: primeiro, sua eleição
e posse na Academia Brasileira de Letras, 1913; segundo, sua atuação como Ministro das
Relações Exteriores, de
Estreou como poeta,
com Chicotadas, 1897, e continuou escrevendo e publicando
poesia: Via Crucis, 1900, Mors-Amor, 1906; Inezita, 1915; Martha,
1917;
Tu, só tu.... 1917; No Limiar do Outono, 1918; Lírios
Brancos, 1919, e muito mais, encerrando com Poesias, edição definitiva,
Lágrimas... noutras épocas verti-as.
Não tinha o olhar enxuto
como agora.
-
Alma, dizia então
comigo, chora!
Que assim minorarás as agonias!
Ah! quantas vezes pelas faces frias,
Umas, outras após, a toda hora,
Gota a gota rolando elas, outrora,
Marcaram noites e marcaram dias!
Vinham do oceano d’alma, imenso e fundo,
De espuma as ondas salpicando o flanco,
Numa fremência amargurada e louca.
Nos olhos hoje as lágrimas estanco...
Rolam, porém,
sem que as descubra o mundo
Sob a forma de risos pela boca.
Alcides Freitas (1890-1913) foi grande
poeta, vivendo tão pouco e morrendo do “mal do século”. E era também bom prosador. Formado em Medicina
pela Escola da Bahia. Mesmo tendo falecido tão jovem, deixou as seguintes
obras: Álvares de Azevedo, conferência, 1912; Alexandrinos,
sonetos, em colaboração com Lucídio Freitas, 1912; A
Tesoura, conferência, 1912, e os inéditos Da Lágrima, estudo de físio-psicologia, e Noturnos, volume de crônicas, conferências e poemas.
“Em Alcides se chocam as duas causas contraditórias: A vida
objetiva, exterior, do habitat
formoso da sua infância e adolescência,
e a vida subjectiva, minada pelo virus cruel, no íntimo do seu frágil
organismo. Mas a alma dominada quase sempre pela tristeza, alçava-se por vezes
sobre o último para cantar o primeiro”, diz João Cabral. E mostra
o primor que é o soneto inicial da coleção de Alexandrinos:
Mais um ano cruel de tédio e de desgraça
Risca o lápis do tempo, e o
papel é a tortura!
E eu sigo, e eu vou assim,
rumo da sepultura,
- Desvairada visão que pela
noite esvoaça...
Qual Gerard de Nerval num lampião de praça,
Hei de a vida enforcar à
corda da amargura!
E adeus sonhos de amor! dias
bons de ventura!
Que se foram pelo ar em
ondas de fumaça...
Morte, sombra do amor que os meus sonhos
deslumbra!
Abre os braços a mim, velha
caveira triste!
Que eu não fique por mais no
horror desta penumbra...
Ai!
no grande pesar da minha alma de monge,
A dor, somente a dor,
impassível, persiste...
A dor de uma saudade... a
Morte que vem longe...
Jonas da Silva (1880 – 1947) é o
nome literário de Jonas Fontenele da Silva.
Cirurgião-dentista formado pela Faculdade do Rio de Janeiro. Poeta,
colaborou na imprensa do Piauí e do Amazonas, sendo membro das duas Academias:
Piauiense de Letras e Amazonense de Letras. Estreou com Ánfora, 1900, quando recebeu merecidamente elogios de B. Lopes,
Artur Azevedo e de muitos outros intelectuais brasileiros. Depois publicaria Uhlanos, 1902, e Czardas, 1932. “A poesia de
Jonas da Silva é brilhante e de recursos variados em cor e timbre”, diz
Andrade Muricy. Viveu muito tempo em Manaus, daí porque sua obra não é
muito divulgada no Piauí. É conhecido no país inteiro pelo soneto “Coração”:
Meu
coração é um velho alpendre em cuja
Sombra
se escuta pela noite morta
O som
de um passo, o gonzo de uma porta
Que
a umidade dos tempos enferruja.
Quem vai passando pela estrada
torta
Que
leva ao alpendre, dessa estrada fuja!
Lá só se encontra a fúnebre
coruja
E a dor que à prece o caminhante
exorta.
Se um dia abrindo o casarão
sombrio
Um abrigo buscasses contra o
frio
E entrasses, doce criatura
langue,
Fugirias tremente, vendo ao
lado
A Crença morta, o Sonho
estrangulado
E o cadáver do amor desfeito
em sangue!
Antônio Chaves (1882 – 1938), funcionário
público estadual e jornalista (redator de “O Arrebol” e “Alvorada”, diretor do
“Diário do Piauí´” e colaborador de “Litericultura”
e “Correio de Teresina”), foi um dos fundadores da Academia Piauiense
de Letras. Embora não bafejado pela crítica, foi um bom poeta e sobrtudo um
poeta do amor. Publicou o primeiro livro em parceria com Celso Pinheiro e Zito Batista,
em 1907, com o título Almas Irmãs, depois
individualmente, Nebulosas,
1916, e Poemas da Mágoa, 1919. Deixou inéditos: Líricas e Poesias. Eis
um soneto representativo de sua lírica:
Ouvindo a voz dulcíssima e macia,
A doce voz com que ela me falava,
Como que o próprio vento se calava,
E além, no alto do azul, o luar sorria.
E enquanto, resplandente de alegria,
Ela o seu grande amor me confessava,
A natureza toda palpitava,
Talvez sentindo o que eu então sentia...
Eu sentia a ilusão de estar fitando,
Ao despontar suavíssimo do dia,
Uma estrela suavíssima cantando...
Pois que lhe ouvindo a voz límpida e bela,
Eu, repleto de amor, apenas via
A beleza imortal dos olhos dela.
Zito Batista (1887–1926). Funcionário dos
Telégrafos e depois do Ministério da Agricultura. Era autodidata. Poeta,
crítico literário e jornalista. Foi diretor da Imprensa Oficial do Piauí.
Redigiu “A Alvorada” e “Cidade Verde”,
jornais de Teresina, e “O Jornal”,
diário carioca de grande circulação, onde publicou muitos dos seus poemas.
Viveu no Rio muitos anos. Produção: Almas
Irmãs, com Antônio Chaves e Celso Pinheiro, 1907; Chama Extinta, 1918; Harmonia
Dolorosa, 1924; Poesias Reunidas, 1924.
Segundo Raul Machado, “Zito
Batista transmite às suas produções um calor suave de sentimento e uma
sinceridade de emoção menos comuns na maioria dos nossos versejadores.” Sentimental, romântico, Zito Batista tinha a
empatia dos temas tristes. Monólogo
de um Cego é uma prova substancial da afirmação:
Falaram-me do sol! Maravilhoso sol
Refulgindo na altura...
Ah! se o pudesse ver, assim como um farol
Imenso, inacessível
Em vertigens de luz sobre a nossa cabeça...
E -
eterna desventura! –
Eu fiquei-me a pensar: por
que o sol invencível
Não rasga o negro véu de
minha noite espessa
Quando brilha na altura?
Falaram-me também da floresta e das aves,
Das aves cujo
canto
Põe na minha alma, em febre,
uns arrepios suaves
De vaga nostalgia...
Ah! se eu pudesse ver as
aves e as florestas!
Soberbo o meu
encanto,
Se eu pudesse aclarar minha
noite sombria,
Quando ouvisse, enlevado, em
delírios e festas,
Num soberano canto,
Todo o poema de amor das
aves nas florestas!
E
o mar? onde mais um belo símbolo da
vida?
O mar é um
rebelado
Que vive, noite e dia, em
soluços, gemendo
De cólera
incontida,
A investir contra o céu,
como um tigre esfaimado!
É lindo o mar no seu
desespero tremendo!
Eu não o vejo, não, mas
chega aos meus ouvidos,
E escuto, alucinado,
A música fatal dos seus
grandes gemidos!
Há toda uma tragédia enorme
a interpretar
Nesse choro convulso e
incessante do mar...
Ah! Que destino o meu, que
desgraçada sorte
Me traçou, pela terra, a mão
de um Deus brutal!
Na vida, em vez da vida,
anda comigo a Morte,
A escuridão sem fim...
Tenho
a envolver-me o corpo a asa torva do mal!
E
falam-me do céu, das aves e das flores,
E
dizem-me que o mundo é um paraíso, assim
Todo
cheio de luz, de aroma, de esplendores!
E eu creio! Eu creio em
tudo...
Os
homens têm razão! Eu creio, e desejara,
Ver o mar, ver o sol no firmamento
mudo
A brilhar! A brilhar!
Mas, o meu grande sonho, o meu sonho infinito
É
outro, um outro ainda, o que me faz chorar
E há-de, em fúria, arrancar-me o derradeiro grito,
Quando eu daqui me for, aos trambolhões, a esmo,
É a ânsia indefinida, o desejo profundo
De conhecer o que há de original no mundo:
Conhecer a mim mesmo!
Porque,
a julgar, talvez, pelo mal que me oprime,
Eu
devo ser, por força, um monstro desconforme,
Na
eterna expiação do mais nefando crime,
Atado
ao poste real de minha dor enorme!...
Baurélio Mangabeira (1884 – 1937), nome literário de Benedito Aurélio de
Freitas, sócio-fundador da Academia Piauiense de Letras, poeta, na vida prática
foi jornalista, funcionário do Liceu Piauiense e juiz distrital. Publicou Sonetos Piauienses, 1910. “Boêmio, dado ao álcool, vida
irregularíssima, recitava constantemente, com uma entonação especial de voz” , assim
Cristino Castelo Branco vê o homem e o poeta, recitando este e outros
sonetos:
Não julgues que se a vida não maldigo
Seja porque minh’alma não sofreu
Os travos da desgraça, agro castigo,
Que dizem vir do inferno e vir do céu.
Poucos anos meu pai viveu comigo,
Cinco rápidos anos e morreu...
E minha mãe, com lágrimas te digo,
Dentro de algumas horas faleceu.
Escuta lá: nos cemitérios vastos
Os ossos dos meus pais devem estar gastos
Pelo tempo que tudo estraga e rói.
Olha: quem cedo nesta estrada cai,
Sem ter mãe, minha filha, e sem ter pai,
Há de sentir o quanto a vida dói.
Fenelon Castelo Branco (1874 - 1925). Magistrado,
promotor público e juiz em várias comarcas, nos Estados do Piauí e Maranhão. No
Governo de Miguel Rosa, foi nomeado Secretário de Polícia. Jornalista eficiente
e dos mais destemidos. Figura entre os fundadores da Academia Piauiense de
Letras, sendo o seu primeiro secretário, reeleito várias vezes e, assim,
prestou um grande serviço à cultura. Poeta de feição ora satírica, ora popular.
João Pinheiro confessa gostar mais dessa última característica, lamentando
haver dado menor vazão a esse lado. Obras: Ano
de Luto, 1902, elegias escritas após o falecimento de Ana Fortes Castelo
Branco, sua mulher; União por Dentro,
1916, satíricos, com o pseudônimo de João Elisiário; Das Galerias, 1914, idem,
com pseudônimo de Dr.
Chaleira; Desabafos, 1918; e Nossos
Imortais, inédito. O poema “Álbum” é exemplo de sua melhor
poesia:
Do
meu álbum na folha cor de rosa,
Onde
o amor filial canta e fulgura,
Dedico
a minha mãe, meiga e bondosa,
Todo
o meu ser repleto de ternura.
E na
página branca o doce emblema,
Dum
sentimento que jamais se esvai,
Entre
as belas estrofes de um poema
Escreverei
o nome do meu pai.
Relembrarei
aqui todo o martírio,
Toda
a mágoa que um dia me envolveu,
Conservando
na folha cor de lírio
A
saudade da esposa que morreu.
Como
um astro fulgurante e luminoso
Surge
depois a página dourada,
Onde
cintila o vulto gracioso
De
quem me trouxe à vida outra alvorada.
Aos
meus filhos, um bando de crianças,
Meigas
e frágeis, como passarinhos,
Na
folha verde, um ninho de esperanças
Lhes tecerei
com beijos e carinhos.
A
folha azul tão linda e recamada
De
flores, as mais belas e louçãs,
Representa
uma abóbada estrelada;
E as
estrelas sois vós, minhas irmãs!
E
esse livro elegante e primoroso,
No
que o meu amor todo concentro,
Guardo-o
sempre num cofre precioso
- Meu próprio coração – Ei-lo lá dentro!
Nogueira Tapety (1890 – 1918) fez os
primeiros estudos na sua terra e formou-se em direito
Não
te quero por tua formosura
De
rainha da graça entre as mulheres,
Quero-te
porque és boa, porque és pura
E
inda mais porque sei que tu me queres.
A
beleza exterior nem sempre dura.
E a
d’alma... estejas tu onde estiveres,
Ungirás
de meiguice e de doçura
Tudo
em que a bênção desse olhar puseres.
Eu sou artista: encanta-me a beleza,
Em ti, porém, abstraio-a inteiramente,
E penso amar-te assim com mais nobreza.
Pois se te esqueço a forma e a mocidade,
É para amar em ti unicamente
A encarnação suprema da bondade.
Édison Cunha (1891 - 1973). Misto de poeta e prosador. Em sua vida
extraliterária, notabilizou-se como professor, em Parnaíba, onde viveu a maior
parte do tempo. Publicou pouco: Razões
Finais, 1941; Correspondência para
Você, 1943; Vozes Imortais,
1943, e mais alguns discursos.
Sobre sua personalidade,
o depoimento de Manfredi Mendes de
Cerqueira, que foi seu aluno, é sumamente valioso: “Édison Cunha e Lima Rebelo eram advogados e mantinham estreitos laços
de uma sincera amizade. Na região Norte do Estado eram profissionais
emblemáticos.” E, em seguida, completa. “Cidadão probo, cordato,
humilde, de fino trato social e
um verdadeiro diretor de consciências. Os alunos encontravam nele um amigo
sincero, um colaborador bem intencionado, uma dessas pessoas que justificam,
com seus atos a etmologia do vocábulo amizade.”
Seus
textos eram simples e bem cuidados. Eis aqui uma crônica em que descreve
Teresina da entrada do século:
Quando o século vinte chegou, Teresina
era uma cidadezinha com fisionomia e costumes profundamente sertanejos, longe,
muito longe do Brasil e do resto do Estado, com os quais se punha em
comunicação pelo tráfego sem pressa dos rios Parnaíba e Itapecuru, ou pelas
morosas tropas de cargas e cavalgadas através do sertão, tal como se viajava
Vivíamos,
assim, com setenta anos de atraso nas
comunicações com o resto do país.
Daí, poder-se-ia deduzir a
quietação, a calma, a monotonia de
Teresina.
Efetivamente, a cidade do Conselheiro
Saraiva, embora de alinhamento impecável,
tinha ruas descalças, escavadas, na quadra chuvosa, por onde corriam regatos rápidos, comprimidos
nos altos e baixos dos passeios laterais. Para iluminá-la, de longe em longe, a
municipalidade mantinha faróis a querosene, até dez horas da noite. Mal serviam eles de ponto de referência aos
notívagos. Dado o toque de silêncio e recolhimento, nos quartéis, os lampiões
baixavam as pálpebras, fechavam os olhos e dormiam.
(...)
Recolhidas as famílias, depois das
nove, entravam em cena os boêmios, trovadores, apaixonados, aproveitando as
melhores horas enluaradas e sacudindo o sossego com flautas, violões e modinhas
próprias ou de Castro Alves, Casimiro de Abreu e outros poetas
Um exemplo de sua
poesia:
O
vento passa, inalteravelmente,
Tangendo
a areia, vergastando a vaga;
Sensações
de volúpia a praia sente,
As
carícias do mar que a beija e afaga.
O
farol entre as pedras lentamente,
Ao
contato do mar todo se estraga:
Já
não mais sua luz, candentemente,
Cintila,
nem se acende, nem se apaga.
A
natureza, ao por-do-sol parece
Grandiosa
catedral, em cujo seio
O
oceano verde reza sua prece.
Quanta
saudade evoca aquela praia!
Que
de emoções sentimos, quanto enleio,
Olhando
a vaga imensa que desmaia.
TEATRO
Jônatas Batista
A dificuldade da
história da criação teatral é que nem sempre os autores cuidam de publicar suas
peças. Depois de encenadas, dão por encerrado o seu trabalho. A posteridade
muitas vezes fica impedida ler os textos. No passado foi muito pior do que
agora.
Higino Cunha, em sua
obra “O Teatro em Teresina”, registra
que pouco havia digno de menção entre os piauienses daquele tempo. “Os nossos escritores, mesmo os mais
fecundos, como David Caldas, Clodoaldo Freitas e Abdias Neves entre os vivos,
não se dedicaram a esse gênero. Além de algumas tentativas malogradas de
Licurgo de Paiva e de um drama religioso
sobre o Natal, do Dr. Luiz Correia, somente as obras de Jônatas Batista merecem
figurar nesta resenha histórica. O seu drama Jovita ou a Heroína de 1865, as suas revistas de costumes, principalmente O Bicho, os seus monólogos e cançonetas, tão aplaudidos pelo nosso
público, já tiveram repercussão lá fora,
onde não contamos nenhum teatrólogo, e lhe facilitaram o ingresso na
Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, da qual é sócio, o único piauiense
que mereceu tamanha honra até hoje.”
Jônatas Batista (1885 – 1935) foi antes de
tudo um apaixonado pelo teatro. Expressivo autor, dominou por mais de três décadas
o palco
Do teatro de Jônatas
Batista restou apenas a segunda parte de Jovita...,
representada no “Teatro 4 de Setembro”, em 19 de abril de 1914 e depois
publicada numa das revistas da Academia Piauiense de Letras.
Cena I:
Personagens: Jovita Alves Feitosa, 17
anos; Pedro Martins Feitosa pai de
Jovita), 58 anos; Anacleto Ferreira, 25 anos; Padre João da Natividade, 46 anos.
Palco:
Sala pobre, tendo porta e janela ao fundo, e mais uma porta à esquerda.
Uma pequena mesa de pinho, ao centro, alguns bancos ou tamboretes espalhados...
Martins – O teu casamento está se tornando, deveras,
encantado. Tanta demora já me vai tornando apreensivo. Eu estou velho e doente:
desejaria, pois, ver-te, de algum modo, amparada, antes da minha morte que
pouco tardará.
Jovita –
Ninguém mais ansiosa do que eu,
papá bem sabe disso; mas, que havemos de fazer ... Henrique também tem muito desejo de se casar
logo. Precisava, porém, segundo afirma, se preparar com mais alguma
decência. A colheita deste ano, como
ninguém ignora, foi péssima, e, por mais que se esforçasse, não lhe foi possível adquirir o dinheiro
necessário às últimas despesas.
Martins – Lá isto é verdade. Cheguei mesmo a recear uma
seca tremenda, como a que nos fez fugir
do Ceará. (Pensativo) - Eras, nesse
tempo, tão pequenina!... Nem podes, mesmo, fazer uma idéia aproximada
do quanto sofremos – eu e a tua infeliz mãe!...
(Suspirando) – Pobre Carlota!...
Morreu, lutando pela vida... Tinha tanto receio de emigrar, e, ao fim de
contas lá se foi para as longas terras de onde não se volta mais. (Retendo as
lágrimas) – Aí, quanto custa se recordar essas cousas...
Jovita (carinhosa) – Papá sabe,
perfeitamente, o quanto lhe fazem mal tristes recordações. O capitão José de
Campos e até mesmo o Dr. Manoel Rosendo, que por aqui passou o ano atrasado,
recomendaram, insistentemente, muita calma, muito sossego de espírito e...
Martins
– Sim, sim, minha filha; mas é que o sofrimento, como o amor, tem também as
suas raízes. A saudade, uma vez plantada em nossos corações, jamais ou
dificilmente me poderá arrancar. E se
tentamos isso por meios violentos, pode levar consigo um pedaço da terra onde
germinou e nos causar a morte.
Jovita – Pois sim, pois sim, mas...
Mudemos de assunto. As tristezas também me causam tormento, principalmente
depois da já prolongada ausência de
Henrique. (Grande Pausa).
Não conheci, ou quase não cheguei a
conhecer minha infeliz mãe; contudo, venero a sua memória, como tenho amor à
terra que me viu nascer. Ao Ceará, a bendita terra dos “verdes mares bravios,
onde canta a jandaias nas frondes da carnaúba”, devo o meu nascimento, e ao
Piauí – a rijeza do meu caráter e a sensibilidade de minh’alma de virgem.
Deixemos, porém, essas tristes recordações que
muito me atormentam e muito mal
fazem ao senhor.
Martins – Pois bem.
(Levantando-se). Vou fiscalizar o trabalho da vazante. (Pegando no
chapéu que deve estar sobre a mesa) – Só o trabalho me poderá distrair.(Sai
pelo fundo).
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