II
GERAÇÕES HISTÓRICAS
“A história literária é um sistema que só adquire
existência quando estabelece a sua própria tradição, a consciência de uma
continuidade orgânica.”
Wilson Martins
INTRODUÇÃO
Fazer
literatura do Piauí é prática cotidiana atestada por diversas autoridades de
dentro e de fora dos seus limites, sejam críticos, escritores ou simplesmente
intelectuais.
A.
Tito Filho, quando presidia a Academia Piauiense de Letras, escreveu:
É necessário que se busquem os fundamentos populares
da sociedade, pois a cultura de elite se deforma. A cultura oficial sempre se
mostra aleijada e falsa. Só a cultura popular tem raízes certas. A literatura
se completa exclusivamente com a participação do povo. Existe literatura
piauiense? Sim. Circunstâncias históricas e mesológicas criaram para a
literatura piauiense feição peculiar de responsabilidade do nosso isolamento
geográfico e cultural, durante anos.
Assis
Brasil, o maior crítico nacional vivo, com perto de duzentas obras publicadas,
o romancista com valiosos prêmios na área, confessa que «o Piauí literário existe, como existe o Maranhão, o Ceará, Minas
Gerais, Bahia.» E não fala de escritores
isolados ou que emigraram da terra e se projetam nos centros culturais mais
conhecidos, ou mais divulgados, como o Rio de Janeiro e São Paulo. Refere-se
mesmo aos escritores que ficaram e exercem o duro ofício, muitas vezes não se
interessando pela projeção nacional.
Há,
entretanto, alguns intelectuais e professores que se referem a uma “literatura
no Piauí”, ou, o que é pior, a uma “literatura brasileira de feição piauiense”,
eufemismos que só servem para destratar o Piauí e seus escritores.
Desde
quando existe, porém, a literatura do Piauí? E que obras e autores devem ser
estudados? Que períodos ou gerações podem ser comparados com a literatura
brasileira? Especificamente, por que um autor do porte de Da Costa e Silva
nunca obteve mais do que duas ou três citações lá fora, dois ou três sonetos
divulgados em antologias nacionais? Por
que os historiadores do Simbolismo não encontraram nada do nosso grande poeta
Celso Pinheiro, sendo ele tão forte quanto Cruz e Sousa, quanto Alphonsus de
Guimaraens?
Estas
e outras questões devem ser levantadas e respondidas por aqueles que se
preocupam com o Piauí: escritores, professores e autoridades ligadas ao campo
histórico-cultural, educacional e artístico.
DIGRESSÃO
I
As
pesquisas literárias são falhas porque os críticos e historiadores não descem
às fontes. São ditadas pelos donos da Literatura Brasileira. Eles
crêem que ninguém pode tornar-se literato de nível nacional se não fixar
residência definitiva no Rio ou São Paulo.
Mário Faustino (22-10-1930 – 27-11-1962),
nascido em Teresina, revolucionou o pensamento e o fazer literário do país, no
Rio de Janeiro, no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil (o famoso SDJB). Mas,
antes, tendo feito seus primeiros estudos no Piauí, foi morar em Belém – PA.
Ali fez literatura e jornalismo, estudou direito e, ganhando uma bolsa, vai
para os Estados Unidos onde faz curso de língua e literatura inglesa. Faleceu a
serviço do Jornal do Brasil, numa viagem de volta a diversos países onde
fora fazer reportagens. Deixou apenas O
Homem e sua Hora, única obra publicada. Postumamente, foram editados seus
artigos de crítica e doutrina no SDJB (Suplemento Dominical do Joarnal do
Brasil), assim como seus poemas inéditos.
Para não ficar apenas em biografia, leiamos o poema Prefácio:
Quem fez esta manhã, quem penetrou
À noite o labirinto do tesouro,
Quem fez esta manhã
predestinou
Seus
temas a paráfrases do touro,
A traduções do cisne: fê-la para
Abandonar-se a mitos essenciais,
Deflorada por ímpetos de rara
Metamorfose alada, onde jamais
Se exaure o deus que muda, que transvive.
Quem fez esta manhã fê-la por ser
Um raio a fecundá-la, não por lívida
Ausência sem pecado e fê-la ter
Em si princípio e fim: ter entre aurora
E meio-dia um
homem e sua hora.
Torquato Neto (9-11-1944 – 10-11-1972),
outro poeta piauiense como Mário Faustino, ambos frustrados por morte prematura,
nascido e criado em Teresina, foi um dos mentores da Tropicália, o último
movimento poético nacional originário da Bahia, onde estudou e fez letras de
música para os baianos Caetano Veloso e Gilberto Gil. Torquato Neto não deixou
nenhum livro editado, mas seus amigos do Rio publicaram Os Últimos Dias de Paupéria,
1973, com poemas encontrados em seus arquivos e crônicas que publicara na
imprensa carioca: o melhor de Torquato
Neto. Uma antologia de seus poemas será
mostrada na parte que corresponde a sua geração, a mais recente da literatura
do Piauí .
Mário e Torquato,
ambos são bastante divulgados no ainda chamado de centro cultural do país, pois
ganharam o interesse da mídia. Outros escritores de porte poderiam ser juntados
a eles: Berilo Neves, Da Costa Andrade, Permínio Asfora e Esdras do Nascimento.
E mais Everaldo Moreira Veras, que se
fez pernambucano por adoção, onde tem publicado sua moderníssima arte. E mais Alberto Da Costa e Silva que, não
sendo nascido no Piauí, no que escreve é muitas vezes piauiense, se não bastasse
simplesmente ser filho do nosso maior poeta, precisa estar nesta recensão.
Alberto Da Costa e Silva é um grande poeta, tendo
vivido a infância em Fortaleza-CE e agregado, em sua poesia, algo da vida
nordestina e de sua linguagem, se bem que filtrada pelo universo do diplomata, merece ser mostrado como exemplo. Bem característico
dele é o poema Elegia, do livro As
Linhas da Mão, Ed. Difel/MEC, Rio, 1979:
Sofrer esta infância, esta morte, este início.
As cousas não param. Elas fluem, inquietas,
como velhos rios soluçantes. As flores
que apenas sonhamos em frutos se tornaram.
Sazonar eis o destino. Porém, não esquecer
a promessa de flores nas sementes dos frutos,
o rosto de teu pai na face do teu filho,
as ondas que voltam sobre as mesmas praias,
noivas desconhecidas a cada novo encontro.
As cousas fluem, não param. As folhas nascem,
as folhas tombam longe, em longínquos jardins.
Em silêncio, vives a infância de teus olhos
e, morto, és tão puro que te tornas menino.
São, obviamente, ótimos
exemplos de escritores vivos ou já
falecidos.
Entrentanto
é impossível desprezar as obras de José Coriolano de Sousa Lima (J.Coriolano),
Licurgo de Paiva, Luísa Amélia de Queiroz Brandão, Hermínio Castelo Branco e
Teodoro de Carvalho Castelo Branco, entre outros, que iniciaram o fazer
literário no Piauí e aqui permaneceram até a morte. Nem esquecer Francisco Gil
Castelo Branco, o criador de Ataliba, o
Vaqueiro (1878), romance elogiado pela crítica da época, o qual, de certa
forma, antecipa o romance regionalista de 1930, com sua temática centrada no
flagelo das secas e, de modo especial, da seca de 1877. Lúcia Miguel Pereira,
PRIMEIRAS MANIFESTAÇÕES
Os
exemplos dos parágrafos anteriores são recentes.
Nosso primeiro historiador literário, João Pinheiro, cita Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva e Leonardo
de Nossa Senhora das Dores Castelo Branco, dois autores piauienses, cada qual
com estética diferente, parecendo viverem épocas muito distanciadas. Na
verdade, viveram o tempo de formação em espaços diferentes, o primeiro em
Portugal e o segundo no Piauí. Devem ser
considerados referenciais históricos, pois que viveram e produziram isolados e
distantes do que viria a ser a nascente literatura brasileira no Reinado e na
Regência de d. Pedro II.
Ovídio Saraiva (1787-1852), cujo nome
completo é Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva, forma-se em Leis, na
Universidade de Coimbra, em 1810. Orador, músico e poeta, sua escola literária
era nitidamente portuguesa, demonstrando forte influência arcádica e acentos
bocagianos. Nasceu na Vila de São João
da Parnaíba, em 1787, e, com apenas 6 anos de idade, seus pais o arrancaram da
terra berço, como ele bem diz no «Soneto
LXII», de Poemas
Passaram lustros três, e mais três anos,
Que à estância dos mortais volvi
do nada;
Mas bem que ainda não seja
adiantada
Minha idade, sofrido hei já
mil danos.
Além dos torvos mares desumanos,
Recebi de meus pais a vida ervada,
E, contando anos seis, à Pátria amada
Arrancaram-me os pais, com vis enganos;
Desde então me arrepela a voz maldita,
Da desgraça letal o braço forte,
E sobre os tetos meus o Mocho grita.
E, se não me enganei, nos
Céus... ó sorte!
Esta sentença li com sangue
escrita:
“Em breve lutarás com a torva morte.”
Sua biografia foi
recentemente reconstruída, em dados fidedignos, pelo historiador Reginaldo
Miranda da Silva e publicada em artigo no Diário do Povo, Teresina, 23/08/2006:
“Sobre essse prematuro afastamento do lar
paterno, longe das brincadeiras entre amigos e dos afagos maternos, assim como
a sofrida travessia do Oceano, aos 18 anos vai recordar.(...). Vê-se nesse soneto um traço de revolta pelo
afastamento da Pátria Amada, ainda em tenra idade, o que marcou profundamente a
sua personalidade. Assim, parece injusta a crítica de que só tinha de piauiense
a origem do nascimento. A verdade é que, embora gostasse da sua terra, sua
formação se dera toda em Portugal”. (...) Também se encontrava no final do curso jurídico, quando Portugal foi
invadido pelas tropas francesas de Napoleão Bonaparte, obrigando fugirem para o
Brasil o Príncipe Regente, toda a família real e os demais graúdos da Corte.
(...) Os pais no distante Piauí se preocupavam com a sorte do filho que
persistia até a conclusão do curso.
(...) Formado em leis e casado, pleiteia passaporte para retornar ao
Piauí, com a jovem esposa. Retornava, assim, à terra natal depois de quase
vinte anos de ausente. Era, ao que tudo indica, o segundo bacharel piauiense”.
Ovídio Saraiva de
Carvalho estava trocando Portugal pelo Brasil, aqui chegando em 1812, Evidentemente
não pôde exercer o mandato de representante do Piauí às Cortes Constitucionais
de Lisboa a cujo cargo fora eleito (1811), sendo substituído pelo suplente, Pe.
Domingos da Conceição. No Brasil,
fez carreira de advogado e magistrado, nas províncias de Minas e Rio de Janeiro.
Na Europa, escreveu
sobre Bocage, seu ídolo, e é elogiado por Teófilo Braga. Quando foi publicado seu livro de Poemas, em Lisboa, 1808, não havia ainda literatura piauiense. Ele foi
o primeiro a publicar um livro de poemas. Depois escreveria o hino ao heróico 7 de
Abril de 1831, que foi, oficialmente, o primeiro Hino Nacional Brasileiro.
Segundo Adrião Neto, “o autor toma seu próprio rumo, assume a sua brasilidade e
se volta contra os portugueses”. O hino é longo e assim começa:
Os bronzes da tirania
Já no Brasil não rouquejam,
Os monstros que os escravizam
Já entre nós não vicejam.
Esteribilho: Da Pátria o grito
Eis se desata
Desde o Amazonas
Até o Prata.
Ferro e grilhões e forças
De antemão se preparavam,
Mil planos de proscrição
As mãos dos monstros
gizavam.
Estribilho:
Da Pátria, o grito...
Amanheceu finalmente
A liberdade no Brasil...
Ah! Não desça à sepultura
O Dia Sete de Abril.
Estribilho: Da Pátria, o grito...
Este dia portentoso
Dos dias seja o primeiro
Chamemos Rio de Abril
O que é Rio de Janeiro.
Estribilho: Da Pátria, o grito...
Arranquem-se aos nosso filhos
Nomes e idéias dos lusos
Monstros que sempre em traições
Nos envolveram, confusos.
Estribilho: Da Pátria, o grito
Leonardo de N. S. das Dores
Castelo Branco (1788-1873) – Homem afeito à ciência, era fértil sua
imaginação. Com relação a sua poesia, o historiador
João Pinheiro afirma: «Faltavam-lhe as
precípuas qualidades de poeta e prosador», no que é secundado por Clodoaldo
Freitas, nos seguintes termos: «A nota
dominante na poesia de Leonardo é a monotonia». Entretanto, Leonardo se
considera um poeta à frente do seu tempo, por isto não era compeendido por seus
contemporâneos. Quem sabe se ele não estava certo? Sua obra é muito grande e
não foi reeditada, a fim de os críticos modernos e da modernidade conheçam sua
poesia, dissequem o seu estilo.
Seu livro de estréia foi O Ímpio Confundido, Lisboa, 1837.
Outras obras: O Santíssimo Milagre, 1839; Carta (sobre certo tesouro descoberto
no rio Amazonas), 1841; Memória (acerca das abelhas na
Província do Piauí), 1843; Astronomia e
Mecânica, 1843; A Criação Universal,
1856; Investigação, 1858; e Verdades Singelas, obra que se perdeu
num incêndio, em sua casa,
Às
vezes no horizonte, ao longe, vemos
Surdindo,
pouco a pouco, desde o abismo,
Brancas
cabeças de enroladas nuvens,
Qual d’altas torres apinhados cumes!
Dum a outro momento cresce,
aumenta
De fatal
tempestade o anúncio horrível!
Eis,
senão quando, toma um corpo imenso
Já
negro e feio e em tenebroso manto
Envolve,
abafa, o aterrado mundo!...
Fervem
os raios, os trovões rebentam!
Rasgando
o ar, sussurram d’água gotas;
Solto
corre e sibila o irado vento
Quais
fúrias do averno s’escapassem,
E
consigo arrebata a quanto encontra,
Não
lh’ escapam nem mesmo as grandes árvores,
Que desarraiga ou despedaça todas!
Té os penhascos roda e abala os montes!
A natureza horrorizada geme,
Os
mares bramam e os rios mugem,
No
campo as flores suspirar parecem!
Tudo
aterrado está, tudo está triste;
Até
os brutos a seu modo espressam
A
mágoa, o sentimento qu’ os penetra!
Leonardo era homem
de pouco estudo. Pela vida que levou, pela vontade que teve fez muito. No longo
poema A Criação Universal, ele
perseguiu ingenuamente a poesia científica. Não havia leitores. Não havia
escolas no Piauí, nem bibliotecas, nem jornais para publicar seus trabalhos.
Diz João Pinheiro: “Os gravíssimos acontecimentos (Batalha do Jenipapo e todas as
lutas pela Independência do Piauí),
infelizmente, não tiveram no domínio das letras outra repercussão além de uma
poesia recitada em Oeiras por
Leonardo de Nossa Senhora das Dores Castelo Branco, quando se proclamou a
Constituição Portuguesa (1821)”. Assim, como poderiam repercutir os poemas leonardinos,
que não tratavam nem de longe de problemas políticos e sociais? João Pinheiro refere-se ao poema Monotonia.
Longo, como são quase todos os poemas de Leonardo, ironicamente, destoa
da monotonia dos demais, segundo Clodoaldo Freitas. Por isto, apenas a parte final vai transcrita:
Mas a razão, que é deusa poderosa,
Dos brasileiros o partido toma:
Produz nos lusos peitos o remorso,
Que o valor seu lhes amortece e abate,
Seus braços, desde então, o vigor perdem,
Languidez e torpor neles se espalham.
Vencer desejam, mas vencer não podem;
E da vitória a palma lhes escapa.
E afinal, de três séculos o domínio
Perdido viram em bem poucos meses.
Exalta o brasileiro, e entre mil vivas,
A liberdade e a independência aclama!
Ergue-se então o império e, qual gigante,
Firma seus pés do Amazonas ao Prata!
Independencia, liberdade amada,
Eu te saúdo nos transportes d’alma!
Praza aos céus que um sol puro te alumie
Por evos tantos tantos quanto dure o mundo.
Só
em 1832 aparece nosso primeiro jornal, O Piauiense, que deve ter circulado
até 1835, órgão onde não havia espaço para a literatura. Outros de curta duração e de pouca importância
cultural surgiriam, também para a publicação dos atos do governo, das notícias
administrativas e de uma ou outra crítica aos opositores do governo, um ou outro
soneto em estilo defasado, uma ou outra paródia de cunho social ou político, em
meio ao elitismo das abusivas citações latinas. Registra Celso Pinheiro Filho,
Mas
Leonardo de N. S. das Dores Castelo Branco é uma legenda cantada em prosa e
verso. «Uma figura emblemática de nossa
história, pois participou de todos os nossos movimentos libertários»,
registra o Prof. Paulo Nunes.
H. Dobal, em homenagem recente, leva-lhe o seu canto:
Pelo chão das carnaubeiras
alferes secretário
da Divisão Auxiliadora do Piauí
cavaleiro
da poderosa figura
vai avançando Leonardo.
Pela ambição da liberdade
vai avançando Leonardo.
Seus alforjes
são alforjes de alvíssaras.
E avança disposto
à sorte das armas.
Pela participação
que teve nas lutas da Independência foi preso e remetido para Lisboa. Com algum
tempo, volta para o Brasil e participa das lutas da Confederação do Equador,
sendo novamente preso. Sua vida foi bastante agitada. Experimentador, na
ciência, tentou, sem êxito, a invenção do moto contínuo.
As
manifestações literárias de Ovídio
Saraiva de Carvalho e Silva e Leonardo de Nossa Senhora das Dores Castelo
Branco - no sentido
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