I
T E O R I A
«Se
queres conversar comigo,
define tuas palavras.»
Voltaire
O
QUE É LITERATURA
A
palavra literatura vem do latim littera,
que significa exatamente letra. Assim, pelo sentido literal, não existe
literatura falada ou oral. O fenômeno a que se dá esse título é folclore,
lenda, cantiga etc.
Entretanto,
as línguas, no seu estado original, primitivo, são apenas faladas. Somente num
estágio mais avançado adquirem a forma escrita. Neste sentido, há duas
linguagens numa só língua: a falada e
a escrita.
Movidos
por impulsos e desejos jamais plenamente satisfeitos, os homens evoluíram em
sociedade, e, conseqüentemente, na comunicação de suas necessidades práticas e
na expressão de seus sentimentos, através de um sistema denominado língua. A
palavra (no discurso), originalmente portadora de sentimentos, se torna uma
orgânica associação de fatos comunicados com emoção. Nenhuma palavra é
essencialmente objetiva, nenhuma palavra apenas significa. Ela também expressa.
As
palavras como discurso ou fala evoluem com o homem e a sociedade. Dessa forma,
em tempos recuados, a literatura confundia-se com a gramática.
Com
o perpassar das gerações, a gramática, que era apenas a norma da língua, passou
a diferenciar-se nas criações linguísticas:
crônicas, poesias, contos, romances, enfim,
expressão literária, literatura.
O
processo de evolução humana, do senso comum às ciências e às técnicas, se dá
por desdobramento. As ciências foram-se separando umas das outras. Aritmética,
geometria, álgebra, todas vieram da matemática. Até bem pouco tempo a física e
a química não se distinguiam, o que também aconteceu com a astrologia e a astronomia.
Em quantos campos não se subdividem a medicina e a própria biologia, nos dias
atuais? São exemplos suficientes de que, em matéria de conhecimento científico,
parte-se do geral para o particular.
Todo
o saber da antiguidade se agrupava em forma de religião, filosofia e ciência.
Ainda mais no princípio, tudo o que havia era a religião - uma espécie de nostalgia
de Deus, que é o todo indivisível.
A
literatura, seguindo o destino das demais criações humanas, depois de separar-se
da gramática e dos estudos linguísticos adquire novo sentido.
Muito daquilo que foi literatura, hoje não é mais, passou para outro domínio.
Aliás, na antiguidade, tudo o que se considerava «literatura» era feito em
poesia, com ritmo e metrificação. Poesia, palavra mais abrangente, na sua
origem significava fazer. Por isto os tratados de medicina, astrologia,
história eram apresentados
A
distinção dos gêneros literários a partir da forma, tal como conhecemos hoje,
só aconteceu recentemente. Como no passado se subdividiu em muitas
espécies (gêneros lírico, épico, dramático,
etc.), agora tende a reagrupar-se em apenas dois grandes grupos bem distintos:
prosa e poesia.
Conquanto
necessária, nenhuma definição é completa, pois serve apenas como baliza ou
referência para discussão e estudo do problema.
Mas,
para ficar-se mais próximo da modernidade, sejam aqui considerados apenas os
conceitos mais recentes de literatura.
Ezra
Pound, por exemplo, ao conceituar de modo específico o ser da poesia, quer estendê-lo a toda a literatura e diz que
«literatura é linguagem carregada de
significado»,
acrescentando que
«grande literatura é simplesmente linguagem
carregada de significado até o máximo grau possível.»
No entanto, Octávio Paz, um
dos poetas modernos que muito tem valorizado a forma, é moderado em sua
dissertação:
“O poema é poesia e, além disso, outras coisas. E
esse além disso não é algo postiço ou acrescentado, mas um constituinte de seu
ser. Um poema puro seria aquele em que as palavras abandonassem seus significados
particulares e suas referências a isto ou aquilo, para significar apenas o ato
de poetizar – exigência que acarretaria seu desaparecimento, pois as palavras
não são outra coisa senão significados disto e daquilo, ou seja, de objetos
relativos e históricos. Um poema puro não poderia ser composto de palavras e
seria literalmente indizível."
Soares Amora, mais didático,
«A arte literária é, verdadeiramente, a ficção, a
criação de uma supra-realidade, com os dados profundos, singulares e pessoais
da intuição do artista.»
A
coerência e a justeza do Prof. Soares Amora fazem do seu conceito uma súmula de
precisão e clareza, desde que acrescido de um complemento final, contributo do
Prof. Dino del Piño:
«expressa através de signos verbais
plurissignificativos».
Não
obstante, seria bom levar-se em consideração as restrições feitas pelo Prof.
Massaud Moisés, da Universidade de São Paulo, ao conceito de Fidelino de
Figueiredo, embora que assessoriamente: primeiro, quanto à palavra intuição,
que não pertence somente ao campo artístico (veja-se a intuição do cientista);
segundo, com relação ao termo supra-realidade,
que sugere seja substituído por outro mais correto: para-realidade.
São
excelentes ponderações.
À
palavra intuição não cabe acrescentar mais nada, muito menos substituí-la. Já a
substituição de supra-realidade por para-realidade talvez seja a melhor contribuição de Massaud
Moisés e venha a aperfeiçoar o conceito de literatura.
Assim
compreendida, literatura é uma criação do espírito através do registro das
emoções e sentimentos pessoais do artista.
É arte escrita em prosa de ficção ou em poesia e destina-se a «emocionar, divertir e ensinar», como nos ensinou Horácio. Muito mais expressa do que comunica. E a
leitura silenciosa é a maneira essencial de seu recebimento e fruição.
O
teatro, enquanto lido, também é literatura. Entretanto, seu objetivo principal não
é a leitura mas a representação. Dessa forma, o teatro representado é outra
forma de arte, embora que aparentada com a literatura.
LITERATURA
PIAUIENSE
Uma
vez assentado o conceito de literatura, tão necessário ao sentido da pesquisa
histórica e ao estudo de autores e textos, parte-se para a definição do
que seja a literatura do Piauí ou literatura piauiense.
Piauiense
é um gentílico, refere-se à gente que nasce no Piauí, uma entidade territorial
e político-administrativa. Da mesma
forma, também ao que se cria e produz neste Estado, não importando que o autor ou
produtor seja originário de outras paragens do Brasil.
Autor
piauiense é quem faz literatura no Estado, seja aqui nascido ou não, mas também
aquele que, aqui nascido e criado, por uma contingência qualquer, emigrou - se continuar escrevendo sobre temas
ligados à terra, aos costumes e falares piauienses.
Assim,
literatura piauiense são a poesia, a ficção e a peça
teatral (enquanto não representada) feitas no Piauí ou não, por piauienses
natos ou não, glosando temas, modos de ser e costumes piauienses, seu folclore,
seu ser social, enfim, o registro de emoções em nosso «subdialeto» ou no
dialeto nordestino.
Dialeto aqui é usado no sentido geral,
abrangente, e não no puramente linguístico, há de se convir. Ou seja, tal como registra o Novo Dicionário Aurélio da Língua
Portuguesa: «S. m. 1. Variedade
regional ou social duma língua.»
Casos
bem típicos para explicação prática dos critérios aqui estabelecidos são os
escritores Assis Brasil e Mário Faustino. O primeiro pertence à literatura
brasileira de modo geral e à literatura piauiense, por ter publicado obras como
a Tetralogia Piauiense. O segundo,
Mário Faustino (1930-1962), é um grande poeta que apenas nasceu no Piauí,
produzindo sua obra no Rio de Janeiro. Pertence à literatura brasileira e como
tal deve ser estudado.
A
soma das literaturas regionais (piauiense, cearense, mineira, carioca, gaúcha,
etc.) vai ajudar no entendimento da formação da literatura brasileira,
ainda a ser escrita verdadeiramente. A
maioria dos historiadores da literatura brasileira fica no Rio e
Essa pequena assertiva de José Veríssimo deve ser complementada com a de
que a “memória coletiva” das regiões
e das províncias (estados) é, fatalmente, parte integrante do que chama de “memória coletiva da nação”.
Sem
pesquisas, inclusive de campo, não é possível conhecer o Brasil literário.
História não é estória, dá muito trabalho, demanda método e ciência. O Brasil é
um país imenso. Poetas, prosadores e artistas não têm nenhuma obrigação de
procurar os críticos e historiadores. O contrário é que seria correto.
Muitos
embarcam na onda do internacionalismo da mercadoria, sem atentarem para o fato
de que, embora o livro seja mercadoria, a literatura não o é. O livro é
veículo, a literatura é veículo e essência.
Mas
as regiões e as culturas locais resistem impressionantemente. Resistem também
os falares e as tradições. Por mais que se queira encobrir, há diferenças
marcantes entre o Piauí e Santa Catarina, Minas e Amazonas, Goiás e Paraíba,
Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro. Mesmo entre o Piauí, Ceará e Maranhão, tão
próximos, há largas diferenças de vida que são retratadas, recriadas, ou
intuídas, e transformadas na arte literária. Daí resultam problemas e textos
diferenciados, histórias e vocabulários identificáveis como não podendo ser
daquela nem dessa região ou desse povo, mas deste e somente deste. Que
diferença não há entre Carlos Nejar (Rio Grande do Sul) e João Cabral de Melo Neto
(Pernambuco)! E não se trata apenas de estilo individual. Não. O exemplo
poderia multiplicar-se, na prosa mais ainda que na poesia.
Diante
de acurado estudo teórico e prática literária, chega-se à convicção de que não
há uma entidade chamada literatura universal. A literatura, como a cultura, é
fenômeno impregnado do local, prende-se ao homem e à sua tradição, ao seu meio
vivencial. Não há uma literatura universal porquanto não há uma língua universal.
Universal é o conteúdo dos sentimentos e das emoções, a história. Tanto é assim
que as maneiras de externá-lo são muito pessoais, vêm do indivíduo no contexto
da sociedade. Há meios jurídicos de proteger essas maneiras, essas formas
pessoais de expressão. Conforme consta do Manual de Registro de Obras Intelectuais, editado pela Biblioteca
Nacional, não se registra o conteúdo. Este é universal, sim. Registra-se o
direito autoral da forma, como que aprovando a definição de literatura de Raul
Castagnino de que
«literatura
é a obra, na sua feição formal.»
Como
forma, a literatura é intraduzível, especialmente a poesia. Daí que os
italianos muito sabiamente criaram o trocadilho «traduttori, tradittori.»
Pelo
prisma da especificidade, a literatura é assim um fator de resistência e
afirmação individual que se soma ao coletivo. A literatura está no texto. Tudo
mais é história ou crítica, sociologia ou ciência.
A
história da literatura, das artes do mundo, como relato ou interpretação, deve
existir. Faz parte da História que, segundo Marx, é a única ciência que existe”.
Afrânio
Coutinho comenta:
«Há cinco fenômenos que, no Brasil, se destacam como
os mais autênticos e importantes, os mais característicos mesmo, do nosso povo:
a música popular, o carnaval, o futebol, a religiosidade popular e a literatura.»
E comparando os nossos escritores com
os latino-americanos, completa:
«Ligada à rugosa realidade, ela se manifesta de
maneira tão variada quanto a realidade nacional, social. A literatura do
Amazonas é diferente da nordestina e da gaúcha, e a do Centro-Oeste o é da
surgida nos centros urbanos do Rio e São Paulo, como a praieira do Recôncavo
possui suas características próprias. O regionalismo é uma força no Brasil
literário, sem que se prejudiquem as numerosas abordagens técnicas.»
A
literatura piauiense é uma dessas literaturas regionais, com autores e obras dignos
de estudo
LITERATURA E HISTÓRIA LITERÁRIA
A
obra literária, segundo os estruturalistas, se estabelece essencialmente pela
forma. Porém, de maneira alguma, seu conteúdo
deve ser desprezado.
Soares
Amora discorda da maioria dos críticos modernos, especialmente os
estruturalistas. Diz ele:
«O conteúdo é, em princípio, o que caracteriza a
obra literária, fruto que é de uma intuição profunda e original da realidade».
Se a obra literária se distingue da
não-literária por sua forma peculiar a cada tipo de criação do imaginário
individual, também é verdade que o conteúdo é que detona sua produção. É aquilo
que a obra expressa, completando:
«O conteúdo é uma realidade abstrata que existiu no
espírito do autor e passará a existir no dos leitores».
A forma, também denominada expressão
ou linguagem, ainda segundo Soares Amora, é a feição material, objetiva da arte,
e explica:
“A forma é o elemento concreto e, além disto,
estruturado (construído com palavras e frases)».
Assim,
os elementos essenciais da obra literária são a forma e o conteúdo, na mesma
igualdade.
Características:
a)
forma e conteúdo não podem ser tomados em separado,
salvo nas exposições didáticas:
b)
quando se altera um, o outro também é alterado,
independentemente da ordem.
Há outros elementos
de importância secundária, porém indispensáveis:
-
o autor;
-
o leitor;
-
o tempo;
- o meio-ambiente;
-
a história literária;
-
o público - entidade coletiva da qual fazem parte o crítico, o divulgador, a
escola, os sistemas de comunicação etc.
A
identificação de uma literatura com idioma próprio (francesa, inglesa,
portuguesa, espanhola), ou mesmo um dialeto (caso da literatura brasileira e
das hispano-americanas, por exemplo), não apresenta maiores problemas. As
dificuldades surgem quando se quer distinguir ou estudar as literaturas
piauiense, cearense, carioca ou mineira. Aqui se levam em conta os elementos da
estrutura linguística nos seus traços formais isolados (palavras e expressões)
e os de conteúdo (assuntos, paisagens, toponímia, costumes, lendas, geografia,
clima, sociedade, história, etc.), visto que não há o suporte do idioma ou do
dialeto diferenciador, no sentido especificamente linguístico.
Cabe,
enfim, fazer a distinção entre literatura e história literária, matérias que
muitas vezes aparecem interligadas e confundidas.
A literatura é aqui tomada como um conjunto de obras literárias de
diversos autores, produzidas em determinado tempo e espaço. Naturalmente, a
preferência é para aqueles autores e obras com características singulares, que
por isto conseguem impor-se ao gosto dos leitores e críticos.
Seu
estudo, infelizmente, ainda hoje é situado como história dos estilos de época,
escolas, gerações, etc. muito mais do que como captação, caracterização e
estudo dos estilos individuais.
A
história da literatura, tomada no seu sentido social, de conjunto de obras, não
possui independência: é apenas uma parte da História.
A história da literatura piauiense é parte da história
da literatura brasileira e ambas pertencem obviamente à História do Brasil.
Ressalvando-se sua especificidade de território, população, política administrativa,
bem como a forma de desenvolvimento das relações sociais, econômicas, raciais,
emocionais, linguísticas, etc. o fazer literário do Piauí é uma parte do fazer
literário do Brasil.
Tudo o que se pode acrescentar sobre
esse ponto é a comparação entre o que acontece no Brasil e na região, na
especificidade das letras. É a crítica
comparada, a literatura comparada. Já os
historiadores da literatura brasileira devem incorporar os valores que se
afirmaram nos Estados, desde que sejam de nível igual ou superior ao que se
produziu nos centros mais avançados, conforme preceituou José Veríssimo.
E
a História, de modo geral, o que é? Descrição e interpretação do
desenvolvimento do homem através dos fatos e documentos conservados no tempo e
no espaço. A moderna História é muito mais interpretação do fato e dos
testemunhos que a descrição e a prova deles. As obras literárias, tendo em
vista que partem de um real conhecido ou vivido pelo autor, prestam-se
admiravelmente ao estudo da História como documentos muitas vezes superiores aos
fatos oficiais e à documentação empírica.
Obra de ficção é
mimese. Neste sentido, também a poesia é ficção. E é, como esta, apropriação
intuitiva de uma realidade social, de forma simbólica e igualmente «transgressora», como bem acentuou o Prof. Francisco Venceslau
dos Santos, em outras palavras, corroborando idéias de autores de sua
predileção:
«A transgressão não anula nenhuma característica do
fenômeno artístico: a mimese, o imaginário, o irreal, o lúdico e a dimensão referencial.»
E disse mais:
«As obras são vivas enquanto falam de uma
maneira que é recusada aos objetos naturais e aos
sujeitos que as produzem.»
Só
quando existe um conjunto de obras com as características de arte esboçadas nas
definições clássicas da teoria literária é que se pensa uma literatura-história).
Do contrário, é inútil tentar qualquer estudo nesse sentido.
As
ligações da literatura com a economia, a sociologia, a antropologia, a
geografia e outras áreas do conhecimento que mais dizem respeito ao homem se
fazem pelo conteúdo.
Há, entretanto,
alguns elos que se estabelecem pela forma ou expressão, tais como os que
existem entre literatura e linguística, literatura e estilística, literatura e
estética.
A
pequena e desconhecida literatura do Piauí precisa ser historiada. Precisa de muito mais: de antologia dos
melhores textos, conhecimento dos autores,
estudo dos seus caracteres diferenciadores, crítica séria e discussão
sensata.
No
estabelecimento de textos escolares de uma literatura regional como a do Piauí devem
prevalecer os elementos internos e essenciais da obra. Mas também os externos
devem estar presentes. O nível dos textos será o melhor possível, aproximando-se
ao daqueles autores que alcançaram notoriedade nacional. Tais são Da Costa e Silva, Félix Pacheco, Martins Napoleão, Mário Faustino, Assis
Brasil, O.G. Rego de Carvalho, H. Dobal entre muitos outros.
MOMENTOS
DETERMINANTE
Na
literatura, o Piauí sofre as mesmas vicissitudes de sua história. A mais famosa
é a do isolamento; e, a partir desse problema, o desinteresse do poder central,
especialmente na área da instrução.
João
Pinheiro constata com horror que, às vésperas da nossa Independência,
«em 15 de janeiro de 1822 não havia na cidade (Oeiras), nem mesmo em
toda a Província, uma só aula de instrução pública, qualquer que fosse».
Outro
fato não menos importante é nossa colonização ter sido feita a partir do
interior. Daí ficar a Capitania, depois Província e Estado, como consequência,
sem comunicação marítima - a principal
forma de transporte naqueles recuados tempos. Só veio a melhorar com o advento
da aviação e das rodovias, ambas bem
recentes.
Apesar
de o Piauí ter chegado, a muito custo e tardiamente, ao oceano Atlântico, não conseguiu a construção
do tão sonhado porto.
Outro óbice,
determinado ainda por sua situação geográfica, diz respeito ao rio Parnaíba e
sua bacia. Na verdade, todo o vale do Parnaíba deveria pertencer ao Piauí e não
somente a vertente oriental. Assim, o rio que seria a unidade, separa e divide
o vale com o Maranhão.
Com
a Batalha do Jenipapo, decisiva não só para a nossa Independência como para o
Brasil, começa a surgir entre os piauienses uma consciência de comunidade
política. Até então o Piauí era uma
porção de fazendas de gado isoladas pelas distâncias, pela falta de comunicação
e pelo sistema de criação de gado extensivo. Vivia-se, aqui, praticamente a civilização do couro, onde roupa,
cadeira, mesa, porta, cama, sela, pote e outras vasilhas eram de couro de boi.
Wilson de Andrade Brandão,
Depois
de 1823, entretanto, o Piauí já não era apenas a Província com o seu grande
território, mato, rios, doenças, índios, brancos, negros escravos e os
mestiços, estes formando a maioria da população, tudo a ser dominado pela
civilização. Formara-se um povo, embora tal povo fosse analfabeto e arredio, e
dessa forma, não tivesse «nenhuma expressão».
Com
a transferência da capital de Oeiras para Teresina, deu o Piauí outro salto expressivo, econômica e politicamente.
Ganhou porto fluvial, a administração pública saiu do meio do sertão seco de
Oeiras, onde estava emparedada, sucumbida, e firmou-se como poder público sobre
o mandonismo dos fazendeiros. As ordens do centro político, com sua coerção
e seu trabalho orientador, impulsionaram
o desenvolvimento social e civilizatório. Oeiras seria o atraso, Teresina - o
progresso. O porto fluvial veio tirar a Província do seu extremo isolamento, o
maior de que se tem notícia na história do Brasil. Isolamento político, social
e cultural.
Foi
esse isolamento secular que o levou à conservação de muitas tradições.
O
cronista Luís Fernando Veríssimo, num escrito jornalístico recente, com o humor
que lhe é peculiar, depois de perguntar onde está o Brasil dos nossos dias, se
no Rio, Minas, Rio Grande do Sul ou
Acrescentem-se
a tudo isto as diferentes formas de desenvolvimento do Nordeste: a civilização
dos engenhos, tão próxima de nós, e «o Nordeste do gado e da seca», com vida
econômica, social, administrativa, política e artística tão separada. Assim se fez um novo ser na comunicação
falada e escrita.
A
literatura do Piauí não é invenção. O Piauí existe, possuiu autores e obras de
importância, no passado. No presente, escritores continuam trabalhando o seu imaginário,
criam e publicam. E há mais: leitores, escolas, universidades, jornais,
crítica. É pobre porque o Piauí é pobre.
Pré-história da literatura piauiauiense
– Como estudo da pré-história literária piauiense, João Pinheiro cita Ovídio Saraiva e Leonardo de N. S. das Dores
Castelo Branco - os primeiros nascidos no Piauí que fizeram literatura.
Há também a obra
jornalística de Lívio Castelo Branco e Silva, pois sua obra histórico-literária
não chegou a ser publicada - uma exposição documentada de sua participação na
Balaiada.
Quanto a Frederico
Leopoldo César Burlamáqui (cientista), Francisco de Sousa Martins (cinco vezes
reeleito deputado à Assembléia Geral pelo Piauí), Marcos Antônio de Macedo, Casimiro José de Morais
Sarmento (primeiro piauiense que se doutorou
Houve
também, um pouco mais à frente, David Moreira
Caldas (1836-1872), jornalista enorme, que lutou pela República e pelos
ideais de liberdade e progresso, e Miguel de Sousa Borges Leal Castelo Branco (1836-1887),
com seus apontamentos históricos e biográficos de piauienses, além da luta pela
melhoria da educação e de ter sido deputado provincial.
Todas
essas pessoas formavam o lastro cultural que tornaria possível o nascimento da
literatura no Piauí.
Primeiro período literário – O que é possível considerar um período
literário consistente virá depois da mudança da capital de Oeiras para
Teresina. O iniciador é J. Coriolano
num poema épico, O Touro Fusco,
publicado em 1859, e depois com sua poesia de sabor romântico e popular,
reunida em Impressões e Gemidos
(1870). Já então enunciava que os piauienses da época tinham um mínimo de
informação e condições para expressar suas emoções, sua vida, sua alma.
É um momento de grande
importância.
J. Coriolano é
seguido por Hermínio Castelo Branco,
cujos primeiros poemas são publicados no livro Ecos do Coração (1881), depois acrescido de outros poemas e
rebatizado como Lira Sertaneja
(1887), até hoje o livro de poemas mais reeditado da literatura do Piauí: 13 edições,
com a de 2010 (uma cópia de anterior, de
1972).
É o tempo também de Teodoro de Carvalho e Silva Castelo Branco,
com A Harpa do Caçador (1884).
Citem-se, da mesma
época, Luísa Amélia de Queiroz Brandão
e Licurgo José Henrique de Paiva,
dois outros bons poetas, mais caracteristicamente românticos que os anteriores.
Fazia-se,
no Brasil inteiro, o tipo de poema que fizeram José Manuel de Freitas,
J. Coriolano, Hermínio Castelo Branco, Teodoro de Carvalho e Silva Castelo
Branco e outros menos conhecidos. Foi por tal razão que Sílvio Romero incluiu
J. Coriolano (José Coriolano de Sousa Lima)
Essa linha popular
tem sido uma constante na escritura dos piauienses e chega até o presente pela voz de Hermes Vieira. Sobre este, escreveu A.
Tito Filho, em artigo do jornal O Dia, 23.7.1998:
“O Piauí possui realmente autênticos cultores de
poesia popular, a que brota da maravilhosa inspiração das cousas simples e das
tradições coletivas. Entre os vivos está o divino telúrico Hermes Vieira, que
J. Miguel de Matos caracterizou como a maior expressão da poesia folclórica da
terra piauiense, versátil e fecundo. Publicou-se agora Nordeste, poemas de Hermes, uma iniciativa de José Bruno dos Santos,
da Companhia Editora do Piauí. Este Nordeste
mostra o poeta em toda a grandeza dos versos que as criações do novo inspiram, abrangendo
aspectos da vida e da natureza, psicologia das gentes, bichos, episódios
amorosos e trágicos, alimentos, cerimônias, amores escondidos, mitos, lendas,
superstições, danças, músicas, facécias, anedotas, linguajar – e ninguém melhor
do que Hermes Vieira colocou esses processos de vida de homens e mulheres
humildes na construção de versos que constituem exemplo de arte verdadeira e
motivo de consagrada inteligência”.
Exemplos do passado
mais recente seriam João Ferry, Domingos Fonseca e o próprio Torquato
Neto, mais conhecido como autor de
letras de canções populares que como poeta.
O ser e o fazer
piauienses eram simples mas singulares. Diferença: traziam o cheiro da terra, os costumes do
povo e seu linguajar. As obras estão aí por prova, editadas e reeditadas
constantemente.
Embora
comece com a poesia, o Piauí literário
não era só poesia.
Apareceu-nos
um prosador do porte de Francisco Gil Castelo
Branco, com suas novelas e contos, entre os quais Ataliba, o Vaqueiro, 1878. Mas este, por ser diplomata, vivia fora
do Piauí.
Outros
momentos importantes para as nossas letras:
a)
criação da Academia Piauiense de Letras, em 30-12-1917;
b)
a fundação da
Faculdade de Direito do Piauí, em 1931, confirmando a tradição intelectual
piauiense pelos parâmetros da Escola de Recife;
c)
a fundação da Faculdade Católica de Filosofia, em
1958, que veio inserir nosso Estado na modernidade educacional instalada no
Brasil desde o começo dos anos 1930.
ESTILOS DE ÉPOCA
Nem sempre as nossas
gerações correspondem às escolas da literatura brasileira. O isolamento e a
pobreza do Piauí, desde o seu nascedouro, somados ao clima rigorosamente
quente, geraram costumes, falares e cultura dessemelhante de outras regiões,
inclusive as diferenças nas
escolhas literárias.
Sem muito
distanciamento, outras classificações e critérios que não os da literatura
brasileira, portanto, são aqui inventados, na tentativa de melhor enquadramento
e estudo.
Em vez de escolas, adotamos a classificação
Geração
romântico-popular
Romântico-popular: – À falta de denominação
melhor, este é o nome mais acertado para a primeira geração da literatura
piauiense, por ter adotado os temas e costumes do povo, sua sentimentalidade,
sua linguagem. Tem-se a impressão, à primeira vista, que corresponde à época
dos cancioneiros, na literatura portuguesa. Na realidade, interliga-se ao
período romântico da literatura brasileira em suas linhas gerais, porém guarda
grandes diferenças. É a geração da poesia popular e da prosa regionalista. Os autores dessa fase (J. Coriolano, Hermínio Castelo
Branco, Teodoro de Carvalho e Silva Castelo Branco, Licurgo de Paiva, Luísa
Amélia de Queiroz Brandão) tinham como leitura nossos poetas românticos:
Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Castro Alves, Fagundes Varela, Gonçalves
Dias, sem esquecer a influência dos populares da estirpe de Juvenal Galeno e
Catulo da Paixão Cearense.
Entre os prosadores,
sempre poucos, destacam-se Constantino da Costa Pereira, que publicou o romance
A Namoradeira, pelas páginas do “Almanaque
Literário Pernambucano”, 1882, e João Licínio de Miranda Barbosa
(1870-1899), que, em 1892, estudante em Recife, escreve Esmaltes,
livro que denominou de contos – bem
concebidos para sua época, embora hoje pareçam ingênuos. Eles iam pelas águas
de José de Alencar e Franklin Távora, quando não imitavam o
Visconde de Taunay e mais alguns da escola romântica.
Até
o final do século XIX, outros intelectuais surgem, seguindo mais ou menos
aquela linha do popular, cada um com sua peculiaridade. Eis alguns citados por
João Pinheiro: Antônio Gentil de Sousa Mendes (1842-1892), João José Pinheiro
(1844-1901), Joaquim Ribeiro Gonçalves (1855-1919), Phocion Caldas (1869-1904), Francisco de
Souza Martins - 2º desse nome (1856-1892), Lauro Pinheiro (1882-1919) e Manoel
Lopes Correia Lima (1858-1929). Este último, ajudado por Elias Firmino de Sousa
Martins (1869-1936), fundou O Diário – primeiro jornal
quotidiano do Piauí, em 14 de janeiro de 1893.
Outros
nomes se destacam mais ainda: Raimundo de Area Leão (1846-1904), Leônidas
Benício Mariz e Sá (1867-1902), Anísio Auto de Abreu (1868-1909) e Taumaturgo
Sotero Vaz.
Taumaturgo Vaz (1869-1921) nasceu em
Amarante, estudou as primeiras letras em sua terra, vai para Recife, forma-se
em Direito, emigra para o Amazonas onde foi promotor público, juiz municipal e
professor. Ocupa cargos de grande importância no Estado (Diretor do Teatro
Amazonas, Procurador da República, Secretário de Estado), publica em quase
todos os jornais, faz hinos, canções, cançonetas para danças populares,
deixando muita poesia esparsa, inclusive com o pseudônimo Warenka.
Através
de leve ironia, em versos expressivos, melodiosos, espontâneos, corretos e
firmes, há o clamor das injustiças e o rosto dos humildes:
Não conheces da vida o negro drama...
Não conheces jamais a dor vencida...
Viver rindo?! cuidado que na lida
Não te queime do amor a
ardente chama.
Nunca sintas
o fel que nos derrama
Dentro do peito essa ilusão
perdida...
Ai! nunca saibas como dói a
vida
Quando a gente é distante de
quem ama.
Nunca saibas que o mundo é
feito apenas
De amarguras cruéis, de
duras penas
E de espinhos que a gente
vão ferindo...
Sim! que a vida te corra sempre mansa!
Que tu sejas assim, sempre
criança
E passes neste mundo sempre
rindo!...
Publica em 1900, em
Manaus, o livro Cantigas do Brasil. “Na sua
poesia, domina mais a sensibilidade do que a imaginação. O seu lirismo doce, de
enlevante suavidade, desabrocha evocativo, numa sinceridade de inspiração cujo
frêmito angustiado bastaria, revivendo paisagens do passado e fixando alegorias
do presente, para delinear os estados quase mórbidos dessa sensibilidade”,
diz o crítico Péricles de Morais.
Deixou grande quantidade de poesias esparsas, populares,
folclócricas, segundo João Pinheiro,
quando transcreve Minha Madrinha como
exemplo.
Geração acadêmica
A geração da Academia – É exemplificada por Lucídio
Freitas e Da Costa e Silva, na poesia; na prosa, os nomes mais evidentes são
Abdias Neves, Clodoaldo Freitas e Higino Cunha. Teve uma safra numerosa de
poetas, entre os fundadores contam-se
Antônio Chaves, Fenelon Castelo Branco, Benedito Aurélio de Freitas, Arimathéa
Tito.
Como
o nome indica, a primeira geração
acadêmica já vem do fim do sec. XVIII e vai pelo primeiro quartel do séc. XIX. Foi a fundadora
da Academia Piauiense de Letras, em 1917, movimento renovador para a época como
bem acentuou a crítica.
Geração do Cenáculo
A geração do Cenáculo: – Nessa geração devem ser incluidos
os poetas Oliveira Neto e Luiz Lopes
Sobrinho. Referidos vates faziam versos
com as mesmas características dos acadêmicos
até quatro décadas depois da fundação da Academia Piauiense de Letras. No entanto, Oliveira
Neto, por exemplo, sequer pertenceu à Academia.
Como Luiz Lopes
Sobrinho e Júlio Martins Vieira, alguns outros poetas e prosadores podem ser
classificados nessa geração pós- acadêmica, mesmo ultrapassando os limites do tempo
comum que é cedido a uma geração. Uma
boa parte dos poetas dessa geração fundaram o Cenáculo Piauiense de Letras, em
7 de setembro de 1927. Citem-se entre os principais cabeças do movimento,
Osires Neves de Melo, Antônio Neves de Melo – seu idealizador, Eudóxio da Costa
Neves, Veras de Holanda e Bugyja Britto. Todos eram muito jovens e idealistas,
trabalhavam ou escreviam na imprensa.
Geração
quase perdida
A geração quase perdida: – Existiu também uma geração quase perdida, até bem pouco
confundida com a geração meridiano,
para a qual muitos migraram e se tornaram escritores modernos. Aquela ficou sendo quase exclusivamente de
professores da Faculdade de Direito e do Liceu Piauiense. Os escritores da época eram poucos e inexpressivos,
especialmente os que viviam na terra.
Exemplos há de grandes professores de latim, de gramática da língua
portuguesa, mas não de autores de obras gramaticais ou de obras literárias.
Geração de intelectuais brilhantes como Clemente Fortes, Cromwell Barbosa de
Carvalho, Vidal de Freitas, Simplício de Sousa Mendes, porém de quase nenhum
literato. Para eles, os parâmetros
nacionais eram Rui Barbosa e Coelho Neto, sem falar no quase piauiense Clóvis
Beviláqua, autor do Código Civil Brasileiro.
Modernismo
Finalmentte,
chega-se ao Modernismo, onde todas as
tendências se confundem e se transformam, de maneira que se tornou um caldo de
cultura, distanciando-se cada autor com o seu manifesto, o seu jornal o seu
discurso. O modernismo terá sido uma escola, tal como se pensa sobre o
Romantismo e o Realismo?
No Piauí, o Moderno chegou com atraso de duas
décadas, pouquíssimos autores que mostravam em suas obras um leve sopro do que
foi a Semana de 22,
Modernidade
As gerações seguintes – meridiano, clip e marginal (mimeógrafo) – podem
ser consideradas como movimentos ou gerações,
dependendo da perspectiva de quem venha a estudá-las exaustivamente. É que quase tudo ainda está em curso, através
de alguns dos seus integrantes vivos e atuantes, embora algumas linhas já se
apresentem bem visíveis.
Segundo o crítico Wilson Martins, tudo o que
se faz em literatura, depois do modernismo
como escola, para existir deve ser considerado modernidade. Chegou, então, a época, em que não há mais esolas,
há movimentos, gerações, e todas fazem
parte da modernidade.
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