T E O R I A

 

 I

 

                               T E O R I A                                     

                                         «Se queres conversar comigo,

                                                define tuas palavras.»

                                                                             Voltaire

 

 

 

 

O QUE É LITERATURA

                             

 

 

          A palavra literatura vem do latim littera, que significa exatamente letra. Assim, pelo sentido literal, não existe literatura falada ou oral. O fenômeno a que se dá esse título é folclore, lenda, cantiga  etc.

          Entretanto, as línguas, no seu estado original, primitivo, são apenas faladas. Somente num estágio mais avançado adquirem a forma escrita. Neste sentido, há duas linguagens numa só língua: a falada e a escrita.

          Movidos por impulsos e desejos jamais plenamente satisfeitos, os homens evoluíram em sociedade, e, conseqüentemente, na comunicação de suas necessidades práticas e na expressão de seus sentimentos, através de um sistema denominado língua. A palavra (no discurso), originalmente portadora de sentimentos, se torna uma orgânica associação de fatos comunicados com emoção. Nenhuma palavra é essencialmente objetiva, nenhuma palavra apenas significa. Ela também expressa.

          As palavras como discurso ou fala evoluem com o homem e a sociedade. Dessa forma, em tempos recuados, a literatura confundia-se com a gramática.

          Com o perpassar das gerações, a gramática, que era apenas a norma da língua, passou a diferenciar-se  nas criações linguísticas: crônicas, poesias, contos, romances, enfim,  expressão literária, literatura.

          O processo de evolução humana, do senso comum às ciências e às técnicas, se dá por desdobramento. As ciências foram-se separando umas das outras. Aritmética, geometria, álgebra, todas vieram da matemática. Até bem pouco tempo a física e a química não se distinguiam, o que também aconteceu com a astrologia e a astronomia. Em quantos campos não se subdividem a medicina e a própria biologia, nos dias atuais? São exemplos suficientes de que, em matéria de conhecimento científico, parte-se  do geral para o particular.

          Todo o saber da antiguidade se agrupava em forma de religião, filosofia e ciência. Ainda mais no princípio, tudo o que havia era a religião - uma espécie de nostalgia de Deus, que é o todo indivisível.

          A literatura, seguindo o destino das demais criações humanas, depois de separar-se da gramática  e  dos estudos linguísticos adquire novo sentido. Muito daquilo que foi literatura, hoje não é mais, passou para outro domínio. Aliás, na antiguidade, tudo o que se considerava «literatura» era feito em poesia, com ritmo e metrificação. Poesia, palavra mais abrangente, na sua origem significava fazer. Por isto os tratados de medicina, astrologia, história eram apresentados em versos. O teatro clássico, a epopéia (que foi a ficção da antiguidade, misto de história e fábula), tudo era poesia. A Bíblia, sabedoria do povo judeu, que nos legou imensa cultura, talvez tenha sido escrita em poesia, haja vista sua divisão em versículos.

          A distinção dos gêneros literários a partir da forma, tal como conhecemos hoje, só aconteceu recentemente. Como no passado se subdividiu em muitas espécies  (gêneros lírico, épico, dramático, etc.), agora tende a reagrupar-se em apenas dois grandes grupos bem distintos: prosa e poesia.

          Conquanto necessária, nenhuma definição é completa, pois serve apenas como baliza ou referência para discussão e estudo do problema.

          Mas, para ficar-se mais próximo da modernidade, sejam aqui considerados apenas os conceitos mais recentes de literatura.

          Ezra Pound, por exemplo, ao conceituar de modo específico o ser da poesia, quer  estendê-lo a toda a literatura e diz que

«literatura é linguagem carregada de significado»,

acrescentando que

«grande literatura é simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo grau possível.» 

          No entanto, Octávio Paz, um dos poetas modernos que muito tem valorizado a forma, é moderado em sua dissertação:

“O poema é poesia e, além disso, outras coisas. E esse além disso não é algo postiço ou acrescentado, mas um constituinte de seu ser. Um poema puro seria aquele em que as palavras abandonassem seus significados particulares e suas referências a isto ou aquilo, para significar apenas o ato de poetizar – exigência que acarretaria seu desaparecimento, pois as palavras não são outra coisa senão significados disto e daquilo, ou seja, de objetos relativos e históricos. Um poema puro não poderia ser composto de palavras e seria literalmente indizível."

          Soares Amora, mais didático, em sua Teoria da Literatura, 1971, 9ª edição,  adota o conceito de Fidelino de Figueiredo, que, no todo ou em parte, é hoje esposado pela maioria dos teóricos e mestres:

 

«A arte literária é, verdadeiramente, a ficção, a criação de uma supra-realidade, com os dados profundos, singulares e pessoais da intuição do artista.»

 

          A coerência e a justeza do Prof. Soares Amora fazem do seu conceito uma súmula de precisão e clareza, desde que acrescido de um complemento final, contributo do Prof. Dino del Piño:

 

 «expressa através de signos verbais plurissignificativos».

 

          Não obstante, seria bom levar-se em consideração as restrições feitas pelo Prof. Massaud Moisés, da Universidade de São Paulo, ao conceito de Fidelino de Figueiredo, embora que assessoriamente: primeiro, quanto à palavra intuição, que não pertence somente ao campo artístico (veja-se a intuição do cientista); segundo, com relação ao termo supra-realidade, que sugere seja substituído por outro mais correto: para-realidade.

          São excelentes ponderações. 

          À palavra intuição não cabe acrescentar mais nada, muito menos substituí-la. Já a substituição de supra-realidade por para-realidade  talvez seja a melhor contribuição de Massaud Moisés e venha a aperfeiçoar o conceito de literatura.

          Assim compreendida, literatura é uma criação do espírito através do registro das emoções e  sentimentos pessoais do artista. É arte escrita em prosa de ficção ou em poesia e destina-se a «emocionar, divertir e ensinar», como nos ensinou Horácio.  Muito mais expressa do que comunica. E a leitura silenciosa é a maneira essencial de seu recebimento e fruição.

          O teatro, enquanto lido, também é literatura. Entretanto, seu objetivo principal não é a leitura mas a representação. Dessa forma, o teatro representado é outra forma de arte, embora que aparentada com a literatura.

 

                              LITERATURA PIAUIENSE

 

          Uma vez assentado o conceito de literatura, tão necessário ao sentido  da pesquisa  histórica e ao estudo de autores e textos, parte-se para a definição do que seja a literatura do Piauí ou literatura piauiense.

          Piauiense é um gentílico, refere-se à gente que nasce no Piauí, uma entidade territorial e político-administrativa.   Da mesma forma, também ao que se cria e produz neste Estado, não importando que o autor ou produtor seja originário de outras paragens do Brasil.

          Autor piauiense é quem faz literatura no Estado, seja aqui nascido ou não, mas também aquele que, aqui nascido e criado, por uma contingência qualquer,  emigrou - se continuar escrevendo sobre temas ligados à terra, aos costumes e falares piauienses.

Assim,

 

literatura piauiense são a poesia, a ficção e a peça teatral (enquanto não representada) feitas no Piauí ou não, por piauienses natos ou não, glosando temas, modos de ser e costumes piauienses, seu folclore, seu ser social, enfim, o registro de emoções em nosso «subdialeto» ou no dialeto nordestino.

 

          Dialeto aqui é usado no sentido geral, abrangente, e não no puramente linguístico, há de se convir.  Ou seja, tal como registra o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa: «S. m. 1. Variedade regional ou social duma língua.»

          Casos bem típicos para explicação prática dos critérios aqui estabelecidos são os escritores Assis Brasil e Mário Faustino. O primeiro pertence à literatura brasileira de modo geral e à literatura piauiense, por ter publicado obras como a Tetralogia Piauiense. O segundo, Mário Faustino (1930-1962), é um grande poeta que apenas nasceu no Piauí, produzindo sua obra no Rio de Janeiro. Pertence à literatura brasileira e como tal deve ser estudado.

          A soma das literaturas regionais (piauiense, cearense, mineira, carioca, gaúcha, etc.) vai ajudar no entendimento da formação da literatura brasileira, ainda  a ser escrita verdadeiramente. A maioria dos historiadores da literatura brasileira fica no Rio e em São Paulo, à espera do que veiculam a televisão, os jornais e revistas, nas suas resenhas e  reportagens. O que vai pelo norte e nordeste não sai nas grandes capitais detentoras da mídia.  José Veríssimo, mesmo sendo o mais severamente formal dos nosso historiadores literários, entreviu a necessidade de catalogação e estudo das literaturas regionais, quando afirmava que a história da literatura brasileira, no seu conceito, é «a história do que da nossa atividade literária sobrevive na nossa memória coletiva de nação».

          Essa pequena assertiva de José Veríssimo deve ser complementada com a de que a “memória coletiva” das regiões e das províncias (estados) é, fatalmente, parte integrante do que chama de “memória coletiva da nação”.

          Sem pesquisas, inclusive de campo, não é possível conhecer o Brasil literário. História não é estória, dá muito trabalho, demanda método e ciência. O Brasil é um país imenso. Poetas, prosadores e artistas não têm nenhuma obrigação de procurar os críticos e historiadores. O contrário é que seria correto.

          Muitos embarcam na onda do internacionalismo da mercadoria, sem atentarem para o fato de que, embora o livro seja mercadoria, a literatura não o é. O livro é veículo, a literatura é veículo e essência.

          Mas as regiões e as culturas locais resistem impressionantemente. Resistem também os falares e as tradições. Por mais que se queira encobrir, há diferenças marcantes entre o Piauí e Santa Catarina, Minas e Amazonas, Goiás e Paraíba, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro. Mesmo entre o Piauí, Ceará e Maranhão, tão próximos, há largas diferenças de vida que são retratadas, recriadas, ou intuídas, e transformadas na arte literária. Daí resultam problemas e textos diferenciados, histórias e vocabulários identificáveis como não podendo ser daquela nem dessa região ou desse povo, mas deste e somente deste. Que diferença não há entre Carlos Nejar (Rio Grande do Sul) e João Cabral de Melo Neto (Pernambuco)! E não se trata apenas de estilo individual. Não. O exemplo poderia multiplicar-se, na prosa mais ainda que na poesia.

          Diante de acurado estudo teórico e prática literária, chega-se à convicção de que não há uma entidade chamada literatura universal. A literatura, como a cultura, é fenômeno impregnado do local, prende-se ao homem e à sua tradição, ao seu meio vivencial. Não há uma literatura universal porquanto não há uma língua universal. Universal é o conteúdo dos sentimentos e das emoções, a história. Tanto é assim que as maneiras de externá-lo são muito pessoais, vêm do indivíduo no contexto da sociedade. Há meios jurídicos de proteger essas maneiras, essas formas pessoais de expressão. Conforme consta do Manual de Registro de Obras Intelectuais, editado pela Biblioteca Nacional, não se registra o conteúdo. Este é universal, sim. Registra-se o direito autoral da forma, como que aprovando a definição de literatura de Raul Castagnino de que

           «literatura é a obra, na sua feição formal.» 

          Como forma, a literatura é intraduzível, especialmente a poesia. Daí que os italianos muito sabiamente criaram o trocadilho «traduttori,  tradittori.»

          Pelo prisma da especificidade, a literatura é assim um fator de resistência e afirmação individual que se soma ao coletivo. A literatura está no texto. Tudo mais é história ou crítica, sociologia ou ciência.

          A história da literatura, das artes do mundo, como relato ou interpretação, deve existir. Faz parte da História que, segundo Marx, é a única ciência que existe”.

          Afrânio Coutinho comenta:

 

«Há cinco fenômenos que, no Brasil, se destacam como os mais autênticos e importantes, os mais característicos mesmo, do nosso povo: a música popular, o carnaval, o futebol, a religiosidade popular e a literatura.»

 

          E comparando os nossos escritores com os latino-americanos, completa:

         

«Ligada à rugosa realidade, ela se manifesta de maneira tão variada quanto a realidade nacional, social. A literatura do Amazonas é diferente da nordestina e da gaúcha, e a do Centro-Oeste o é da surgida nos centros urbanos do Rio e São Paulo, como a praieira do Recôncavo possui suas características próprias. O regionalismo é uma força no Brasil literário, sem que se prejudiquem as numerosas abordagens técnicas.»

 

          A literatura piauiense é uma dessas literaturas regionais, com autores e obras dignos de estudo

 

                             

 

   LITERATURA E HISTÓRIA LITERÁRIA

 

 

          A obra literária, segundo os estruturalistas, se estabelece essencialmente pela forma. Porém, de maneira alguma, seu  conteúdo deve ser desprezado.

          Soares Amora discorda da maioria dos críticos modernos, especialmente os estruturalistas. Diz ele:

         

«O conteúdo é, em princípio, o que caracteriza a obra literária, fruto que é de uma intuição profunda e original da realidade».

 

          Se a obra literária se distingue da não-literária por sua forma peculiar a cada tipo de criação do imaginário individual, também é verdade que o conteúdo é que detona sua produção. É aquilo que a obra expressa, completando:

 

«O conteúdo é uma realidade abstrata que existiu no espírito do autor e passará a existir no dos leitores».

 

          A forma, também denominada expressão ou linguagem, ainda segundo Soares Amora, é a feição material, objetiva da arte, e explica: 

 

  “A forma é o elemento concreto e, além disto, estruturado (construído com palavras e frases)».

 

          Assim, os elementos essenciais da obra literária são a forma e o conteúdo, na mesma igualdade.

Características:

a)    forma e conteúdo não podem ser tomados em separado, salvo nas exposições didáticas:

b)    quando se altera um, o outro também é alterado, independentemente da ordem.                

Há outros elementos de importância secundária, porém indispensáveis:

                    - o autor;

                    - o leitor;

                    - o tempo;

                    - o meio-ambiente;

                    - a história literária;        

                    - o público - entidade coletiva da qual fazem parte o crítico, o divulgador, a escola, os sistemas de comunicação  etc.

          A identificação de uma literatura com idioma próprio (francesa, inglesa, portuguesa, espanhola), ou mesmo um dialeto (caso da literatura brasileira e das hispano-americanas, por exemplo), não apresenta maiores problemas. As dificuldades surgem quando se quer distinguir ou estudar as literaturas piauiense, cearense, carioca ou mineira. Aqui se levam em conta os elementos da estrutura linguística nos seus traços formais isolados (palavras e expressões) e os de conteúdo (assuntos, paisagens, toponímia, costumes, lendas, geografia, clima, sociedade, história, etc.), visto que não há o suporte do idioma ou do dialeto diferenciador, no sentido especificamente linguístico.

          Cabe, enfim, fazer a distinção entre literatura e história literária, matérias que muitas vezes aparecem interligadas e confundidas.

 

A literatura é aqui tomada  como um conjunto de obras literárias de diversos autores, produzidas em determinado tempo e espaço. Naturalmente, a preferência é para aqueles autores e obras com características singulares, que por isto conseguem impor-se ao gosto dos leitores e críticos.  

 

          Seu estudo, infelizmente, ainda hoje é situado como história dos estilos de época, escolas, gerações, etc. muito mais do que como captação, caracterização e estudo dos estilos individuais.

          A história da literatura, tomada no seu sentido social, de conjunto de obras, não possui independência: é apenas uma parte da História.

 

A história da literatura piauiense é parte da história da literatura brasileira e ambas pertencem obviamente à História do Brasil. Ressalvando-se sua especificidade de território, população, política administrativa, bem como a forma de desenvolvimento das relações sociais, econômicas, raciais, emocionais, linguísticas, etc. o fazer literário do Piauí é uma parte do fazer literário do Brasil.

          Tudo o que se pode acrescentar sobre esse ponto é a comparação entre o que acontece no Brasil e na região, na especificidade das letras. É a  crítica comparada, a literatura comparada.  Já os historiadores da literatura brasileira devem incorporar os valores que se afirmaram nos Estados, desde que sejam de nível igual ou superior ao que se produziu nos centros mais avançados, conforme preceituou José Veríssimo.              

          E a História, de modo geral, o que é? Descrição e interpretação do desenvolvimento do homem através dos fatos e documentos conservados no tempo e no espaço. A moderna História é muito mais interpretação do fato e dos testemunhos que a descrição e a prova deles. As obras literárias, tendo em vista que partem de um real conhecido ou vivido pelo autor, prestam-se admiravelmente ao estudo da História como documentos muitas vezes superiores aos fatos oficiais e à documentação empírica.

Obra de ficção é mimese. Neste sentido, também a poesia é ficção. E é, como esta, apropriação intuitiva de uma realidade social, de forma simbólica e igualmente «transgressora»,  como bem acentuou o Prof. Francisco Venceslau dos Santos, em outras palavras, corroborando idéias de autores de sua predileção:

 

«A transgressão não anula nenhuma característica do fenômeno artístico: a mimese, o imaginário, o irreal, o lúdico e a dimensão referencial.»

 

          E disse mais:

 

«As obras são vivas enquanto falam de uma maneira  que  é recusada aos objetos naturais e aos sujeitos que as produzem.»

 

          Só quando existe um conjunto de obras com as características de arte esboçadas nas definições clássicas da teoria literária é que se pensa uma literatura-história). Do contrário, é inútil tentar qualquer estudo nesse sentido.

          As ligações da literatura com a economia, a sociologia, a antropologia, a geografia e outras áreas do conhecimento que mais dizem respeito ao homem se fazem pelo conteúdo. 

Há, entretanto, alguns elos que se estabelecem pela forma ou expressão, tais como os que existem entre literatura e linguística, literatura e estilística, literatura e estética.

          A pequena e desconhecida literatura do Piauí precisa ser historiada.  Precisa de muito mais: de antologia dos melhores textos, conhecimento dos autores,  estudo dos seus caracteres diferenciadores, crítica séria e discussão sensata.

          No estabelecimento de textos escolares de uma literatura regional como a do Piauí devem prevalecer os elementos internos e essenciais da obra. Mas também os externos devem estar presentes. O nível dos textos será o melhor possível, aproximando-se ao daqueles autores que alcançaram notoriedade nacional. Tais são Da Costa e Silva, Félix Pacheco,  Martins Napoleão, Mário Faustino, Assis Brasil, O.G. Rego de Carvalho, H. Dobal entre muitos outros.

 

 

                         MOMENTOS DETERMINANTE       

 

 

          Na literatura, o Piauí sofre as mesmas vicissitudes de sua história. A mais famosa é a do isolamento; e, a partir desse problema, o desinteresse do poder central, especialmente na área da instrução. 

          João Pinheiro constata com horror que, às vésperas da nossa Independência,

 

«em 15 de janeiro de 1822 não havia na cidade (Oeiras), nem mesmo em toda a Província, uma só aula de instrução pública, qualquer que fosse».

 

          Outro fato não menos importante é nossa colonização ter sido feita a partir do interior. Daí ficar a Capitania, depois Província e Estado, como consequência, sem comunicação marítima - a principal  forma de transporte naqueles recuados tempos. Só veio a melhorar com o advento da aviação e das  rodovias, ambas bem recentes.

          Apesar de o Piauí ter chegado, a muito custo e tardiamente,  ao oceano Atlântico, não conseguiu a construção do tão sonhado porto.

Outro óbice, determinado ainda por sua situação geográfica, diz respeito ao rio Parnaíba e sua bacia. Na verdade, todo o vale do Parnaíba deveria pertencer ao Piauí e não somente a vertente oriental. Assim, o rio que seria a unidade, separa e divide o vale com o Maranhão.

          Com a Batalha do Jenipapo, decisiva não só para a nossa Independência como para o Brasil, começa a surgir entre os piauienses uma consciência de comunidade política.  Até então o Piauí era uma porção de fazendas de gado isoladas pelas distâncias, pela falta de comunicação e pelo sistema de criação de gado extensivo. Vivia-se, aqui, praticamente a civilização do couro, onde roupa, cadeira, mesa, porta, cama, sela, pote e outras vasilhas eram de couro de boi. Wilson de Andrade Brandão, em sua História da Independência do Piauí, informa sucintamente: «Não se dava notícia dos piauienses. Falava-se muito no gado, nas fazendas imensas, incontáveis. Mas o povo não tinha nenhuma expressão.» 

          Depois de 1823, entretanto, o Piauí já não era apenas a Província com o seu grande território, mato, rios, doenças, índios, brancos, negros escravos e os mestiços, estes formando a maioria da população, tudo a ser dominado pela civilização. Formara-se um povo, embora tal povo fosse analfabeto e arredio, e dessa forma,  não tivesse  «nenhuma expressão».

          Com a transferência da capital de Oeiras para Teresina, deu o Piauí outro  salto expressivo, econômica e politicamente. Ganhou porto fluvial, a administração pública saiu do meio do sertão seco de Oeiras, onde estava emparedada, sucumbida, e firmou-se como poder público sobre o mandonismo dos fazendeiros. As ordens do centro político, com sua coerção e  seu trabalho orientador, impulsionaram o desenvolvimento social e civilizatório. Oeiras seria o atraso, Teresina - o progresso. O porto fluvial veio tirar a Província do seu extremo isolamento, o maior de que se tem notícia na história do Brasil. Isolamento político, social e cultural.

          Foi esse isolamento  secular  que o levou à conservação  de muitas tradições.

          O cronista Luís Fernando Veríssimo, num escrito jornalístico recente, com o humor que lhe é peculiar, depois de perguntar onde está o Brasil dos nossos dias, se no Rio, Minas, Rio Grande do Sul ou em São Paulo, chega à conclusão de que o verdadeiro Brasil estaria no Piauí.

          Acrescentem-se a tudo isto as diferentes formas de desenvolvimento do Nordeste: a civilização dos engenhos, tão próxima de nós,  e «o Nordeste do gado e da seca», com vida econômica, social, administrativa, política e artística tão separada.  Assim se fez um novo ser na comunicação falada e escrita.

          A literatura do Piauí não é invenção. O Piauí existe, possuiu autores e obras de importância, no passado. No presente, escritores continuam trabalhando o seu imaginário, criam e publicam. E há mais: leitores, escolas, universidades, jornais, crítica.  É pobre porque o Piauí é pobre.

          Pré-história da literatura piauiauiense – Como estudo da pré-história literária piauiense, João Pinheiro cita Ovídio Saraiva e Leonardo de N. S. das  Dores Castelo Branco - os primeiros nascidos no Piauí que fizeram literatura.

Há também a obra jornalística de Lívio Castelo Branco e Silva, pois sua obra histórico-literária não chegou a ser publicada - uma exposição documentada de sua participação na Balaiada.

Quanto a Frederico Leopoldo César Burlamáqui (cientista), Francisco de Sousa Martins (cinco vezes reeleito deputado à Assembléia Geral pelo Piauí),  Marcos Antônio de Macedo, Casimiro José de Morais Sarmento (primeiro piauiense que se doutorou em Academia Jurídica Nacional), Manoel Pereira da Silva, Antônio Borges Leal Castelo Branco,  (deputado à Assembléia Provincial nas 5ª e 6ª legislaturas, que correponderam aos anos de 1844 a 1847)  e  Francisco José Furtado (presidente de Província, senador e deputado) - citados por João Pinheiro - eram essencialmente parlamentares, políticos, administradores. Não tinham consciência da arte das letras. Esses intelectuais da primeira metade do século passado viviam no Rio, em Recife, ou na fazenda (fosse em Oeiras, Campo Maior ou Parnaíba).

          Houve também, um pouco mais à frente, David Moreira Caldas (1836-1872), jornalista enorme, que lutou pela República e pelos ideais de liberdade e progresso, e Miguel de Sousa Borges Leal Castelo Branco (1836-1887), com seus apontamentos históricos e biográficos de piauienses, além da luta pela melhoria da educação e de ter sido deputado provincial.

          Todas essas pessoas formavam o lastro cultural que tornaria possível o nascimento da literatura no Piauí.

          Primeiro período literário O que é possível considerar um período literário consistente virá depois da mudança da capital de Oeiras para Teresina. O iniciador é J. Coriolano num poema épico, O Touro Fusco, publicado em 1859, e depois com sua poesia de sabor romântico e popular, reunida em Impressões e Gemidos (1870). Já então enunciava que os piauienses da época tinham um mínimo de informação e condições para expressar suas emoções, sua vida, sua alma.

É um momento de grande importância.

J. Coriolano é seguido por Hermínio Castelo Branco, cujos primeiros poemas são publicados no livro Ecos do Coração (1881), depois acrescido de outros poemas e rebatizado como Lira Sertaneja (1887), até hoje o livro de poemas mais reeditado da literatura do Piauí: 13 edições, com a de 2010 (uma cópia de anterior, de  1972). 

É o tempo também de Teodoro de Carvalho e Silva Castelo Branco, com A Harpa do Caçador (1884).

Citem-se, da mesma época, Luísa Amélia de Queiroz Brandão e Licurgo José Henrique de Paiva, dois outros bons poetas, mais caracteristicamente românticos que os anteriores.

          Fazia-se, no Brasil inteiro, o tipo de poema que fizeram José Manuel de Freitas, J. Coriolano, Hermínio Castelo Branco, Teodoro de Carvalho e Silva Castelo Branco e outros menos conhecidos. Foi por tal razão que Sílvio Romero incluiu J. Coriolano (José Coriolano de Sousa Lima) em sua História da Literatura Brasileira.

Essa linha popular tem sido uma constante na escritura dos piauienses e chega  até o presente pela voz de Hermes Vieira. Sobre este, escreveu A. Tito Filho, em artigo do jornal O Dia, 23.7.1998: 

“O Piauí possui realmente autênticos cultores de poesia popular, a que brota da maravilhosa inspiração das cousas simples e das tradições coletivas. Entre os vivos está o divino telúrico Hermes Vieira, que J. Miguel de Matos caracterizou como a maior expressão da poesia folclórica da terra piauiense, versátil e fecundo. Publicou-se agora Nordeste, poemas de Hermes, uma iniciativa de José Bruno dos Santos, da Companhia Editora do Piauí. Este Nordeste mostra o poeta em toda a grandeza dos versos que as criações do novo inspiram, abrangendo aspectos da vida e da natureza, psicologia das gentes, bichos, episódios amorosos e trágicos, alimentos, cerimônias, amores escondidos, mitos, lendas, superstições, danças, músicas, facécias, anedotas, linguajar – e ninguém melhor do que Hermes Vieira colocou esses processos de vida de homens e mulheres humildes na construção de versos que constituem exemplo de arte verdadeira e motivo de consagrada inteligência”.

Exemplos do passado mais recente seriam João Ferry,  Domingos Fonseca e o próprio Torquato Neto,  mais conhecido como autor de letras de canções populares que como poeta.

O ser e o fazer piauienses eram simples mas singulares. Diferença:  traziam o cheiro da terra, os costumes do povo e seu linguajar. As obras estão aí por prova, editadas e reeditadas constantemente.

          Embora comece  com a poesia, o Piauí literário não era só poesia.

          Apareceu-nos um prosador do porte de Francisco Gil Castelo Branco, com suas novelas e contos, entre os quais Ataliba, o Vaqueiro, 1878. Mas este, por ser diplomata, vivia fora do Piauí.

          Outros momentos importantes para as nossas letras:

a)    criação da Academia Piauiense de Letras, em 30-12-1917;

b)     a fundação da Faculdade de Direito do Piauí, em 1931, confirmando a tradição intelectual piauiense pelos parâmetros da Escola de Recife;

c)    a fundação da Faculdade Católica de Filosofia, em 1958, que veio inserir nosso Estado na modernidade educacional instalada no Brasil desde o começo dos anos 1930.

 

 

                             

     ESTILOS DE ÉPOCA

 

 

         

Nem sempre as nossas gerações correspondem às escolas da literatura brasileira. O isolamento e a pobreza do Piauí, desde o seu nascedouro, somados ao clima rigorosamente quente, geraram costumes, falares e cultura dessemelhante de outras regiões, inclusive as diferenças  nas escolhas  literárias.

Sem muito distanciamento, outras classificações e critérios que não os da literatura brasileira, portanto, são aqui inventados, na tentativa de melhor enquadramento e estudo.

Em vez de escolas, adotamos a classificação em gerações. O sentido de geração não é tomado apenas biologicamente como queria Ortega y Gasset. Possui muito mais conotação estética que temporal.

                                                

                               Geração romântico-popular

 

Romântico-popular: – À falta de denominação melhor, este é o nome mais acertado para a primeira geração da literatura piauiense, por ter adotado os temas e costumes do povo, sua sentimentalidade, sua linguagem. Tem-se a impressão, à primeira vista, que corresponde à época dos cancioneiros, na literatura portuguesa. Na realidade, interliga-se ao período romântico da literatura brasileira em suas linhas gerais, porém guarda grandes diferenças. É a geração da poesia popular e da prosa regionalista.  Os autores dessa fase (J. Coriolano, Hermínio Castelo Branco, Teodoro de Carvalho e Silva Castelo Branco, Licurgo de Paiva, Luísa Amélia de Queiroz Brandão) tinham como leitura nossos poetas românticos: Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Castro Alves, Fagundes Varela, Gonçalves Dias, sem esquecer a influência dos populares da estirpe de Juvenal Galeno e Catulo da Paixão Cearense. 

Entre os prosadores, sempre poucos, destacam-se Constantino da Costa Pereira, que publicou o romance A Namoradeira, pelas páginas do “Almanaque Literário Pernambucano”, 1882,  e  João Licínio de Miranda Barbosa (1870-1899),  que,  em 1892, estudante em Recife, escreve  Esmaltes, livro que denominou de contos –  bem concebidos para sua época, embora hoje pareçam ingênuos. Eles iam pelas águas de José  de Alencar e  Franklin Távora, quando não imitavam o Visconde de Taunay e mais alguns da escola romântica.

          Até o final do século XIX, outros intelectuais surgem, seguindo mais ou menos aquela linha do popular, cada um com sua peculiaridade. Eis alguns citados por João Pinheiro: Antônio Gentil de Sousa Mendes (1842-1892), João José Pinheiro (1844-1901), Joaquim Ribeiro Gonçalves (1855-1919),  Phocion Caldas (1869-1904), Francisco de Souza Martins - 2º desse nome (1856-1892), Lauro Pinheiro (1882-1919) e Manoel Lopes Correia Lima (1858-1929). Este último, ajudado por Elias Firmino de Sousa Martins (1869-1936), fundou O Diário – primeiro jornal quotidiano do Piauí, em 14 de janeiro de 1893.

          Outros nomes se destacam mais ainda: Raimundo de Area Leão (1846-1904), Leônidas Benício Mariz e Sá (1867-1902), Anísio Auto de Abreu (1868-1909) e Taumaturgo Sotero Vaz.

 

          Taumaturgo Vaz (1869-1921) nasceu em Amarante, estudou as primeiras letras em sua terra, vai para Recife, forma-se em Direito, emigra para o Amazonas onde foi promotor público, juiz municipal e professor. Ocupa cargos de grande importância no Estado (Diretor do Teatro Amazonas, Procurador da República, Secretário de Estado), publica em quase todos os jornais, faz hinos, canções, cançonetas para danças populares, deixando muita poesia esparsa, inclusive com o pseudônimo Warenka.

          Através de leve ironia, em versos expressivos, melodiosos, espontâneos, corretos e firmes, há o clamor das injustiças e o rosto dos humildes:

 

                    Não conheces da vida o negro drama...

                    Não conheces jamais a dor vencida...

                    Viver rindo?!  cuidado que na lida

                    Não te queime do amor a ardente chama.

 

                    Nunca sintas  o fel que nos derrama

                    Dentro do peito essa ilusão perdida...

                    Ai! nunca saibas como dói a vida

                    Quando a gente é distante de quem ama.

 

                    Nunca saibas que o mundo é feito apenas

                    De amarguras cruéis, de duras penas

                    E de espinhos que a gente vão ferindo...

         

                    Sim! que a vida te corra sempre  mansa!

                    Que tu sejas assim, sempre criança

                    E passes neste mundo sempre rindo!...

 

Publica em 1900, em Manaus, o livro Cantigas do Brasil.  “Na sua poesia, domina mais a sensibilidade do que a imaginação. O seu lirismo doce, de enlevante suavidade, desabrocha evocativo, numa sinceridade de inspiração cujo frêmito angustiado bastaria, revivendo paisagens do passado e fixando alegorias do presente, para delinear os estados quase mórbidos dessa sensibilidade”, diz o crítico Péricles de Morais.

 Deixou grande quantidade de poesias esparsas, populares, folclócricas,  segundo João Pinheiro, quando transcreve Minha Madrinha como exemplo.  

                              

                            

                                Geração acadêmica

 

A geração da Academia – É exemplificada por Lucídio Freitas e Da Costa e Silva, na poesia; na prosa, os nomes mais evidentes são Abdias Neves, Clodoaldo Freitas e Higino Cunha. Teve uma safra numerosa de poetas, entre os fundadores  contam-se Antônio Chaves, Fenelon Castelo Branco, Benedito Aurélio de Freitas, Arimathéa Tito.

Como o nome indica, a primeira geração acadêmica já vem do fim do sec. XVIII e vai pelo  primeiro quartel do séc. XIX. Foi a fundadora da Academia Piauiense de Letras, em 1917, movimento renovador para a época como bem acentuou a crítica.

 

                                    Geração do Cenáculo

 

A geração do Cenáculo: – Nessa geração devem ser incluidos  os poetas Oliveira Neto e Luiz Lopes Sobrinho. Referidos vates faziam versos com as mesmas características dos acadêmicos até quatro décadas depois da fundação da Academia  Piauiense de Letras. No entanto, Oliveira Neto, por exemplo, sequer pertenceu à Academia.

Como Luiz Lopes Sobrinho e Júlio Martins Vieira, alguns outros poetas e prosadores podem ser classificados nessa  geração pós- acadêmica, mesmo ultrapassando os limites do tempo comum  que é cedido a uma geração. Uma boa parte dos poetas dessa geração fundaram o Cenáculo Piauiense de Letras, em 7 de setembro de 1927. Citem-se entre os principais cabeças do movimento, Osires Neves de Melo, Antônio Neves de Melo – seu idealizador, Eudóxio da Costa Neves, Veras de Holanda e Bugyja Britto. Todos eram muito jovens e idealistas, trabalhavam ou escreviam na imprensa.

         

                                  Geração quase perdida

 

 

A geração quase perdida: – Existiu também uma geração quase perdida, até bem pouco confundida com a geração meridiano, para a qual muitos migraram e se tornaram escritores modernos.  Aquela ficou sendo quase exclusivamente de professores da Faculdade de Direito e do Liceu Piauiense.  Os escritores da época eram poucos e inexpressivos, especialmente os que viviam na terra.  Exemplos há de grandes professores de latim, de gramática da língua portuguesa, mas não de autores de obras gramaticais ou de obras literárias. Geração de intelectuais brilhantes como Clemente Fortes, Cromwell Barbosa de Carvalho, Vidal de Freitas, Simplício de Sousa Mendes, porém de quase nenhum literato.  Para eles, os parâmetros nacionais eram Rui Barbosa e Coelho Neto, sem falar no quase piauiense Clóvis Beviláqua, autor do Código Civil Brasileiro.

         

                              Modernismo

 

Finalmentte, chega-se ao Modernismo, onde todas as tendências se confundem e se transformam, de maneira que se tornou um caldo de cultura, distanciando-se cada autor com o seu manifesto, o seu jornal o seu discurso. O modernismo terá sido uma escola, tal como se pensa sobre o Romantismo e o Realismo?

 No Piauí, o Moderno chegou com atraso de duas décadas, pouquíssimos autores que mostravam em suas obras um leve sopro do que foi a Semana de 22, em São Paulo.                    

 

                             Modernidade

 

As gerações seguintes    meridiano, clip e marginal (mimeógrafo)   podem ser consideradas como  movimentos ou  gerações, dependendo da perspectiva de quem venha a estudá-las exaustivamente.  É que quase tudo ainda está em curso, através de alguns dos seus integrantes vivos e atuantes, embora algumas linhas já se apresentem bem visíveis.  

 Segundo o crítico Wilson Martins, tudo o que se faz em literatura, depois do modernismo como escola, para existir deve ser considerado modernidade.  Chegou, então, a época, em que não há mais esolas, há movimentos, gerações, e todas  fazem parte da modernidade.

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ÍNDICE DE TÓPICOS

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