III
MODERNIDADE
“as ondas que voltam sobre as mesmas praias,
noivas desconhecidas a cada novo encontro.”
Alberto Da Costa e Silva
GERAÇÃO MERIDIANO
Nos
anos finais da década de 1940, um grupo de jovens se reunia em Teresina, quer
na redação dos jornais, quer sob a forma de associações literárias. Inicialmente, tem-se o depoimento de um desses jovens,
naquela época, jornalista Afonso Ligório Pires de Carvalho, que depois se
tornaria um elegante contista, aventurando-se também pelo romance e pela memória com desenvoltura. Ele conta:
“Saí de Teresina para Recife, forçado pela
mudança de domicílio da família.(...) Eu era apenas adolescente. Mesmo assim , já havia fundado em Teresina um
jornal chamado O Autêntico, 1945, e
participava dos movimentos do Clube dos
Novos, 1946, ao lado de Paulo Nunes, Hindemburgo Dobal, Vítor Gonçalves
Neto, O. G. Rego de Carvalho, Edmar Santana e outros. Vítor, em entrevista publicada
em Teresina, lembra o meu desempenho. Hindemburgo igualmente deu o seu
testemunho na revista Presença, nº
20 (1º semestre de 1993), onde diz que O
Autêntico, feito pelo Afonso Ligório, era o jornal do movimento intelectual
da época.
Depois veio a
revista Meridiano, feita por
O. G. Rego de Carvalho, M. Paulo Nunes e H. Dobal, que ultrapassaria a década,
indo até os anos 50, deste século, embora tenha tido apenas três números. A
principal figura da revista, seu editor,
era O. G. Rego de Carvalho. Ela ficou
mais na lembrança do que os demais
órgãos literários que reuniam a moçada intelectual, por isto bem mereceu dar
seu nome à geração.
No
rastro da Geração de 45 nacional, o movimento Meridiano abjurava Drummond, os poetas de 1930 e
o regionalismo de seus romancistas, mas no fundo os imitava. Àquela época, Martins
Napoleão já era lido e festejado no Piauí, com mais frequência.
Contemporâneos,
colegas de colégio ou comungantes das mesmas idéias, além dos já citados diretores da revista «Meridiano», eram Fontes Ibiapina, Álvaro Ferreira, Esdras do
Nascimento, Álvaro Pacheco, Afonso Ligório Pires de Carvalho e Osvaldo
Soares do Nascimento, que completam o
grupo dos que continuariam ligados às
letras. A estes, pela idade e pelas as ações que desenvolveram em prol da
cultura, podem ser citados Celso Barros Coelho,
Ribamar Oliveira, Vítor Gonçalves Neto, Camilho Filho, José Maria
Ribeiro, Heli Santos Piauilino,
Eustáquio Portela e Edmar Santana. Que participavam da Arcádia, outra
organização cultural surgida naquela década.
FICCIONISTAS E
POETAS
O. G. Rego de Carvalho (1930) nasceu em Oeira –
PI. Formado em Direito, lecionou no Liceu Piauiense, trabalhou no Banco do
Brasil (aprovado em concurso público nacional, em 1952 – 1º lugar). Estudou nos Colégios Diocesano e no Liceu Piauiense.
Ganhou muitos concursos literários, o primeiro foi o da revisa A Cigarra,
quando passou a colaborar nos periódicos do Sul (Jornal de Letras, Correio da
Manhã, Diário de Notícia, O Cruzeiro). Membro da Academia Piauiense de
Letras e laureado com prêmio “Coelho Neto”, da Academia Brasileira de Letras. Estreou
em livro, com o romance Ulisses entre o
Amor e a Morte, 1953. Em seguida publica Amor e Morte, 1956, uma
coleção de contos que não quis mais reeditar. Entretanto alguns deles foram revistos
e publicados nas revistas O Cruzeiro e Ficção, do Rio, e na
antologia Piauí Terra, História e Literatura, 1980. Seus
romances Rio Subterrâneo, 1967 e Somos
Todos Inocentes, 1971, tiveram a primeira edição publicada e distribuída
nacionalmente pela Editora Civilização Brasileira – Rio de Janeiro). Além
destes publicou a novela Amarga Solidão,
1979 (1ª edição encartada na revista Cirandinha), tendo sido reeditada pela
Fundação Cultural do Piauí, 1988. São
belas obras de ficação onde os
sentimentos vicerais do ser humano são tratados com profunda emoção e constante
maestria. Trabalhando constantemente sua obra, até a exaustão, reedita-a
escoimada de imperfeições, para apresentar o melhor estilo na língua portuguesa,
só encontrando paralelo em Eça de Queiroz.
É também o mais musical dos nossos escritores. Uma referência naturalmente
é José de Alencar, superando-o
Disse o poeta Carlos
Drummond de Andrade: “De Rio Subterrâneo tierei forte sensação
de obra calcada no que o homem tem de mais dolorido e profundo, e trabalhada
com profunda consciência artística. É desses livros que a gente não esquece.” Como
página antológica do seu estilo, eis uma parte do primeiro capítulo de Rio Subterrâneo, 10ª edição, Renoir
Editora, Teresina, 2009:
Limbo
Nada distraía a atenção de Lucínio, preso, há dias,
na doença do pai. Era doloroso suportar o afastamento: saber que o velho
sofria, escutar-lhe os resmungos noite afora, ouvir sua respiração desde o corredor
– e não poder fitá-lo nos olhos indormidos.
Muitas vezes, detendo-se ante a alcova, mal continha
o impulso de entreabrir a porta, se não para entrar, ao menos disposto a
revê-lo. Lá dentro, zonzo de angústia ou em delírio, José febricitava, sob a
vigilância da mulher, que o assiste em tudo e quase nunca o deixa só.
“Por que papai evita minha presença?” Lucínio não
compreendia. A mais ninguém José detestava nas crises; somente por ele é que se
trancava naquela solidão enfermiça, como se vê-lo fosse causa de novos
sofrimentos. “Entretanto, sinto que não me odeia. Bom, é louco por mim”.
Imerso nesses pensamentos, o jovem afastou-se da
quinta e desceu o barranco à beira do rio, coberto de jitiranas,detritos das
enchentes e espumas que as ondas traziam num baque surdo, profundo. A
correnteza impetuosa era um convite à loucura: arrastava a imaginação remoinho
adentro, com um rumor de vozes abafadas, atraindo o espectador desprevenido
para a morte. Lucínio arrepiou-se, recuando a tempo. De novo, o pai: sua alienação
fazio-o padecer, aguçando-lhe a vontade de substituir a mãe nos desvelos, em
especial nas noites frias de inverno.
Nessa tarde escura, cor de cinza, a atmosfera parecia
fechar-se, impregnando-lhe os sentimentos, já desolados, dos tons soturnos da
natureza. O vento gelado feria-lhe o rosto, zunindo nos coqueirais e vergando
as mangueiras pendentes de frutos. O céu enegrecido por densas nuvens prenunciava
desespero: o pai aos gritos, a mãe querendo acalmá-lo em vão, e ele impotente
diante dessa tortura, a reprimir a dor em silêncio. “Basta de chuva!”
Um apito prolongado desviou-lhe os olhos para a
ponte. O trem se aproximava, despedindo fagulhas pela chaminé abrasadora, a
estremecer o chão em volta, ao compasso de seu trepidando movimento. A fumaça
branca subia aos poucos, num vivo contraste com as nuvens cinzentas e as águas
vermelhas do rio, onde um vareiro ainda jovem lutava contra a força da correnteza, tentando descobrir um porto seguro para a
balsa.
O Parnaíba há muito transbordara do leito, submergindo
as coroas que se formavam ao longo do curso, nos meses de estio. Engrossado
pelos afluentes e pelo aguaceiro constante que despencava, fora alagando os
baixios, desfazendo roças, subindo ribanceiras, até se tornar indômito. Já
fizera duas vítimas, que engolfara no turbilhão, à vista dos canoeiros assustados.
Porém a fase aguda ia passando. O volume reduzia-se
lentamente, permitindo que um lençol de lama e sujeira amortalhasse os capins
submersos e os arbustos desgalhados, que resistiam assim à erosão do solo e à
voragem da torrente. Um martim-pescador correu ao nível das águas, e voou para
o céu. No outro lado do rio, morcegos ondulavam aos bandos, por sobre o arvoredo
do bosque e o campanário da matriz.
Logo mais, a
noite. Lucínio estremeceu só em pensar na insônia que iria sofrer,
contendo-se ante a porta do quarto, enquanto a chuva amorteceria as imprecações
do pai doente. Até sua mãe se ocultava dele nos últimos dias. Quisera
arrancar-lhe uma confissão, e não pôde. Marieta ouvira-o reservada, a roer as
unhas, os olhos fitos num ponto longínquo. Nunca ele desvendara o mistério que
envolvia essas criaturas estranhas, que vinham emagrecendo com o passar dos
meses, como se uma chama interior lhes devorasse as energias.
E não apenas o corpo que definhava. Também o
espírito. Distante era o tempo em que sua mãe, alegre e cheia de vigor, enchia
a casa com a ruidosa presença, a tomar conta do sítio, de ânimo forte. Hoje está
envelhecida, meio absorta, com uma expressão dura no olhar. Não se importa com
o asseio, deixando essa parte sob a vigilância de Odete, que ainda não sabe
impor-se às empregadas e, por sua vez, não é muito zelosa, preferindo subir na
cerca, perto dos umbus, a ter de empunhar uma vassoura.
Sua irmã tinha o corpo adolescente e a impulsividade
de uma menina. Por falta de assistência materna, crescia solta à beira do rio,
voluntariosa, brigando com os moleques e os grajeiros vizinhos, de todo alheia
ao drama que amargurava a família. A mãe queria protegê-la contra tais
dissabores, e por isso sempre a conservava longe da quinta, durante as crises. Agora
mesmo Odete se encontra em viagem com Dulce, tia velha que a estima e em cuja
residência ela costuma passar semanas inteiras.
Ah, se Lucínio pudesse apagar a frustração da
consciência! A fuga já não lhe parece covardia: nada pode fazer para minorar as
angústias do velho, diminuir-lhe a tortura das noites agitadas. No entanto ele
não se esquece um só minuto de que sua própria vida refletirá eternamente esse
drama doméstico. ‘Admirável, saber que o destino de um homem sofre as
repercussões de existências alheias’. Poderia falar assim? Existiria ele divorciado
dos seus, de sua essencia íntima, como uma árvore sem raízes?
‘O que não devo é pensar’, refletiu, verifiando com
surpresa que se distanciara do sítio, estando próximo de Timon. O frio era mais
intenso e o céu mais negro. O vento trazia as primeiras bagas de chuva –
violentas como pedras. Gentes que vinham da capital, após o labor, saíam
ligeiro dos botes e das lanchas, e procuravam abrigo nas bodegas, ou debandavam
em correria rua acima, na esperança de ir ter em casa antes que a tempestade
caísse.
H. Dobal
(1927-2008), cujo nome completo é Hindeburbo Dobal Teixeira, nasceu
Campo Maior
Ai campos do verde plano
todo alagado de carnaúbas.
Ai planos dos tabuleiros
tão transformados tão de repente
num vasto verde num plano
campo de flores e de babugem.
Ai rios breves preparados
de noite e nuvem. ai rios breves
amanhecidos na várzea longa,
cabeças d’água
do surubim
no chão parado dos animais,
no chão da vas e das ovelhas.
Ai campos de criar. fazendas
de minha avó onde outrora
havia banhos de leite. ai lendas
tramadas pelo inverno. ai latifúndios.
Réquiem
Nestes
verões jaz o homem
sobre a terra. E a dura terra
sob os pés lhe pesa. E na pele
curtida in vivo arde-lhe o sol
destes outubros. Arde o ar
deste campo maior desta lonjura
onde entanguidos bois pastam a poeira.
E se tem alma não lhe arde o desespero
de ser dono de nada. Tão seco é o homem
nestes verões. E tão curtida é a vida,
tão revertida ao pó nesta paisagem
neste campo de cinza onde se plantam
em meio às obras-de-arte do DNOCS
o homem e outros bichos esquecidos.
Os amantes
Eis-me de novo adolescente. Triste
vivo outra vez amor e solidão.
Canto em segredo palpitar macio
de pétala ou de asa abandonada.
Outro amor em silêncio e na incerteza
oprime o coração desalentado.
Ó lentidão dos dias brancos, quando
a angústia os desejos breves como um sonho.
Insidioso amor em minha vida
reverte o tempo para o desespero,
a inquietação da adolescência,
e o pensamento me tortura, prende
como se nunca houvesse outro consolo
que não é mais de amor. Porém de morte.
Paulo Nunes (1925), nome literário de Manoel Paulo Nunes,
nasceu em Regeneração, PI. Professor universitário, técnico em assuntos
educacionais do Ministério da Educação, aposentado. Orador, cronista e ensaista.
Na juventude, chegou a escrever contos que, em virtude de sua autocrítica,
ficariam inéditos. Foi Secretário de Cultura,
quando reorganizou o Conselho Estadual de Cultura e reativou a circulação da Revista Presença. Assessor do Ministério
da Educação e do Departamento de Ensino Fundamental – MEC. Membro da Academia
Piauiense de Letras, presidiu a instituição depois da morte de A. Tito Filho.
Como educador,
afirma: “Participei de todos os eventos
principais da educação no Piauí, como a criação da UFPI, cujo trabalho de
preparação dos documentos básicos coordenei, tendo ainda acompanhado de perto a
tramitação do processo no Conselho Federal de Educação. Fui cotado para ser
reitor, mas os donos do poder político dominado pela ditadura militar
implantada em 1964, excluíram meu nome de tal cogitação, sob a pecha de
subversivo que me acompanharia na vida pública durante aquele ignominoso
período.”
Na juventude fez crônicas, mas firma-se na
crítica literária. Ele mesmo declarou: “ Em
1946 criamos o Clube dos Novos. Foi
a primeira instituição que fundamos e a que presidi. Escrevíamos nos jornais e
editamos a revista Meridiano, entre
1947 e 1950, que ficou conhecida nacionalmente. (...) A Academia era alvo de
ataques dos plumitivos que surgiam querendo fazer literatura.”(Revista
Educação e Arte”- Teresina, sem data, mas circulou em fev./2011). Obra: A Geração Perdida, 1979; A Província Restituída, 1981; O Discurso Imperfeito, 1988; As Solidões Justapostas, 1992; Tradição e Invenção, 1993; Modernismo & Vanguarda (I e II) 1996 e 2000; Tradição e Invenção (Nova Série), 1998; As Duas Faces da Nossa Cultura, 1999; e Tradição e Modernindade em
Eça de Queiroz, 2000, todos de ensaios e crítica literária. Além dos
livros, é rica e enorme sua produção em jornais e revistas literárias, entre as
quais a Presença, do Conselho Estadual de Cultura, cujo órgão há
alguns anos preside. Página antológica é a crônica memorialística Uma
Visita Sentimental, recolhida do jornal Diário do Povo,1º/7/2005:
Convidado por uma professora do Liceu para ali proferir
uma palestra sobre a reinauguração daquele tradicional educandário, onde
concluí, há sessenta anos, o chamado curso clássico, marcada para as 9 horas de
2ª feira passada, dia 29, ali compareci no horário regulamentar, com dez
minutos de antecedência. Após conversar com o seu atual diretor, Prof. Silva
Neto, críatura simpática e afável, filho de pessoas de meu convívio,
verificamos ter havido algum equivoco naquele convite, porquanto nem ele tomara
conhecimento do assunto nem conseguiu localizar a autora do convite e nada
indicava ter havido qualquer ato
preparado com aquela finalidade.
Aproveitei entretanto a oportunidade para, em
companhia do diretor, visitar o prédio devidamente reformado, inclusive uma das
salas de aula da parte oeste, na qual eu me lembrava de haver lecionado durante
algum tempo, ao longo dos anos, cerca de 25, que exerci o ofício de professor.
Lembrei-me a propósito da famosa crônica de Machado
de assis sobre o Velho Senado, contida nas Páginas Recolhidas e não pude deixar
de associá-la a este momento de evocação na história daquele velho educandário,
pelo qual já passaram várias gerações de estgudantes e onde não mais havia
retornado depois do meu voluntário exílio brasiliense.
Todos se lembram das palavras iniciais do romancista:
‘A propósito de algumas litografias de Sisson, tive
há dias uma visão do Senado de 1860. Visões valem o mesmo que a retina em que
se operam.Um político, tornando a ver aquele corpo, acharia nele a mesma alma
dos seus correligionários extintos, e um historiador colheria elementos para a
história. Um simples curioso não descobre mais que o pinturesco do tempo e a
expressão das linhas com aquele tom geral que dão as cousas mortas enterradas.’
(Obra Completa, vol.II, p.636, Companhia José Aguilar, Editora, Rio de Janeiro,
1974).
Depois de fixar, de forma imperecível, o retrato das
figuras do tempo e de reconstituir, através delas, a fisionomia moral de uma
época, conclui o relato à maneira niilista, evocando a visão das personagens
desaparecendo, uma a uma, a enfiar por um corredor escuro ‘cuja porta era
fechada por um homem de capa preta, meias de seda preta, calções pretos e
sapatos de fivela.’
E acrescenta a seguir:
‘Este era nada menos que o próprio porteiro do
Senado, vestido segundo as praxes do tempo, nos dias de abertura e encerramento
da assembleia geral. Quanta cousa obsoleta! Alguém ainda quis obstar a ação do
porteiro, mas tinha gesto tão cansado e vagaroso que não alcançou nada; aquele deu volta à chave, envolveu-se na
capa, saiu por uma das janelas e esvaiu-se no ar, a caminho de algum cemitério,
provavelmente. Se valesse a pena saber o nome do cemitério, iria eu catá-lo,
mas não vale; todos os cemitérios se parecem.’(Ob.cit.,pp.643-4).
Saí dali com a sensação de haver recuado quase meio
século, passando assim a viver novamente o momento melhor da minha vida.
Mas, como o velho porteiro do Senado, verifiquei que
nada se restaura no tempo, quando muito apenas as lembranças.
Depois da recepção calorosa dos alunos, uma vez
apresentado pelo diretor, em uma das salas onde houvera lecionado por algum
tempo, procurando dar vida e dimensão humana e perene a algumas figuras da
língua e da literatura portuguesa, pude sentir que tudo mergulha no lago do
esquecimento. Pensei por um minuto que possivelmente tenha ficado um pouco da
memória daqueles instantes para verificar que nem isto talvez tenha restado. A
vida é dinâmica, as gerações se sucedem ao longo do tempo e o que resta do
passado será quando muito um pouco de brasa extinta.
Ao descer com a dedicada companheira de toda a vida,
após despedir-me do afável diretor, as escadarias do velho educandário, senti que
aquele passado estaria para sempre mergulhado no esquecimento. Não olhei sequer
para trás para não virar estátua de sal, como na legenda bíblica. Apressei um
pouco os passos para não seguir a imagem do velho porteiro do Senado da
evocação do bruxo do Cosme Velho. Ainda bem que a manhã luminosa e quente me fez
reentrar na rotina dos dias presentes.
Afonso Ligório (1928), nasceu Luzilândia – PI, contista,
cronista, romancista, membro da Academia Piauiense de Letras. Jornalista, teve
vida profissional em Recife (onde publicou alguns trabalhos literários) e trabalhou
em grandes jonais daquela metrópole. Quando saiu de Teresina, já ensaiara seus
primeiros escritos nos jornais do Piauí. Reside em Brasília, onde edita o Jornal
da ANE, entidade cultural a que pertence e presta inestimáveis serviços
. Recentemente publica seus contos em
livro:
Só Esta Vez, 1987, e A Hora
Marcada, 1981, e, em seguidas os
romances históricos, de cujo ciclo é exemplo Capitania do Açúcar, Recife, 1999. Outras obras: Tempos de Leônidas Melo, 1994, tendo
participado também da coletânea Cronistas
de Brasília, 1985. Na época do Clube
dos Novos publicou contos e crônicas , na imprensa. Ele próprio declara sua participação no
movimento Meridiano, confirmada por seu fazer literário hoje, ainda com
os mesmos acentos daquela geração. Contista exemplar: contido, seguro e consciente do seu valor. O conto Só Esta Vez., do livro do mesmo nome,
é prova de sua arte.
Enquanto se vestia, sem pressa, Ernesto olhava o
corpo de Helena, estirada na cama. Ela mostrava a nudez sem restrições.
- Meu telefone agora é 253... – sem se mexer, Helena
ditava pausadamente os números, como quem disca.
Descambando para os cinquenta, Ernesto pensou na
diferença de idade. Dali podia ver os ângulos mais íntimos de Helena, quase
adolescente.
Era sempre assim, depois de uma aventura.
Interrogava-se, obsessivo, e procurava afastar a sensação de culpa com exercícios mentais pouco eficazes.
Naquele dia, não se demorou no apartamento de
Helena. A caminho de casa, dirigia como um autômato. Olhar longínquo,
pensamento distante, indiferente à paisagem
No princípio, usara da astúcia, da longa experiência,
para aquela conquista. Supunha-a apenas mais uma, e passageira. O tempo escoou-se
rápido. Agora, indagava se devia prolongar o relacionamento, se não seria mais
prudente um recuo sensato, um ponto final. Sentia-se tão ligado a Helena que
não ousava sequer pensar em solução definitiva, embora reconhecesse a
oportunidade. Sabia que não era aconselhável brincar com essas coisas. As
reflexões baralhavam-lhe o pensamento.
Entrou em casa sem fazer barulho, na ponta dos pés.
Percebeu a mulher mexer-se na cama. Amiudou os passos. Quis acender a luz, mas
decidiu que não devia incomodá-la. O corpo despido de Helena, realçado por
lençois brancos, tal qual pintura de Goia, continuava a projetar-se em sua
mente, na escuridão do quarto, como ideia fixa. O silêncio e a presença de
objetos familiares devolveram-lhe a realidade.
Gostava do aconchego da casa. Respirou fundo e sentiu súbito alívio.
Agradável sensação de segurança o envolveu pouco a pouco.
A representação do corpo de Helena não saía do cérebro
de Ernesto. Os quadris roliços, seios firmes...
- Vá dormir, meu bem – a voz sonolenta da mulher
dissipou as fantasias que se renovavam.
- Alguém telefonou? – perguntou sem intenção, como
se quisesse dizer: “estou aqui”.
Por quese preocupar tanto? – interrogou-se. Talvez exagerasse o sentimento. O tabu das
coisas morais, o temor do erro, da falta, o sentimento de culpa prolongado,
torturante. Quantos estão a fazer isso neste momento, sem traumas, pelo
contrário...
Deitou-se,
preocupado. Detestava esse tipo de problema. Relutou e prometeu que não
a procuraria mais.
Acordou cedo. O primeiro pensamento foi para Helena.
Começou a repetir o número do telefone que ela ditara na véspera, para
memorizar: 253...
Na hora do café, passou a refletir que não era justo
o que vinha fazendo. “Ela, uma menina;
ele, quase um velho”. Novamente, em jogo antigos valores e ideias
moralistas. “Bobagem”, raciocinou conclusivo. Experimentaria uns tempos sem
vê-la. Depois faria visitas espaçadas, até, quem sabe, se esquecerem.
No trabalho, o telefone era o objeto mais
importante. Enquanto o olhava, como a vigiá-lo, na memória o número de Helena
se repetia, incessantemente. Reprimiu o desejo quase compulsivo de ligar.
No final do expediente, o telefone toca.
Expectativa. Rápido, segura o fone, mecanicamente. Detém-se, num excesso de
cautela. Aguardaria outras chamadas. Na terceira, sem poder controlar-se, tira o fone do gancho, imposta a
voz e faz a interrogação costumeira:
- Alô? Em fração de segundo, temeu que não
fosse ela, mas alguém, inoportunaamente, ligando para fazer qualquer negócio.
Do outro lado do fio:
- Ernesto? – voz jovem, doce, inconfundível.
Sôfrego e trêmulo acerta um encontro para o dia seguinte. “Mas só esta vez”,
prometera a si mesmo depois de desligar.
Assis Brasil (1932), nascido em
Parnaíba, primeiros estudos no Piauí. Em seguida, vai para Fortaleza, onde
começa a colaboração nos jornais. Jornalista de formação, tendo participado
intensamente do movimento renovador do SDJB (Suplemento Dominical do Jornal do
Brasil), com Mário Faustino. A estréia em livro se dá no Rio, 1953, com Verdes Mares Bravios (posteriormente
republicado com o título de Aventura no
Mar, coleção infanto-juvenil). Em 1955 é a vez de seus Contos do Cotidiano Triste, também no Rio. Mas não é a ficção curta que o seduz. Assis
Brasil renova o romance, introduz um
novo regionalismo na literatura brasileira que marca o sentimento interior através
de novas estruturas e formas de falar do homem, ao fazê-lo expressão do meio e
de todos os meios. Esse novo romance está contido na Tetralogia Piauiense, que se compõe de Beira Rio Beira Vida, A Filha do Meio Quilo, O Salto do Cavalo Cobridor e Pacamão, começada a publicação em 1965
e finda em 1969. Com Beira Rio Beira Vida, foi primeiro
prêmio do WALMAP, maior concurso literário nacional, façanha
que Assis Brasil repetiria em
1975, com Os que Bebem como Cães - livro
que faz parte de uma “nova tetralogia”, agora urbana, juntamente com Deus, o Sol, Shakespeare, 1971 {também
premiado pelo WALMAP), O Aprendizado da Morte e Os Crocodilos – uma fase talvez mais ousada do que a
primeira.
Mas Assis Brasil não é somente o grande
romancista brasileiro da atualidade, escreveu e publicou inúmeros livros na
área infanto-juvenil e é também um
crítico maior. Trabalhos da
importância de Faulkner e a Técnica do
Romance, Joyce - o Romance como Forma e O Livro de Ouro da Literatura Brasileira (400 anos de história
literária) merecem destaque na literatura da espécie. Outra série da maior
importância foi a dos romances historicos: Nassau,
Sangue a Amor nos Trópicos, 1990, seguido de Villegnon,
Paixão e Guerra na Guanabara; Tiradentes, Poder Oculto o Livrou da Forca; Jovita, Missão
Trágica no Paraguai; Paraguaçu e Caramuru:
Paixão e Morte da Nação Tupinambá, entre outros. Dos brasileiros, é o mais
fecundo escritor vivo. Faz tempo que ultrapassou Coelho Neto, isto é, depois de
O
Sol Crucificado,
Eis A Cela, parte do primeiro capítulo de Os que Bebem como Cães, 2009, 7ª edição:
A escuridão é ampla e envolvente.
O silêncio total, cortado apenas por
aquele velho barulho que parte de seus ouvidos.
Sempre fora assim: quando em silêncio,
em paz ou em expectativa, o zumbido voltava, em duração enervante, direto como
a fala direta do policial:
- Deixa as mãos dele algemadas.
Aos poucos ia apalpando o escuro da cela, o silêncio
da escuridão, o zumbido do próprio corpo – estava no chão frio: não era
cimento, nem tijolo, terra batida, úmida, mas não molhada ao ponto de ensopar
sua roupa – os braços para trás das costas, os pulsos algemados.
Aos poucos, ia apalpando o chão com o corpo, de
bruços, o rosto quase a tocar a areia: - sentia o cheiro da terra – uma terra
velha e usada, com cheiro de mofo, com cheiro de urina – sentia as paredes,
mesmo sem vê-las na escuridão: a opressão do cubículo estava em seu corpo, em
seus poros.
A posição era incômoda: as mãos nas costas, o corpo
meio de lado, o rosto na areia fria.
- Deixa as mãos dele algemadas.
Por quanto tempo cheirava a terra abafada pelo
próprio corpo? Horas, dias – lembrou-se de que precisava comer ou urinar ou
falar ou gritar, mas na verdade não tinha vontade de fazer coisa alguma, queria
apenas permanecer na posição incômoda, como se estivesse em maratona para
provar que o corpo podia resistir a tudo.
Tentou se mexer, mas sentiu que o ombro direito,
fincado no chão, estava dolorido – puxou os braços nas costas, e as algemas nos
pulsos rasgaram a carne com um estremecimento:
o silêncio foi interrompido com uma espécie de chiado – podia agora
saber que sangrava, havia um novo odor no ar abafado – o sangue cheirava a
barro, a ferro com ferrugem, cheirava a terra seca quando recebe as primeiras
chuvas.
Era isso ou apenas imaginava um odor ou adivinhava a
cor viva embebendo a terra cinza – e
sangue e terra acabavam por formar uma abstração, um enigma.
Também não sabia se era noite, se era dia claro –
uma cela sem grades,sem a pequena janela no alto, talvez sem porta. Mas por mais
fechada que estivesse, uma porta sempre deixava passar alguma claridade, uma
réstia de luz, um sopro vivificador. Nenhuma luz, nem uma leve brisa
Da posição em que estava, mais uma vez tentava
esquadrinhar o escuro, à procura de um ponto, de uma indicação que pudesse sero
ar ou a luz. Via o escuro de baixo para a frente e para a cima, em ângulo
ascendente.
Do teto também não escapava coisa alguma, mas o
quarto – era mais um quarto do que uma cela comum – estava frio, embora
abafado, um tanto úmido, cheirando a mofo. E se estava frio, úmido, cheirando a
mofo, era porque recebia, em qualquer hora, chuva, vento ou algum raio de sol
perdido.
Assim, concluiu: era noite, e como o frio apertava
na espinha agora, concluiu: era
madrugada, e como o cheiro do ar entrava em suas narinas, filtrado através do
que quer que fosse, concluiu: a manhã estava próxima, e como o estômago
reclamava o vazio estertor, concluiu: faz mais de vinte e quatro horas que não
me alimento.
E se decidiu a esperar pela manhã próxima – alguma claridade
poderia atravessar aquela escuridão, pelo teto, pelos lados, onde deveria
existir uma porta fechada tão rente à parede como se fosse um prolongamento
dela. E se decidiu a esperar que lhe trouxessem alguma coisa para comer, e se
decidiu a esperar que acontecesse algo, mesmo um pequeno barulho ou um grito ou
alguém caminhando lá fora ou dizendo algumas palavras.
“Lá fora”.
O que existirá lá fora? O que é esse lá fora?
Álvaro Pacheco (1933), nasceu no Piauí. Jornalista,
editor, poeta, formou-se em direito, em
1958. Estreia no Rio, com Os Instantes e
os Gestos, no mesmo ano, demonstrando ressonâncias de Drummond, do qual,
passo a passo, vai-se distanciando. Outras
obras: Pasto da Solidão, 1965; Margem
Rio Mundo, 1966; O Sonho dos Cavalos
Selvagens, 1967; A Força Humana, 1970; A Matéria
do Sonho, 1971; Temmpo Integral, 1973; O
Homem de Pedra, 1975; Itinerários, 1983; e Seleção de Poemas, 1984; e ainda
Balada do Nadador do Infinito,
no mesmo ano de 1984. Trabalhou como
jornalista em grandes jornais e foi editor de importantes obras da literatura
brasileira e de outros países. Álvaro Pacheco é nome expressivo da geração.
Indo embora cedo para o Rio, onde se fixou definitivamente, nunca se desligou
da dicção e do sentido que fizeram o grupo
meridiano. Sua poesia se tece
de cores e vozes humanas com aspirações divinas. Mais cores do que vozes, o que
faz dele um poeta lírico atual, campeador de mitos, através de um discurso que
parece fácil mas não é. Ao contrário, foi capaz de grandes feitos no poema
curto e no longo. Dois poemas e duas fases, mostram sua dimensão e seu
crescimento:
O menino e o rio
O rio era lirismo e crepúsculos
Dissolvidos em barro e barrancos.
Seu leito era de viagens impossíveis
Para além dos sonhos dos meninos.
Seu som era o da chuva e o vento conjugando
O alargamento da saudade e da esperança.
Sua luz era o sol e a areia e o pecado
E a água rasa se lavando nos domingos.
Sua casa eram moradas naufragando
Em desejos estragados, um comboio.
E o seu porto eram as mulheres viajando
No cachimbo e ao anoitecer de suas balsas
Os olhos do menino e em seus destinos
As cargas podres de laranjas e limões.
Poema final da adolescência
Te digo agora, mulher, minha lembrança
De um amor juvenil – e o prazer transparente
De te contemplar burguesmente a tarde
Na moldura de um pórtico colonial.
Posso agora revelar os sofrimentos
E os mínimos prazeres desse tempo
E te dizer a revisão da saudade e do amor
Em meu momento final de adolescência.
Já posso agora exilar teu nome
E de mim todo o lirismo jovem
Que sobrou exclusivamente de ti:
Não se sabe aonde vai quem muito amou.
Posso agora, mulher, fazer a síntese
Destes tantos anos de pedaços:
Terás sido minha última lembrança
Para carregar na vida, terás sido
Meu provável sinal de eternidade.
Fontes Ibiapina (1921 – 1986) é o nome
literário de João Nonon de Moura Fontes Ibiapina. Nasceu em Picos, PI. Contista, romancista, folclorista, teatrólogo.
Na vida prática, magistrado e professor. Faleceu em Parnaíba, onde era juiz. Mas
andou antes por várias comarcas. Colaborou em “Avante” (1952), do qual
foi diretor, “Opinião”(1953) e “Almanaque
da Parnaíba”, bem como em muitos outros órgãos da imprensa de sua
época, principalmente com matéria literária e crítica. Quando começou a escrever
seus contos, submetia-os aos concursos
das revistas “A Cigarra” e “Alterosa”, respectivamente do Rio e
de Minas, ganhando muitos desses concursos. Esses contos seriam reunidos em seus primeiros livros: Chão
de Meu Deus, 1958 (que teve uma segunda edição em 1965) e Brocotós,
1961. Outras obras do mesmo gênero: Pedra
Bruta, 1964; Congresso de Duendes, 1969; Destinos de Contratempos, 1974; Quero,
Posso e Mando, 1976; Mentiras Grossas do Zé Rotinho, 1977; Lorotas e Pabulagens de Zé Rotinho, sem data de publicação, premiado pelo MOBRAL.
Romances: Sambaíba, 1963; Palha de
Arroz, 1968; Tombador,
1971; Nas Terras do Arabutã, 1984; Curral de Assombrações, 1985. Folclore: Paremiologia
Nordestina e Passarela de Marmotas, ambas de 1975. Teatro: O Casório da Pafunça, 1982. Deixou no
prelo o romance Vida Gemida em Sambambaia e a coletânea de contos Eleições de Sempre e Até Quando, que
saíram ainda com data de 1985. Em
A
crítica nem sempre foi atenta com Fontes
Ibiapina, dir-se-ia até que foi ingrata. Com obra tão volumosa e importante,
ele não teve uma análise profunda como merecia. Assis Brasil, no Dicionário Prático de Literatura Brasileira, Rio, 1979, registra um
depoimento de Francisco Miguel de Moura sobre seu fazer literário: “Nos últimos anos tem sobressaído mais o seu
trabalho de pesquisa que o de ficção. Mas ele (Fontes Ibiapina) trouxe uma
importante contribuição à literatura do Nordeste, guiando os passos dos novos
para a pesquisa da linguagem falada e sua transposição honesta e desabusada
para as páginas dos romances e contos.”
Depois de sua morte saíram
dois opúsculos divulgando contos de
Fontes Ibiapina: Trinta e Dois e Tangerinos, 1988, e Dr.
Pierre Chanfubois, sem data de publicação.
Pertence
à geração Meridiano, pelo seu
trabalho com a palavra, pela invenção e pelo tempo em que começou a produzir.
No conto, trabalha o diálogo vivo, num tom bem humorado, insistindo na repetição como efeito estético,
na fabulação mais fabulosa, consciente do seu trabalho. Recupera o falar do
nosso caboclo e, transgredindo-o, numa linguagem consumível pelas populações da
roça e da cidade. Assim conquista admirável estilo pessoal e telúrico. Prova de
sua originalidade muito forte é que deixou seguidores.
Do
conto “Trinta e dois” vai
aqui um fragmento:
Quase todas
as noites uma família de retirantes se aboletava no alpendre grande de
nossa fazenda. Eram homens magros, mulheres em andrajos e magras também; crianças
também magras e barrigudas – que se destinavam ao Maranhão.
Um caboclo velho chegou com a raça
toda – a mulher e seis filhos.
- Dá
licença, capitão...
- Pois não, à vontade.
A voz era humilde porque a terra não
era a sua e o seu caminho era o caminho da seca. O Papai era capitão, porque
era o dono da casa. Arriou a bagagem, deu um suspiro. Foi um suspiro tão grande que talvez tenha
ido ao seu “Ceará de Açúcar”.
- Ah! seu moço... nem em sonho queira saber o
que temos sofrido nesta viagem... Se em toda casa nos recebessem assim, apesar
de tudo, seria um céu de rosas. Mas, pode acreditar como nesta luz que nos
ilumina, como há muita gente que só falta é cuspir em nossas caras.
- E de onde
vocês vêm? que mal pergunto.
Pergunta bem. De Lavras
de Mangabeira. Lá este ano não pingou. Foi uma Seca mais danada do mundo. Uma
coisa é ver, outra é dizer; está se acabando tudo, e não é de outra coisa não,
é de pura fome. Morre gado, morre gente, morre tudo, enfim. De janeiro a 19 de
março (quando saímos de lá), não caiu uma gota d’água em cima do chão. Nunca vi
Seca tão grande!
-
Aqui também não houve inverno.
- Sim, foi seco. Estou vendo. Mas, lá pra nós, foi
dez vezes pior do que isto. Basta saber que aqui houve inverno no ano passado
que Deus deu. E lá foi bastante fracateado. Milho só deu tamboeira. O feijão
aguentou mal a primeira carga. Por aí o senhor tire o resto, e veja como a
coisa lá está preta.
- E pra onde vão?
- Para o Maranhão. Para a terra onde Deus dá chuva
para os pobres. Mas já estou quase vendo que lá não boto. Eu saí com muita fé.
Vinha até com esperança de um dia voltar com uma ponta de recurso. Mas já perdi
a esperança. Já perdi até a fé. Sei que nem pobre como saí voltarei. Pra falar
a verdade, até a esperança de lá chegar já perdi. Estou fazendo promessa pra
que chegue com vida por lá, e escape a família no coco babaçu. Aquele menino
ali está batendo febre desde de antes de ontem. Não sei o que é. Mas ele vai
morrer.
Meia noite, mais ou menos, ouvimos um
choro cansado. Um choro enterrado. Um choro no centro da fome. O Papai abriu a
porta e saiu. Eu o acompanhei, sempre fiel ao meu princípio de curiosidade.
- Menino intrometido! Volta pra trás!
O velho aguentava um tição de fogo na mão do menino
que, com os olhos fixos no teto do alpendre de nossa casa, morria no apogeu da
miséria. Estirada ao chão, uma mulher magra e suja se lamentava da sorte. Cinco
garotos, de cujos olhos desciam fios de lágrimas, soluçavam
O velho filosofou:
- Que coisa triste... seu moço. Dá até pra não se
acreditar nas coisas do outro mundo. Será possível que Deus exista! Achava que sim. Agora acho que não. Deus,
sendo Deus como o povo quer que Ele seja, não ia deixar que uma criança
inocente morresse de fome em tamanha miséria. De duas, uma: ou Deus não existe,
ou só existe para os ricos, pra mim não existe, porque eu sou pobre. Nasci na
pobreza e nunca soube o que fosse ser rico no mundo.
A Mamãe jogou o seu infalível catolicismo na ponta
da língua:
- Tenha paciência...
moço. Tudo que Deus faz é bem feito. Sei que seu filho morreu, e que o
senhor muito sente em o haver perdido. Mas, no mundo, de tudo se vê. E mesmo ele
foi em bom tempo. Era batizado. Já era cristão. A esta hora, está com os outros
anjos da Corte de Deus.
- Mas eu não me conformo. Não há quem me faça
conformar, e ninguém se conformaria estando em meu lugar. Antes houvesse sido
eu. Iria satisfeito.
- Nada disto. Se o senhor morresse hoje, tanto ele
como os outros e sua mulher se acabariam de fome amanhã, ou depois. Sei que
nada tem para lhes dar. Mas, não queira saber, nem em sonho, o que sofre uma pobre
viúva carregada de filhos, especialmente numa época como esta.
- Eu bem sei, siá dona, que tudo que a senhora está
dizendo é uma pura verdade. Mas o que eu não posso é ficar calado com uma coisa
desta.
Virou-se para o Papai e pediu uma esmola de sete
palmos de terra. E eu fiquei assustado com aquela história. Pensei o que
pudesse ser uma esmola de sete palmos de terra e não compreendi. Depois,
atribuí que ele queria ser nosso morador. Iria ter mais cinco meninos para o meu quadro de futebol. Mas achei logo
que sete palmos de terra não davam para se fazer uma casa. Só se fosse uma
casinha mais pequena que a de Madrinha Clara. Fui para o oitão e medi sete
palmos. Não. Não podia ser. Mas, que o meu palmo era pequeno, pensei. Os
pequenos nunca podem julgar os grandes por si, porque os grandes são diferentes
dos pequenos em todos os pontos de vista. O velho seria nosso agregado, e mais
cinco jogadores entrariam para o meu time.
Só depois que cavaram a sepultura, lá nas “Covinhas
dos Anjos”, foi que eu compreendi o que era esmola de sete palmos de terra.
A tipóia, atada numa estaca, tentava balançar mas
não podia, de tão esticada que ia. Ninguém gritou irmão das almas! Não sei se porque o corpo era maneiro, ou se
porque sabiam que em tempo de Seca não se encontra um irmão das almas para
remédio.
Arriaram a bagagem. Desataram as cordas e, sem
nenhum protocolo, jogaram os punhos da rede na cara do pequeno defunto.
Botaram-no na sepultura. Uma mulher magra gritava dentro duma carga de nervos,
como se quisesse proibir a cena. Mas ninguém deu assunto aos lamentos da mulher.
Meteram terra na cara do menino, até que ficou rente – uma sepultura do mesmo
jeito das outras.
Lembrei-me duma história que a velha Madrinha Clara,
minha ama preta, contava. Lembrei-me, e tive a impressão de que depois ia
nascer capim naquela sepultura, e aquele menino ia cantar:
- Negro de meu pai,
não corte meus cabelos,
que a madrasta me enterrou
pelos frutos da figueira
que o passarinho comeu.
Chô, passarinho!...
A Mamãe acendeu duas velas de cera de carnaúba nas
extremidades do túmulo.
O retirante pendurou os olhos compridos na estrada,
e convidou a velha para se irem. A esta altura, quando eu já perdia a esperança
dos cinco jogadores novos para o meu time, a mulher abraçou-me, beijando-me a
cabeça, numa voz claudicante:
- Deus te proteja, meu santinho... São Francisco do
Canindé há de ajudar aos teus pais, para que eles sempre possam servir aos
miseráveis que passam por aqui.
Eu sentia vontade de chorar. Não sabia por que
sentia vontade de chorar, e, não sabia também por que sentia e não chorava..
Mas tinha certeza que o menino ia cantar:
- Negro de meu pai,
não corte meus cabelos,
que a madrasta me enterrou...
Celso Barros Coelho (1922), nasceu
Heloísa – minha professora
A sua
imagem me acompanha sempre. Heloísa de Gusmão Castelo Branco. Veio de São Luís
com sua irmã Lolô. Depois de minha tia Lourdes, que me alfabetizou, foi minha primeira
professora, por um ano apenas. Marco sentimental de minha vida, presente à
minha lembrança nos seus traços de beleza.
Se me fosse dado procurar um modelo ao
qual associasse sua imagem, a escolhida seria a criação genial de Leonardo Da
Vinci, a ‘Virgem das Rocas’, que se contempla no Museu de Louvre. É para esta
que a visão da infância me conduz, projetando-a na sua simplicidade, na sua
ternura, no seu carinho.
O menino humilde e sonhador, nos seus
nove anos, talvez lhe tenha despertado algo de diferente. Quem sabe se não
adivinhava os passos que eu iria dar?
Não me recordo do toque de sua voz,
mas guardo a sua imagem, semelhante à da Virgem do Museu de Louvre, as faces
rosadas e alegres, forte brilho nos olhos, como se com eles quisesse iluminar meu
destino.
Dela nunca me esqueci. Entrou em meu
ser espiritual para nele permanecer como um símbolo, como um foco de luz. Essa
luz que nasce em forma de centelha das letras do alfabeto, na leitura dos
primeiros livros, onde começamos a unir razão e sentimento naquele ritmo
traçado por George Santayana ao conceber a razão como a harmonia das paixões.
Somos sempre dominados pelas paixões,
nunca por uma só paixão. Paixão pela verdade, pela beleza, pela arte, pela
vida, pelo sonho, pela aventura, pelo amor. Mas quando a paixão por tudo isso
domina os homens, a forma de equilíbrio e o uso da razão.
Minha paixão da infância, nos idos de
1931,
Olho a casa onde era a escola.
Separada da casa de meu avô por uma rua, que hoje são ruínas, as ruínas do
armazém de Teixeirinha.
Agora a recomponho na visão do
passado, em busca da infância perdida, mas da qual emergem para mim duas figuras
que me prenderam sempre: minha tia Lourdes, ainda viva, e a professora Heloísa,
que vive em mim, na minha lembrança, e a quem tento em vão procurar, para saber
para onde se foi, onde viveu, o que fez, se ainda vive.
Uma vaga notícia me informa que vivera
em Brasília, funcionária da Câmara dos Deputados. Terá sido? Então pisamos de
novo o mesmo solo, contemplamos a mesma paisagem, olhamos o mesmo céu.
Ando à sua procura. Não para vê-la,
mas para identificá-la em algum lugar por onde passou, deixando sinais de sua
presença, de onde seria ainda possível recolher os seus gestgos, rever a sua
imagem e voltar àqueles idos remotos
William Palha Dias (1918) nasceu em Caracol,
PI. Magistrado, historiador, cronista e romancista. Estreou tarde, como uma boa
parte dos escritores de sua geração. Caracol
na História do Piauí, 1959, é uma estreia
excelente, monografia escrita em estilo sóbrio, narrando guerras no interior do
estado, com estilo que tem sabor de ficção, embora suas ações tenham sido reais.
Com Fontes Ibiapina e Alvina Gameiro, William Palha Dias forma a tríade do
regionalismo piauiense. Não fosse o limite que se impôs, abeirando-se da sua própria fala, teria realizado uma obra
ficcional mais compacta. Verifica-se, dessa forma, que o novelista de Endoema (1965), E o Sibarita Casou (1978), Os Irmãos
Quixaba (1979), Mulher Dama, Sinhá Madama (1982) e Alcorão Rubro (1994) se sente mais à vontade em Memorial de um Lutador Obstinado, 1997,
tal como
Em toda sua obra de ficcionista Palha Dias prefere
dispensar alguns aspectos da ficção – o aprofundamento psicológico, por exemplo
– para fixar-se no factual: a história e
as funções sociais dos personagens. O escritor Moura Lima observa, por outro
lado, que “Palha Dias revela domínio
estilístico na estrutura frasal bem elaborada pelo ritmo, pelas expressões e
pelas preciosidades sem par da fala do povo”.
Como ficcionista,
William Palha Dias começou com o romance Endoema. Extrato do primeiro
capítulo pode ser lido a seguir:
Do peitoril largo, depois de haver deixado a rede de
caroá enganchada nas escápulas do alpendre espaçoso, Zé Concliz ouvia atento as
ordens severas do coronel Rosendo:
- Zé Concliz, prepare dois burros para uma viajada
bem longa. Será de madrugada, após a chegada de Alfredo. Não suporto mais as
insinuações capciosas daqueles mamelucos com o fim de agarrar o meu inescrupuloso
filho e atraí-lo cada vez mais para uma união tão desigual com Matilde que,
apesar de bonita, não é de nossa linhagem. Somos fidalgos e, por isso, não
concordo em tal desatino.
- Está bem, coronel, na hora certa os burros estarão
arreados. Eles se encontram um tanto seleiros, ontem mesmo, eu e João Preto
demos umas voltas e os bichos estão doidos de bons. Podem tirar vinte e cinco
léguas diárias.
Dona Ornelinda, esposa do coronel, banhando-se em lágrimas
pela resolução apressada do marido; mas que, pelas circunstâncias, acertada, na
farta dispensa arranjava os alforjes com provimentos indispensáveis à longa
viagem do filho, enquanto que dona Benedita, tia Dita, como era chamada pelos
sobrinhos, metia numa maca os pertences e roupas de Alfredo.
Enquanto se maquinavam na casa grande esses
preparativos, à revelia de Alfredo, na residência de seu Amâncio Medrado, a festa em honra ao padroeiro
da casa se animava, sendo que, depois da novena, que naquele dia era a última,
teria lugar a costumeira dança.
E o romance Vila de Jurema, seu livro mais conhecido, termina assim:
Por muito tempo o ar da Vila que nascera sob o signo
da borracha de maniçoba se encontrava impregnado da borrasca de toda aquela tormenta.
Todavia, muito tempo se passara sem que
governo nenhum se atrevesse a
impor obediência aos tão sofridos Bernardes, que, inegavelmente com seus atos de bravura, escreveram um
capítulo de destemor para a história duma região, para a história de uma Vila
nos confins perdidos de um sertão bruto.
Álvaro
Ferreira (1893 – 1963), nasceu em Teresina - PI. Era cirurgião-dentista, formado
Os homens desceram as montanhas e nadaram o rio,
após a fuga do mar. Do nascente traziam a flecha dos combates travados no
litoral, em defesa da terra invadida. Da outra margem do rio, chegavam
aguerridos e desconfiados, como a sondar a natureza, sempre misteriosa e
inabordável nas suas manifestações.
Encontraram-se nas várzeas, limitadas pelas serras,
flanqueadas pelo caudal, a oeste, em marcha, atraídos pelas vagas que rolam ao
norte.
Era uma paisagem triste. Não havia, aqui, o verde
dominante do poente, - naquele Eldorado
que a lenda coloriu com os sonhos dos navegantes, vindos de outras bandas. A
palmeira, que se perde no longe dos horizontes, fixara-se no solo, para marcar
a escala progressiva das gerações vindouras. De raro em raro, um agrupamento
vegetal, denunciando a presença de rios que o clima martiriza nas longas
estiagens. Mais adiante a chapada agreste. A caatinga, com o aspecto de seres
doentes, completa o quadro que, na monotonia das cores, cansa os olhos, nos
dias de muito sol e nas noites escuras. As alvoradas são incêndios que aumentam
nas horas que passam, até os primeiros instantes de um crepúsculo prolongado.
Ferida pelo calor, a terra apresenta a fisionomia de quem muito sofre, nas
rugas dos terrenos desnudos.
Na tristeza do meio físico, os homens viveram os
seus dias felizes. Donos da gleba, percorriam-na em todos os sentidos, caçando
e pescando. Mal a esfera se iluminava, e
já andavam pelos campos e pelos mananciais, os destemidos habitantes da
planície, surgida das águas, em tempos que se perderam no emaranhado da
História. Quando vinham as trevas, paravam a caminhada, deitando o corpo bronzeado
sobre a temperatura do sítio viajado.
Era um cuidado que tinham voltar cedo para a casa de
folhas e paredes de cipós onde, às noites, dançavam e cantavam, festejando
a vitória do trabalho, a liberdade, em
toda a sua plenitude. E só mais tarde, ao apagar da lareira, o silêncio caía
por entre os rudes folgazões.
O vento, que o mar ainda manda, passava pelos descampados e penetrava as
raras florestas, sacudindo as plantas e derrubando as folhas que o verão
queimava. Vinham as chuvas violentas, com descargas tremendas, danificando os
fracos vegetais e abatendo animais, alimentando-se das ervas dos prados. O
homem sentia a fúria dos elementos, mas confiava em Tupã, em seu supremo poder que se refletia,
abrandando o rigor das tempestades.
Assim, eles viviam confundidos nas coisas, e como
humanidade imatura. Eram venturosos porque desconheciam os meandros da vida que
outros levavam. Não tinham encargos, apenas a necessidade da própria subsistência. Só.
Um dia, porém, alguma coisa de estranho perturbou a
paz daqueles viventes. Prepararam-se para a reação. Juntaram o material de
guerra há tempos atirado a um canto. Já agora, o material bélico devia ser
suficiente. Levaria na ponta o veneno fatal. Entenderam-se bem nas
conversações. As providências estavam tomadas. Os mais atilados auscultaram a
terra. Ouvido aplicado àqueles lugares amados, por onde tanto andaram atrás da
caça arisca, anunciou a grande e irremediável desgraça.
Escutaram, partindo de um ponto distante, vozes
parecidas com as suas, e mais o tropel de patas pisando a gleba ameaçada. Partiram
ao encontro do invasor. Travou-se a luta. E o senhor daquele mundo perdeu-o
para o que entrava. Todo o seu tesouro, tudo o que lhe pertencia, desde os
primeiros momentos, quando o mar fugiu, deixando a planície livre, agora passava às mãos dos invasores.
Mas o vitorioso saiu da batalha, com o sangue do
vencido a lhe correr nas veias, e nalma, a bravura dos fortes e a resignação
dos humilhados. São qualidades antagônicas que se combinam no caráter do indivíduo
que marcha para um destino qualquer.
A. Tito Filho (1924 - 1992) é o nome
literário de José de Arimathéa Tito
Filho. Nasceu em Barra – PI. Foi jornalista
fecundo e professor de mérito (língua portuguesa e literatura), além de grande
orador. Crítico literário, historiador, memorialista, cronista afinado com as
causas do povo, usava linguagem castiça, sem afetação. Uma das maiores inteligência
que o Piauí produziu, toda a serviço da cultura e das letras. Sua obra é
irregular e variada. Foi Presidente da Academia Piauiense de Letras por mais de
vinte anos. Começou a publicar livros em 1951, Combustível e Alimento é
o primeiro. Depois vieram O
Problema Social da Infância, 1952; Da Atualidade do Latim Vulgar,
1958; Viagem ao Dicionário, 1972.
Só em 1973 sai Teresina, Meu Amor,
livro que o tornaria mais conhecido e amado. Muitos outros viriam, mas o livro
de crônicas sobre Teresina continuaria sendo reeditado até 1991, às vésperas de
seu falecimento. Outros seriam Gente e Humor, 1974; Praça Aquidabã, sem Número,
1975; Sermões aos Peixes, 1975; Teresina,
Praças, Ruas, Avenidas, 1976; Crônica
da Cidade Amada, 1977; Governos do Piauí, 1978. Grande parte de sua obra está dispersa entre
artigos, prefácios, estudos nos jornais
e revistas, não obstante ter publicado cerca de 27 livros. A crônica Roteiro,
do livro Teresina, Meu Amor, cuja
obra o situa entre os renovadores da geração, é o melhor exemplo do seu estilo:
Aqui tens a praça Rio Branco, o coração comercial da cidade. De manhã,
mulatas, morenas, louras, casadas e solteiras, brotos, coroas e matronas
circunspectas praticam o entra-e-sai, visitando as dezenas de casas comerciais
existentes na praça e nas ruas vizinhas.
Senhores sisudos, estudantes,
gente de todo naipe – paqueram, conversam, trocam dedos-de-prosa, contam as últimas
sempre com um aumentozinho – o aumentozinho malediscente. Há encontro de
poetas, de jornalistas, de intelectuais.
De tarde, a partir das 16 horas, a movimentação é intensa. De noite, a
praça fica deserta, como cidade abandonada de cinema de bandido norte-americano.
No rumo do rio Parnaíba, indo-se da praça Rio Branco, chegarás ao
Parque da Bandeira – bem cuidado, bem cercado, paraíso da criançada e convite
ao descanso. Pares de namorados, nos
bancos, dão mais graça à festiva paisagem verde. Defronte do parque, o Hotel
Piauí, linhas modernas, elegante, luxuoso. Um dia percorri todos os seus aposentos,
mostrando-os a casal amigo que se acompanhava de uma senhora viajada,
recém-chegada com o esposo para habitar a cidade. E ela me disse com riqueza de
sinceridade:
- Nem em Paris vi hotel como este.
No final do Parque da Bandeira – o
Parnaíba – o velho monge de barbas brancas – como cantou Da Costa e Silva. Rio de água boa. Junto às suas margens, a
gente ainda vê, como no outro rio, o Poti, as lavadeiras batendo roupa. Algumas de
seios à mostra. Outras quase nuinhas como nasceram. Quando a gente era menino
ia ao Parnaíba e ao Poti para ver peito de lavadeira. E a mãe de cada olhador recebia a respectiva
xingação.
Perto do rio Parnaíba, o mercadão ou mercado velho, também designado mercado central. Aí de
tudo se vende: carnes, peixes, verduras, frutas, sandálias, calças, lamparinas,
panelas, louça, meizinhas, beberagens eróticas, pós mágicos. Camelôs vendem
cura-tudo, literatura de cordel, alguns cegos recitam lamurientos versos de
arrecadar esmolas. E dezenas de restaurantes ao ar livre, com comida feita sob as
vistas do freguês, vendem os mais variados pratos, sempre apimentados: fritos,
sarapatel, buchada, panelada, mão-de-vaca, vísceras. Um arremedo dos mercadões
de Fortaleza e de Salvador. Um colorido especial à vida da cidade. Poderás encontrar no mercadão o sujeito que
vende maconha, o bicheiro, e as mulatas mais desconfiadas do mundo. E muito
chá-de-burro, o talentoso muncunzá.
Nunca deixarás de passar uma noite de
domingo nesta cidade afetiva, tranquila, pitoresca... Pois numa noite de domingo
admirarás a maior concentração de brotos
e coroas de que se tem
conhecimento desde a chegada dos navios de Pedro Alvares Cabral. Garotas de
todos os tipos e formatos fazem a noite dominical da praça Pedro II. Vem
vê-las. Os brotos ocupam uma parte da
praça, a outra parte pertence às
coroas. A paqueração faz o resto –
paqueradores a pé, paqueradores de
automóvel. Tudo originalíssimo, sem modelo noutras terras.
Vem!
Teresina te oferece vida nova em cada esquina, em cada praça, em cada rua.
Alvina Gameiro (1917 – 1999) nasceu em
Oeiras – PI. É romancista, contista, poeta e pintora. Formada pela Escola
Nacional de Belas Artes e graduada na Universidade de Colúmbia, Estados Unidos.
Professora de português e inglês em vários educandários do Piauí e Maranhão. Escreveu seriados para a TV Ceará, Canal 2,
de
É uma obra na qual
se observa ligação profunda com a terra e as raízes, características dos
chamados regionalistas. Entretanto, seu estilo natural, elegante,
permanece bem comportado até sair Chico
Vaqueiro do Meu Piauí (quando apresenta boa dose de criação linguística,
sendo louvado por A. Tito Filho e
Martins Napoleão). Mas surpreendente mesmo é em Curral de Serras, obra
monolítica, segura, onde sobressai o ritmo popular da redondilha maior, num
exercício profundo de captação da antiga língua portuguesa no discurso do
sertanejo, com muita originalidade, só encontrando paralelo
Assim dá início:
Na beira da corrente, matutava,
espiando o viço do capinzal, bebedor daqueles frescos de orilha de riacho, ‘inda
com uma chave d’água já no fim de setembro, mês danado de seco.
Sabe, Doutor?
Desne que o mundo é mundo, capim é cabelo da terra, cobertor do chão,
esperança dos vivos e, quando cai chuva e ele verdece, é nem ver um bilhete da
saudade... Agora, aqui, eu apago. Alumio adiante, apois, desvio só serve mesmo
é por mor de arredar a gente p’ra fora do caminho, encompridando viagem. Se
avexe não, Doutor. Quando bem nem vosmicê esperando ‘teja, esbarro no mesmo ponto e emendo na saudade
que acabo de suspender.
Entonces, como ia dizendo, ‘tava
apeado, montaria matando sede numa isca de riacho, eu preguntando a capim quantos
palmos ele tinha e capim informando que boca de gado por ali não pastava,
fazendo estrago. Nesse comenos, um homem apareceu, pensando que no repente..
Engano do cujo. Avistado já era, ladeando meu piso bem por dentro do mato, no
desmontado, puxando um cavalo castanho-claro pelo cabresto, ‘inda na estrada
mestra em muito antes d’eu ganhar rumo d’água.
Feita a saudação,
escanchou ror de perguntas, grudadas nas rédeas da minha vida. Escorei o
caldo um tempão, esguardando o intrometido. O homem era fogoió sardento:
cearense, judeu por inteiro ou cruzado com cristengo; tinha os olhos de cavalo
gazo: confirmação de gringo; pestanas roídas: sapiranga antiga ou tracoma
adiantada; beiços esfolados: lida com o
sol, cachaça ou morrinha de fígado. Da cabeça desci. O pescoço dele era grosso, enterrado: sujeito
de fôlego curto; o tronco alargado mas de muito pouca altura: sinal d’alguma
força; pernas e braços espichados à moda de aranha: vagaroso sacador de armas.
Ali, com possibilidades e desvantagens do homem já seguradas
na minha mão, falei:
- Posso tomar ciência por mor de que os feitos e
rumo de minha sorte chamam interesse de vosmicê?
- Desculpa, ‘tou querendo merecer por via do
adiantamento, seu moço, mas porém a espiculação corre de ordem de minha patroa.
Ela mandou caçar homem branco, forte, munido de coragem, e se alguma beleza
estampada tivesse não fazia desmerecimento.
Parou bom pedaço, procurando jeito d’emendar a
explicação e acabou com este despacho:
- No aberto da cor, no corte da figura, no desassombro
da fala amostra vosmicê o talho da encomenda.
Gastei silêncio redobrado, especando cisma, enquanto vasculhava a forma da cara do
fogoió, por razão do tipo não me encarar. Guardava vistas fincadas no molhado do
chão, adonde o bico da alpercata fuçava lama.
Seu Doutor, quem descarrega nos pés não tem amarra
nos nervos... Foi o qu’eu maginei logo. Ai, deixei o quieto se aquietar bem e
falei de pipouco, por laçar a vista do cabra:
- Denegar querendo, quem s’atreve a me levar
sojigado?
O espirro da pregunta assustou o estranho, que
m’espiou atravessado. Esbarrei desconfiança nele e me botei preguntando a meu
juízo se sobrosso do fogoió era cobrado por efeito da tirada ou parença doutra
cara nembrante a minha. Seria que daquela vez a sorte me levava p’r’o rumo da caça, ou tudo qu’eu maginava
era só suspeita desfundada, dum ente farto de correr mundo, s’agarrando com o
desejo de dar com o procurado?
- Não querendo ir, o moço não vai. Emenda caminho.
Pronto! Aguardo outro cavaleiro.
Ficou mastigando embaraço, trancado em soturno e
demorou foi tempo p’ra afroixar mais um
tico do resguardo:
- Quem se aventura nos dentros desta solidão, traz é
motivo possante na garupa... e se é que algum vivente vosmicê anda buscando, dê
o nome, a proveniência com os sinais, qu’eu sabendo, digo.
Lourenço Campos (1913–1973), nasceu em Picos
-PI, onde viveu a maior parte de seus dias, e faleceu
Minha terra
Fitam-te
sempre, ó pedra de brilhante,
Os
olhos tristes do meu pensamento!
És
linda estrela a cintilar distante,
Sob o
lençol azul do firmamento!
Duas
igrejas se contemplam e oram.
Cantando
passa o rio entre o rosário
Dessas
roças de arame que te cercam,
Emoldurando
o colossal cenário.
Tuas serras azuis semelham bando
De ondas de mar por Deus petrificadas,
Joelhos em terra, para o céu rezando...
Cidade,
emblema verde da esperança!
Daqui
te envio lágrimas roladas
Sobre
a saudade rósea da lembrança.
Gotas de luz
Lá do
Céu tão bordado de estrelas
Saltam gotas de luz pelo ar...
Passa a lua no mar do infinito
Qual jangada de espelho a nadar.
Pedacinhos de nuvens bem alvas
Se transformam em carneiros do além
E minha alma a voar pelo espaço
Se transforma em carneiro também...
Como é belo sentir a poesia
Destes versos que agora compus,
Esquecer as misérias da vida
Contemplando essas gotas de luz.
Adail Coelho Maia (1909–1962) era poeta
sentimental, excelente no soneto. De seus sonetos, foi publicada apenas uma
brochura, totalmente esgotada. Nasceu
Pensando
simplesmente no dinheiro
Vive o rico usurário, noite e dia.
Se alguém lhe bate à porta, traz primeiro
A nota do que tem por garantia!
Por quase nada, tudo ele avalia
Num gesto de sagaz aventureiro;
E em pouco tempo, cheio de alegria,
Leva do pobre o traste derradeiro.
O seu Deus é a riqueza conseguida,
Com ela pensa em se livrar do inferno
Porque com ela triunfou na vida.
Mas um pesar em
seu viver influi,
Saber que morre e o desespero eterno
De não poder levar o que possui.
José Expedito Rego (1928 - 2000). Médico, jornalista,
crítico literário, poeta, romancista. No início escrevia apenas poesia e
publicava nos jornais, produção que depois foi enfeixa em livro com o título de
Horas sem Tempo, 2000. Notabilizou-se
com o romance histórico Né de Sousa, depois reeditado com o subtítulo de Vaqueiro e Visconde, em 1981. Outros: Malhadinha, 1990; Vidas
em Contraste, 1992, além de um livro de contos: Estórias do Tempo Antigo,
Do nascimento de um grande homem
Né Martins caminhava impaciente, do lado de fora do
oitão da casa, ainda vestido com as perneiras de couro e o guarda-peito. Tirou
apenas o gibão, enquanto engolia o caldo quente que lhe tinha preparado a negra
Vicença. Através da parede de taipa, podia ouvir os gemidos baixos de Donana
Rodrigues. Era o primeiro filho que nascia. Escutava também as palavras de
encorajamento de Josefa, a parteira, mulata de olhar vivo, acostumada às noites
perdidas, não tanto com a assistência aos partos, que naquele tempo e naqueles
confins se davam raros, mas com os amores de coração, o cafuso Joaquim, de
olhar mais brilhante do que o dela. Josefa tinha mais de trinta anos, era rija
de corpo e quente de amor. Né Martins bem que a olhava guloso, às vezes. Aprendeu
de pouco a arte de partejar com sua tia velha Catarina, que morreu no inverno
passado. Ela própria teve dois filhos pegados pela Catarina e foi sua melhor
lição. Donana mostrava-se cheia de acanhamentos, não queria deixar que Josefa
desse ao menos uma olhada, para ver como ia a cousa. Pelo jeito ainda estava
longe.Primeiro parto era assim mesmo.
Lá fora, Né Martins regulava os passos pelos gemidos
de Donana. Andava mais depressa quando eles aumentavam e os diminuía quando a
mulher calava. De vez em quando, paarava e olhava o tempo. O inverno comedçou
cedo no ano de 1767. No dia 8 de dezembro havia já pasto garantido para o
gado.Choveu naquela tarde mesmo e o riacho botou uma bela cheia. Os bezerros
pinotavam alegres junto à cerca do curral, berrando pelas vacas, que respondiam
com um mugido estirado e baixo.Formigas de asa se escondiam pelas palhas ainda
molhadas da cobertura da casa. Estava acabando de escurecer.
A fazenda Serra Vermelha tinha sido doada por
Valério Coelho Rodrigues, pai de Donana, velho português que se casou com uma
senhora paulista e vivia ali perto, numa das maiores propriedades rurais da
região. Amansava cerca de quatrocentos bezerros. Serra Vermelha haveria de ser
grande também, pensava Né Martins, homem de trinta e muitos anos.Veio novo de
Portugal, mas demorou algum tempo pela Bahia. Resolveu tentar a vida nos
rincões nordestinos, trouxe carta de recomendação para o bastardo Coelho
Rodrigues, trabalhou a princípio com o velho, na fazenda deste. Foi quando
começou o namoro com Donana, bem mais nova que ele. Ambos ganharam com o
casamento. Donana era rica, porém não era bonita. Ele, pobre, tinha saúde,
disposição para o trabalho e, nas veias, sangue português limpo. A doação da
fazenda veio a calhar. Agora lhe nasceria o primeiro filho que, se fosse
macho,deveria chamar-se como o pai, Manuel de Sousa Martins, conforme a vontade
de Donana. Para ficar diferente do genitor, que era conhecido de todos por Né
Martins, o menino ganharia o nome na intimidade de Né de Sousa.
Né Martins estava cansado. Passou o dia todo andando
a cavalo, em companhia do vaqueiro Afonso, a ver se encontrava umas novilhas
arredias, que, pelos cáculos, andariam bem amojadas. Não encontraram as reses,
levaram muita chuva e, ao chegar em casa, esperando estirar o corpo na boa rede
tapuiarana, encontrou a mulher no rodeador.
Os gemidos agora pareciam mais fortes e amiudados.
Josefa atarefava-se lá dentro. Né Martins estava cada vez mais impaciente. Veio pela frente da casa, entrou na varanda,
onde o vaqueiro se havia sentado sobre uns arreios, e a um canto.
- Que dia é hoje, Afonso?
- Hoje é sabo,
seu Né.
- Sábado?
- Inhô
sim! Dia bom pro minino nascê.
- Dia bom, por quê, Afonso?
- Diz qui
minino macho, qui nasce dia de sabo, tem de sê grande.
Né Martins continuou a caminhada, agora na varanda. As
esporas retiniam, indo e vindo, pelo chão de barro batido. Junto à porta do
corredor, acendeu-se o morrãoenrolado de cera de abelha. Olhando para o interior,
viu luz na dispensa. Foi até lá e encontrou Josefa.
- Como vai a dona?
- Tá perto
de nascê o minino. Tou aqui percurando um pouco de manteiga.
- Para que manteiga? – sobressaltou-se Né Martins,
pensando em furto da mulata.
A parteira encabulou. Não podia dizer ao patrão para
que servia a manteiga. Né Martins insistia, já zangado:
- Para que manteira, negra?
- Seu Né, é pra ajudá
no parto de Donana. Ela tem qui bebê
um pouco, pra criá mais força... E a gente passa também
nas parte... pro minino nascê mais depressa...
Agora foi a vez de Né Martins encabular. Deixou a parteira
na despensa e voltou para a varanda.
(...)
- Toma o lençó,
morde cum força!
Donana meteu a ponta de lençol entre os dentes e
mordeu, como ensinou a parteira, o rosto congesto, as veias do pescoço para arrebentar.
Josefa conheceu que havia chegado a hora. Aquele repuxo grande não podia ser
outra cousa. O menino nascia, Sentou do lado da cama e esperou. Ralmente, não
tardou que o rapaz estrebuchasse e berrasse, sobre os panos limpos. Josefa
limpou-lhe o nariz e a boca, amarrou e cortou o umbigo, pôs a pucumã,
envolveu-o nos cueiros. Passou a cuidar da mãe. Não tardou que viessem as
companheiras. Chamou a mucama para
ajudar nas arrumações, agora que o pior havia passado.
Don’Ana Rodrigues de Santana estava composta e
arrumada, quando Né Martins entrou radiante, para ver o recém-nascido. Era
homem, como tinha esperado. E chegou em paz! Donana sorria da cama, o menino do
lado, muito vermelho e amassado, respirando manso. Num canto do quarto, Josefa
colocou um defumador de estrume de gado, com folhas aromáticas. Espantava as
moscas e os maus espíritos.
Né Martins sorria, contente.
Clóvis Moura (1925 - ?), nasceu em
Amarante-PI e faleceu
O
quadrilátero boi
tem
o mugido e tem aspas.
O
cabo ficou sobrando
na moldura projetada.
O boi é pedra e mais olhos:
olhos que doem no poente.
Rumina os ocasos mansos.
Tem no olhar um ponto e vírgula.
O boi preto vem com chifres
vermelhos para o curral.
Nas ancas há movimentos
ritmicos para o punhal.
O quadrilátero boi
foi para lugares
de cal e pedra, cardeiros,
distância e sol. É um dado
jogado, quando é malhado.
Quando é novilho parece
que está cheirando o horizonte.
O boi engole o curral
para encurtar a paisagem.
Ficou somente no córrego
o salibre que com barro
foi por ele absorvido
à tarde no lambedor.
O boi ferrado é um limite,
é boi de propriedade.
O quadrilátero boi
não se parece a machado,
não tem perfil de adaga,
não se assemelha a punhal.
Antes parece uma casa
acachapada: os dois chifres
são dois pássaros pousados
olhando os donos passados.
Os pés plantados na terra
Parece que esperam o mijo.
O boi muge a paisagem.
João Emílio (1937 – 1995), nome pelo qual ficou conhecido literariamente
João Emílio Falcão Costa Filho, nascido em Teresina e falecido em Brasília, no
exercício de sua profissão. Foi essencialmente jornalista político. Nas horas
vagas praticava o conto e a crônica com beleza e simplicidade, quando se voltava
para a terra de origem. Confessava que entre uma viagem à Europa e umas férias
na fazenda, nas redondezas de Teresina, muitas vezes tomava o rumo da última,
para reabastecer–se da força telúrica. Estreou com Aleluia, 1977; depois
vieram: Crônicas, 1987, e O
Andarilho, 1989, o primeiro e o último de contos. Trabalhos seus foram
incluídos em diversas coletâneas, inclusive Piauí: Terra, História e Literatura, 1980.
Carlos Castelo Branco (1920 – 1993). Jornalista,
com especialidade na área política. Foi um dos maiores jornalistas brasileiros
do seu tempo. Viveu mais fora do que no Piauí, mas nunca se desligou de sua terra,
sua gente. Era membro da Academia Piauiense de Letras. Contista, romancista, cronista, pertencia
também à Academia Brasileira de Letras. Na literatura ficou famoso com um
livro, Continhos Brasileiros, 1952,
sua estréia, que não quis reeditar. Depois da publicação de Arco do Triunfo, romance, em 1959,
desgostou-se da literatura. Tudo o mais que escreveu classifica-se como artigos
e ensaios políticos, salvo as crônicas de
Retratos e Fatos da História Recente, 1994.
OUTROS ESCRITORES
Estes são os que se
ausentaram longamente da terra, por isto pouco produziram ou foram menos
divulgados. Sua influência foi menor na literatura piauiense. Mesmo assim são
aqui lembrados:
Osvaldo Soares do Nacimento (1930 – 19..?)
nasceu em Amarante – PI. Poeta e romancista. Formado em Direito;
Promotor público no Piauí, técnico
Moura Rego (1911–1988), nome artístico
de Raimundo de Moura Rego. nacido em
Matões-MA, Poeta, cronista, romancista e
músico. Jornalista e funcionário público federal. Publicou: Trovas, 1942; Gritos
Perdidos, 1944; As Mamoranas Estão Florindo, romance, 1985; Notas
Fora de Pauta, crônica musical, 1988, e deixou inédito um volume de contos
regionais.
Antônio Sampaio (1923), nasceu em
Esperantina – PI. Professor, poeta, historiador, romancista. Obras: Reminiscências, 1964; O Velho Samuel, 1965, e, anteriormente,
Esperantina
à Luz da História, s/data.
Cândido Carvalho Guerra (1921), farmacista, professor,
poeta, ficcionista. Publicou: Enxurrada
do Gurguéia, 1956; Cânticos
Tropicais, 1986; Maria da Soledade, 1994, este publicado
pela Fundação Cultural Monsenhor Chaves, Teresina.
J. Ribamar Matos, nome literário de José
Ribamar Matos (1946 -1974), Obra: Poeira
de Estrada, 1984 - uma coleção de suas poesias publicada pelo Instituto
Histórico de Oeiras, Piauí.
Júlio Romão da Silva (1917), jornalista,
dramaturgo, ensaísta, etnólogo, especialmente com Memória Histórica sobre a
Transferência da Capital do Piauí, 1952;
A Parábola da Ovelha, 1963; A Mensagem do Salmo, 1967; O
Letreiro Luminoso, 1998, conto. Membro da Academia Piauiense de Letras.
Pedro da Silva Ribeiro (1930), formado em Direito,
funcionário do Trbunal de Contas da União, aposentado. Mora
Ribamar Ramos, nome literário de José de
Ribamar Rodrigues Ramos (1914 - 1994), jornalista, professor em Floriano, depois
bancário, indo morar no Rio de Janeiro, onde se aposentou em 1974. Obra
póstuma: Angústia e Êxtase, l983,
Secretaria de Cultura do Piauí.
J. Ribamar Oliveira (1921 – 1995). Romancista e
contista. Um dos fundadores do Clube dos
Novos – movimento cultural da
geração. Só veio a publicar livros muito
tarde: Porto da Imaculada Conceição dos
Marruás, 1979; João Burundanga,
1980; Um Rio de Águas Barrentas,
1989, e A Guerra do Jenipapo, 1993.
Vítor Gonçalves Neto (1925 – 1989). Jornalista, cronista,
contista. Publica conto na Antologia de Contos Regionais Brasileiros,
1951, organizada por Pinto de Aguiar, na Bahia. Participa também da Antologia de Sonetos Piauienses,
de Félix Aires, 1972. Livros publicados:
Conversa tão somente, 1957,
crônicas, e Roteiro das Sete Cidades, 1963.
Juith Santana (1924 –1988). Folclorista,
poeta e historiadora. Livros publicados:
Salmos do meu Destino, 1969; Piripiri, 1978; Parnaíba, 1983; O Padre Freitas, 1984; História
Alegre de Nossa Gente, 1986.
TEATRO
Francisco Pereira da Silva (1918-1985), funcionário da
Biblioteca Nacional, Rio, mas natural de
Campo Maior – PI, fazendo parte dos seus estudos em Teresina (ginasial), indo
cursar o clássico
Este é o início da
peça:
Um grande lençol branco que muda de forma para
sugerir – ora, uma rede de embalo, ora as velas de um saveiro. Música. No
proscênio estão Leopoldino, Aldora Estrela e Ariosto Marinho. Ao lado deste, um
samburá.
LEOPOLDINO –
Meu nome? Antônio Leopoldino dos Santos. A idade que eu tenho? É de 32 anos. Sim, sou casado. O nome dela é
Aldora Estrela dos Santos. Filhos? Tenho três. Isto é, agora são só dois, pois
Narcisa, a mais velhinha, sumiu. E eu sei? A gente sabe os caminhos da vida? Tudo é muito misterioso. Sabe não. Ninguém
sabe. Não. Deus mudou a vida-dela. Eu/? Não! Não senhor! É um alive! A
mulher? Então Aldora Estrela, tu tem a
coragem de dizer que me viu? Ah isso
não! Ela me viu foi na rede do copiar – me balançando com a sumida menina –
contando para ela aquele relato de um tal de Prìnspo Formoso. Se Aldora Estrela
até me disse assim: fez a menina dormir sem lavar os pés.
ALDORA –
Eu? Aldora Estrela. Tenho 30 anos. Sim, sou casada com este homemaí, que, por
desgraça, é o pai de meus filhos. Sim, tive três. Narcisa, a falecida, era a
mais velha. Tinha 10 anos. Agora são só dois: Alaor e Lael, o caçula. Narcisa? como
era ela? Ah, era lourinha, lourinha.
Excelência, ai quem me dera a minha filha de volta! Que eu me encontrasse de
novo com a minha filha. Seria um sonho. Um lindo sonho!
LEOPOLDINO – Pois pra mim a volta dela é garantida.
É uma certeza.
ALDORA (mostrando uma bonequinha) – Cacheada ver uma
boneca. Como esta bonequinha que era dela. Doutor eu juro! Minha gente eu juro!
Juro como ele deu a minha filha pra Janaína. Pois se ele prometeu?
LEOPOLDINO – Eu prometi?
MÚSICA, O LENÇOL SUGERE, AGORA UMA REDE NO PROFUNDO AZUL DA TARDE. E NELA VAI
DEITAR-SE LEOPOLDINO. SURGE NARCISA, QUE VEM SENTAR-SE NAS PERNAS DO PAI.
NARCISA – Conte de novo, meu pai.
LEOPOLDINO – Não te contei vinte
vezes? Agora vou contar a de Janaina.
NARCISA - Não, não quero a de Janaína.
LEOPOLDINO – Por quê? Você não gosta
da Rainha do Mar? De nossa Mãe Janaína? Ela é sua madrinha. Sabia?
NARCISA (com a mão na boca do pai) –
Pare. Conte a história do Prinspo Formoso. Conte mais. Conte. Ela é bonita.
LEOPOLDINO – Então o pai tinha três
filhas e ia fazer um viajão de léguas e muitas léguas.
NARCISA – Como era ele?
LEOPOLDINO – Era assim como eu, um
pescador, sendo que era Rei. Então a primeira filha, que atendia pelo nome de
Mafalda, pediu que ele, na volta, trouvesse para ela um vestido da cor do campo
com as fulores. Lianor, a segunda, pediu que ele trouvesse um vestido da cor do
ceu, com as estrelas.
NARCISA – E a terceira? A de nome Rosa
Flor? Já sei. Ela pediu um vestido cor do mar com os peixinhos.
LEOPOLDINO -
Podia ter sido, que no coração
dela é o que ela queria mesmo, era esse vestido, pois ela,
como você, Narcisa, gostava de tudo que era do mar.
NARCISA – Então, o que ela pediu?
LEOPOLDINO – Ela pediu uma flor.
NARCISA – E eu? Tinha pedido o
quê? Deixe eu ver. Ah, eu pedi a boneca
Mãezinha. Não foi?
LEOPOLDINO – Foi. Então Rosa Flor
pediu ao pai a flor mais linda do mundo! ‘E quando inteirou 6 meses / o Rei para casa
voltou / tristonho desconsolado / pela flor que não achou / logo pra filha
estimada / que nunca lhe incomodou’ Quando faltava uma légua / para em casa ele
chegar / avistou de muito longe /
NARCISA - ‘um sombrioso pomar / perto dum velho castelo
/ onde devia passar.
LEOPOLDINO – ‘Havia então uma
roseira / ornamentando o portão /
NARCISA – ‘ e uma rosa vermelha /
perfumava a região’.
DIGRESSÃO III
Movimento de Renovação Cultural
Antes de terminada a
década de 1950, o movimento se esgota
por diversos motivos: cansaço, dispersão de seus principais membros, abandono de alguns em busca de atividades
práticas e morte de outros.
O tempo social é
descontínuo, de modo especial para a literatura. Mas, mesmo assim, há de perguntar-se, então, como se daria a
transição entre os meridianistas e o
pessoal mais novo, da geração que se chamaria clipiana? Não seria tudo a
mesma coisa?
Não. A prova são o
tempo social, os figurantes e os textos de ambas as gerações. Nos anos 60, a comunicação entre o Piauí e o Rio
desenvolver-se-ia a tal ponto que,
facilmente, era possível ler tudo
o que fosse editado no Brasil, inclusive os jornais com seus suplementos
literários e culturais. O pensamento
existencialista dos franceses e da geração do pós-guerra já circulava com
velocidade, juntando-se à tendência memorialística da ficção piauiense (apontada pela crítica recente), ambos concorrendo para o desenvolvimento de um existencialismo
caboclo como clima de época. É possível que alguns ecos da Semana Nacional de Poesia de
Vanguarda, acontecido em
Minas, em agosto de 1963, chegassem até o Piauí. Em suas conclusões, aquele
movimento, representado pelos poetas do
concretismo e outros nomes expressivos da poesia nacional, assentava, entre
outros postulados renovadores, que “a
responsabilidade do poeta perante a sua época e, mais particularmente, perante a sociedade de que faz parte, não
deve permitir-lhe o uso da linguagem para encobrir a realidade, aceitando e
consagrando, como fixos e definitivos, padrões, formas e temas, que se limitam
a repetir”.
No
plano limitado da província, no primeiro momento, a ressonância da poesia
de Álvaro Pacheco é maior que a de H.
Dobal, que publicara apenas nos jornais e revistas do sul e na Antologia dos Poetas Bissextos, de
Manuel Bandeira. Na prosa de ficção, Fontes Ibiapina e O. G. Rego de Carvalho, líderes incontestes da geração passada,
exerceriam alguma influência nos escritores que começavam nos anos 1960, e
Paulo Nunes, na crítica, era seguido em letra e voz. E isto, se
foi muito bom por um lado, por outro colocava outra pergunta que as
gerações normalmente se fazem:
Como afirmar-se sem
contestação?
Para complicar
o quadro da geração que se iniciava, aparece no cenário, um divulgador da
estirpe do Prof. Raimundo Santana, político (foi Prefeito de Campo Maior – PI e
Secretário de Planejamento do Piauí), sociólogo e mestre: dedica-se com paixão
ao magistério – e funda o Movimento de Renovação Cultural (1960),
publicando os historiadores Odilon Nunes
e Mons.Chaves, na Revista
Econômica, além dos seus
próprios trabalhos de pesquisa, e
incentivando os escritores que surgiam na área propriamente literária: J. Miguel de Matos (Síntese Bibliográfia da Literatura Piauiense), A. Sampaio (O Velho Samuel),
Pedro Celestino (Sinais de Seca) e tantos outros, sem preconceitos quanto ao gênero,
pois a sua intenção era cultuar o Piauí, através de estudos econômicos, história,
crítica e literatura.
Raimundo Santana (1926), cujo nome completo é
Raimundo Nonato Monteiro de Santan, nasceu
Além disto,
laborando nesse terreno, reúne inteligências e especialidades e propicia
edições coletivas, sob sua direção, entre as quais Piauí: Formação, Desenvolvimento, Perspectivas, 1995, e Apontamentos para a História Cultural do
Piauí, 2003. Organizou criou e
mantém a Fundação de Apoio Cultural do Piauí, membro da Academia Piauiense de
Letras, entidade que dirigiu nos anos 200/2001, promovendo edições de livros,
revistas e conferências sobre a passgem do velho ao novo milênio.
GERAÇÃO DO CLIP
Em 1964, por simples
coincidência ou, quem sabe guiados pelo destino, reúnem-se, em Teresina, alguns jovens e fundam
uma associação literária, convencendo a outros que ler e escrever seria tão importante
para o desenvolvimento da sociedade quanto fazer política e discursos ou mesmo
fortuna nos negócios. Assim, Hardi Filho
(Cinzas e Orvalhos, 1964, livro
premiado em concurso público da Prefeitura Municipal de Teresina) e Herculano
Moraes (Murmúrios ao Vento, 1965), cada um com seu livro na mão, já editado,
juntam-se ao bancário Francisco Miguel de Moura, que acabava de chegar da Bahia,
trazendo debaixo do braço os originais de Areias
- livro que viria a ser sua estreia, no ano seguinte.
Não
obstante o desconforto por causa do abalo político-institucional de do ano,
parecia um tempo de calmaria na vida literária. Poucas pessoas trabalhavam na
área, mas isoladamente. Literatura parecia uma atividade distante, já no
passado. A turma-núcleo do movimento meridiano
debandou. Paulo Nunes, H. Dobal e O. G. Rego de Carvalho estavam no Rio, em Brasília, ou no exterior. O Piauí se ressentia também da ausência do
grande editor e divulgador de nossa terra e da nossa gente, tanto em literatura
quanto em economia e históra, Raimundo Santana, primeiro nos Estados Unidos e
depois em Brasília, como professor na UnB. Existia a Academia Piauiense de Letras,
nas mãos do velho Des. Simplício de Sousa Mendes, a qual, na crítica de O. G. Rego de Carvalho, se tornara simplesmente uma academia de desembargadores.
Então, aos jovens
Herculano Moraes, Hardi Filho e Chico Miguel juntar-se-iam o jornalista e historiador
Osvaldo Lemos, os contistas Geraldo
Borges e João Henrique Sousa, o romancista Castro Aguiar, o teatrólogo Tarciso Prado, os poetas e cronistas Honorato Rocha Costa,
Benoni Alencar, R. Vilarinho, Wagner Lemos, Cacilda da Mata, Rosa Castelo Branco,
Joaquim Soares e Francisco C. Viana, para a fundação oficial do Circulo
Literário Piauiense - CLIP,
em 9 de abril de 1967. No ano anterior havia saído Areias, de Francisco Miguel de Moura, e,
Numa avaliação do Movimento
de 1967, alguns anos depois, constata o historiador Herculano Moraes,
que “o Círculo Literário Piauiense – CLIP
era o instrumento através do qual a
mocidade intelectual da época discutia os rumos do país, os lançamentos
editoriais, os acontecimentos culturais, colocando a nu suas posições filosóficas
e o pensamento literário, em textos que eram ouvidos e lidos por todos.
Sonhavam com um país livre, onde o direito de dizer e pensar não fosse uma
utopia.”
Esse grupo
encarregou-se de invadir as páginas dos jornais e os programas de rádio (Herculano
Moraes e Hardi Filho, à época já faziam programas radiofônicos), para levar sua mensagem.
Recitais de poemas foram improvisados, com ajuda de Tarciso Prado e de outras
pessoas de teatro; peças foram encenadas;
um jornal – O CLIP – foi editado, sob a inspiração e ajuda de Herculano
Moraes. Naquele nº 1, entre outras matérias, saiu uma entrevista com o poeta,
romancista, jornalista e rábula Olímpio
Vaz da Costa Neto, feita ao vivo por aqueles ousados jovens do CLIP,
no Quartel da Polícia Militar, onde o entrevistado se encontrava preso por crime
de Imprensa. Não esquecer que a situação política do Brasil era das piores até
então: jovens, estudantes ou não, eram presos sob as mais rídiculas acusações. Dentre
os clipianos,
foram para a cadeia Geraldo Borges e Benoni
Alencar, assim também o Prof. Diogo Ayremoraes Soares, da Faculdade Católica de
Filosofia do Piauí.
Benoni Alencar
relata, em entrevista: “O regime militar,
no Piauí, interrogou e prendeu 62 pessoas. As autoridades militares foram
truculentas e sanguinárias, criaram um clima de
medo e terror; medo e terror porque
não se sabia se voltava vivo dos interrogatórios, que eram feitos de
madrugada” (Meio Norte, 28-12-1998). Alguns moços do Piauí desapareceram
misteriosamente.
Estudantes, artistas
e intelectuais eram perseguidos. Eugênio Rego resume, em matéria do jornal Diário
do Povo, de 4 de julho de 2007, as palavras de Tarciso Prado, ator e
testemunha ocular: “A repressão que se
intalou no Brasil a partir de 1964/1965, atingiu de cheio o Grupo Teste de Teatro, criado em 1965, cujo grupo viria a ser o
mais importante movimento estudantil piauiense. Os anos seguintes seriam
marcados pela repressão institucionalizada. Em
A música popular,
outra arte próxima da poesia, também fora
marcada pela ebulição da década. Narrando as dificuldades por que passaram os
jovens idealistas da música para criar as
duas primeiras bandas e apresentar os primeiros shows, eis o que
escreveu o poeta Alexandre Carvalho, radialista que começou a trabalhar na Rádio
Clube de Teresina, em 1963: “Início da década
de
Foi nesse clima que
nasceu o CLIP. E dali partiram
seus fundadores para a integração com os que vinham, mais novos ou mais velhos,
até com pessoas que aspiravam a Academia Piauiense de Letras, como J. Miguel de
Matos, assunto sobre o qual os clipianos
nem pensavam para si. Mas também não detestavam. Movimentar a cultura, tirar a
literatura do marasmo a que fora relegada era a aspiração. Fazer publicar os
livros que estavam engavetados. Promover concursos e lutar pela participação do
poder público no setor artístico. Dessa forma, suas ações resultaram na criação
da Secretaria
da Cultura, em 6 de dezembro
de 1973, e, posteriormente, na Fundação Cultural do Piauí, em 4 de
abril de 1975.
O CLIP não duraria muito tempo como
entidade, mas também nunca foi sepultado. Seus adeptos dispersaram-se, talvez
levados pela situação política do país - o Golpe Militar de 64, seguido pelo de
68 - mas desaguaria na oportuna criação da União Brasileira de Escritores do Piauí (UBE-PI), a 21 de outubro de 1973.
Da geração «clipiana»,
citem-se os dirigentes do movimento e outros que possuem obra definida, com boas referências
da crítica: Hardi Filho (do grupo, certamente, o nome mais expressivo na
poesia), Francisco Miguel de Moura, Magalhães
da Costa, Herculano Morais, Castro Aguiar, Gregório de Morais, Geraldo Borges e
Osvaldo Lemos.
POETAS E PROSADORES
Hardi Filho (1934), nome literário de
Francisco Hardi Filho, nasceu em Fortaleza – CE. Poeta, cronista, crítico
literário, jornalista. Chegou ao Piauí já funcionário público federal, onde
fundou raízes sentimentais. Ninguém é mais piauiense do que Hardi Filho. A Assembléia
Legislativa, num ato de justíssimo reconhecimento, concedeu-lhe o título de
cidadania. Secretariou o CLIP enquanto a entidade funcionou. Obras:
Cinzas e Orvalhos, 1964 (Prêmio da
Prefeitura Municipal de Teresina); Gruta Iluminada, 1970; De
Desencanto e de Amor, l983; Cantovia,
1986; Teoria do Simples, 1986; Suicídio
do Tempo, 1991; Veneno das Horas, 1991; Estação 14, 1997, O Sonho dos Deuses e os Dias Errantes, 2001; Tempo
– Nuvem, 2004; Poemas da Mesma Fonte,
2006; Feições do Tempo e da Vida,
2009; Tempo contra Tempo, 2007
(parceria com Francisco Miguel de Moura) - poesia, além dos ensaios: Poesia e Dor no Simbolismo na Poesia de Celso Pinheiro, 1974 (1ª edição), reeditado
em 1987; Oliveira Neto, Poeta do Amor e da Alegria, 1993 e o memorial O Dedo do Homem, 2000. No seu trabalho contínuo, de obra a obra, incorpora
as conquistas do moderno e as mais recentes experiências do verso na construção
poemática de modo geral. Entretanto, a crítica tem concordado: é no soneto que está
o melhor de sua arte. Poeta nobre, mesmo
quando se submete a temas populares; sua
dicção é duma dignidade que não se encontra facilmente na literatura brasileira
atual. «O privilégio do verso me esperava.», escreveu, ele próprio, num de
seus poemas.
A. Tito Filho assim se expressa em relação ao poeta Hardi: “É uma vocação real de poeta, bem revelada
nesse livro de versos de boa água, dedicado mais aos tristes. Cinzas e Orvalhos, indicado pela
Academia Piauiense de Letras ao prêmio “Celso Pinheiro” – Concurso Literário da Prefeitura de Teresina – 1963. Só as
cousas simples o comovem, com suas mensagens inquietantes. Sua poesia é a
contemplação, onde permanece, em absoluto abandono, como se não precisasse de
conforto humano. Tem ele o gosto da solidão. Personalidade forte, espírito
direito, tudo nele é claro com paisagens dos tropicos. De apurada experiência
intelectual, Hardi escreveu livro
rico de lídima inspiração poética, que tanto enobrece as letras piauieneses. Obra que aproxima a alma dos outros para a compreensão
dos desencantos do mundo”.
E dele disse
Herculano Moraes, autor de Visão
Histórica da Literatura Piauiense (1976): «Chega a resumir a última glória de uma poesia efetivamente
compromissada com os estados interiores da alma.»
Infância
Infãncia
é viço, é floração, é sonho,
Barco de velas côncavas ao vento,
No verde-azul do mar – deslumbramento,
Sob os anis do ceu – jardim risonho.
Revendo minha infância em pensamento,
Na evocação feliz em que me ponho,
Comparo e sinto com pesar, tristonho,
Como perdeste, ó mundo,o encantamento!
Infância pobre, prenhe de rumores,
Rica de enlevo, amor e confiança:
Uma festa de músicas e cores.
Jamais toldou meu pensamento a cisma,
Jamais sentiu meu coração de criança
Este vazio imenso que me abisma.
Artista
No atelier da vida, solitário,
somente em comunhão com a fantasia,
eu fui o artista que criou miragens
para conforto de ânsias infinitas.
Eu fui, também, aquele que traçou
formas de vida pelo sentimento;
o gênio louco que ideou amores
para sustento, amparo da esperança.
Insano escafandrista dos mistérios,
fui tradutor das emoções do mundo
e desenhista da volúpia eterna.
De pé, trêmulas mãos, olhos insones,
fui satanás sedento de domínio,
fui deus criando e alimentando sonhos!
Esdruxulo
A prata, o caviar, a mesa elástica
riem do pobre
e lhe pesam no vazio do
estômago.
O lustre, o veludo, o mármore
esbofeteiam
a faca do menino pálido.
Doi no seu corpo o sacrifício
da ingênua espera:
aberta mão ao desviado prêmio
De tanto conviver com áscaris
morre o menino
de alma e coração imáculos.
Uma paixão antiga, hoje única,
domina o mundo.
É torturante a dor sem número.
Francisco Miguel de Moura (1933), poeta, contista, cronista, romancista
e crítico literário, nasceu no município
de Picos (povoado Jenipapeiro, hoje Fransciso Santos – PI). Com Herculano
Moraes (Presidente) e Hardi Filho (Secretário), formava o trio ativo da diretoria
do CLIP,
no cargo de Tesoureiro. Trabalhando no Banco do Brasil, a função clipiana
casou bem com a circunstância funcional. Embora chegado a Teresina nos
albores da “revolução” de 1964, vindo da Bahia, entrou de cheio no movimento
que se esboçava. É incontestável o reconhecimento do seu valor na geração dos anos 60, inclusive por nomes
famosos como Assis Brasil e H. Dobal.
Por razão histórica pertinente, aqui vai transcrita
parte da matéria de autoria de
Herculando Moraes, sobre o poeta Chico Miguel de Moura e seu livro Areias,
lida no programa LIRAS SINFÔNICAS, da Rádio Pioneira de Teresina, em 10/5/1967:
“Sua poesia, na maioria das vezes, focaliza
a própria vida: seu labutar incessante e quotidiano, suas desgraças e seus
martírios, suas lágrimas e suas dores. Seu poema O Copo é uma afirmativa do que dissemos”:
A
poesia rústica do copo,
o
homem simples vai,
pela
manhã que vem,
brindar
à solidão
de
sua alma esmagada
ao
peso da desgraça
da
pobreza amém.
Bateu
na mulher,
brigou
com o amigo,
discutiu
com o patrão,
perdeu
o trabalho:
- Vai
para o copo,
único
amigo que o fará sonhar
e
esquecer
e
perdoar
a vida
que passa rodando
pelo
fundo dos olhos bons.
Não o
condenem por isto.
É um
santo desconhecido,
sua
vida não lhe vale.
Consolação.
Também
o copo
-
entornado e consciente –
sem
esperança de chorar
a
última lágrima do dia
antes
do poente,
preferiu
suicidar-se
mas
sub-repticiamente.
Sua
vida não lhe vale.
Consolação.
Eu
quero também beber poesia
No
copo da imaginação,
Todo
santíssimo dia.
Quero
ficar tonto no chão,
Acreditar
no mundo,
No
movimento.
Na
vida.
Essa
vida que não me vale.
Consolação.
“Noutras
vezes, tateia no mundo da infância, e a saudade lhe invade o espírito.
Inspira-se. As figuras se embaralham na sua mente. E sua cidadezinha, e berço do seu berço,
aparece qual um milagre na noite de sublime inspiração”:
À Minha Vila
Entre dois chapadões – terra
bendita,
de alma mais pura do que a
branca areia,
terra que ouviu, de minha mãe
contrita,
rezas a Deus, logo depois da
ceia...
És tão humilde e pequenina
aldeia
que, pela vida, em nosso peito
habita.
Qual semente daquele que semeia,
és semente do amor – terra
bendita!
Teu sol é quente e é frio o teu luar.
São gigantes, na sombra, o juazeiro
e a carnauba... – O vento a
farfalhar.
Vê-se, em roda à capela, o
casario
como a adorá-la... Ó meu Jenipapeiro!...
De frente: o vale, o lajeado, o
rio.
“Chico Miguel é um homem simples. Tem
maneira toda sua, toda especial de tratar com suas amizades. Poeta primoroso,
seus trabalhos têm beleza, não artifício. Moderno, em todos os sentidos,
ultrapassou as barreiras do parnasianismo e do simbolismo como escolas, e
trouxe, para os apreciadores da Poesia, um estilo novo e diferente para este
Piauí, que ainda não havia conhecido o verdadeiro sentido da poesia moderna.
Não porque todos sejamos ignorantes no assunto, mas porque as classes que nos
deviam orientar no caminho da moderna literatura divorciam-se da juventude, e
deixam-na à mercê de alienações. Chico Miguel é diferente: - intrépido e
audacioso, lutou, venceu, realizou-se”.
Tempos depois, Cunha e
Silva Filho, da nova geração escritores piauienses, professor, tradutor,
cronistas e, sobretudo, crítico literário de talento, manifestou-se a respeito
da poesia de Moura, especialmente a de Poemas Ou/tonais (1991), conforme
ensaio publicado na revista LAVRA-IDEIAS E LETRAS, nº 8, Brasília – DF, 1993:
“Miguel de Moura é dono de uma poesia contida, sua lira é a antilira
naquele sentido da poesia drummondiana. (...) Esse tom drummondiano se
vislumbra igualmente em todo aquele
poema da p. 131”:
chega
o tempo de dizer-se
o que
não se ouviu.
mas
as palavras são mistérios
nem mais soam
como os sinos
nos nossos ouvidos
sonolentos.
chega
um tempo de dizer-se o impossível
e o
impossível já foi dito.
chega
um tempo de calar
e a
gente inventa uma maneira triste
de
dizer numa lingua estranha
um silêncio
amordaçado.
Herculano Moraes (1945), nome literário de
Herculano Moraes da Silva Filho, nascido
Tatuagem
Ficou em mim este cheiro de tempo
de esterco de mugido de fumaça
Ficou em mim este jeito acanhado
Ficou em mim esta saudade
esta calmaria
Ficou em mim esa vontade
de expulsar a aparente
calma
Ficou em mim este cheiro de lembrança
- árvores
frutos bois moendamiga
moendo-me a
fadiga.
Auto-retrato
Ninguém arrancou de mim
Este desprezo
Ninguém plantou em mim
Uma esperança
Ninguém quis ver em mim
Este prodígio
De conviver com a morte
Filho do gozo agrário
Gerei da terra
E tenho cheiro
De esterco e de mugido
Filho do trovão
Nasci da exegese indecifrável
Do anti-amor
Rompi víscera
Comi placentas
E retornei
Num mar de amargo
Sangue
Cheguei à lua opaca
No mistério da expulsão
E ingressei no mundo
Sem pessoal decisão
Os lábios acoplados
No botão rubro de leite
As mãos agarradas
Nas bordas do desamor
Várias luas naveguei
De tempo escasso
Vários mundos percorri
Sem pernas braços
Várias bocas procurei
- náufrago insensato
Várias mãos busquei
Como um perdido
Ninguém quis ver em mim
Este prodígio
De conviver com
A morte.
Osvaldo Lemos (1945), nascido em
Piracuruca, estuda em escolas públicas, depois na antiga Escola Industrial de
Teresina, (atual CEFET) e, por esforço próprio, torna-se jornalista de
profissão e historiador por gosto e paixão pela pesquisa. Conseguiu publicar
alguns trabalhos, todos de ótima qualidade, mais tarde. Obra: Petrônio Portela, Depoimentos à História Política Brasileira, em 1993, Félix Pacheco – Vida e Obra e Aspectos
da Força Polícia Piauiense no
Governo Zacarias de Gois, Teresina, 1999. Na diretoria do CLIP era
o Vice-Presidente.
Esdras do Nascimento (1934) nasceu em Teresina -
PI. Contista e romancista, ensaísta, jornalista, funcionário do Banco do Brasil.
Graduou-se em Letras, Filosofia e Jornalismo. Passou a infância e adolescência
entre Teresina e Fortaleza. Fixou-se
finalmente, no Rio de Janeiro. Mas trabalhou em várias capitais do Brasil e
morou nos Estados Unidos. Seus primeiros
livros possuem marcas da linguagem e dos costumes do Nordeste: Vinte Histórias Curtas, 1960, obra
coletiva, e o romance Solidão em Família,
1963, por exemplo. Depois publica Convite
ao Desespero, 1964; Tiro na Memória, 1965; Engenharia do Casamento, 1968; Paixão bem Temperada, 1970; Quatro num Fusca, 1974; Variante Gotemburgo, 1978; O Ventre da Baleia, 1980; Aventuras do Capitão Simplício, 1982; Jogos
da Madrugada, 1983, entre outros. Sua obra traz a marca do seu tempo, a
crítica aos falsos valores da burguesia e da classe média urbana, na grandes
cidades. Participou de Piauí: Terra, História e Literatura, Editora
do Escritor, São Paulo, 1980, antologia organizada por Francisco Miguel de
Moura. Eis o início de Paixão bem
Temperada:
Meia-noite e meia.
Roberto de Aquino alisa os cabelos arrepiados dos
braços, puxa o lençol para o peito, vira-se de bruços, estremece com o ventinho
frio que entra pela fresta da janela.
Há quase dois anos
Começa a berber vinho na hora do jantar. Vai depois
de bar
Preciso arranjar um aquecedor elétrico. Não é tão
caro assim, eu já podia ter comprado um, mas fui adiando, adiando... No fim do
mês...
- Vais dormir aqui? – pergunta Gildinha.
- Nem sei. Estou com uma preguiça...
- Se quiseres, podes ficar. Quando está frio como
hoje os fregueses somem, dona Zilma não se importa se tu ficares.
- Estou doido por um cafezinho.
- Cafezinho não tem, mas chá eu arranjo. – Entreabre
a porta do quarto: - Mariozinho!
A voz em falsete responde:
- Quê que tu queres, benzinho?
- Chá. Podes fazer pra nós?
A mulher tranca a porta, volta aos lençois, abraça
Roberto de Aquino:
- Estás gelado, meu amor. Nunca vi ninguém sentir
tanto frio...
Ele bota o cinzeiro em cima do peito, acende um
cigarro, entrega-o à mulher, apanha outro. “Nunca vi ninguém sentir tanato
frio...” Curioso. Quando vim para Porto Alegre, eu não era friorento.Passei bem o primeiro
inverno, ria muito das luvas, cachecois e mantas do pessoal lá da Companhia, só
de manhã sofria um pouco, no começo do expediente, quando as pontas dos dedos
batiam no teclado gelado da máquina de escrever. Mas logo depois eu me sentia
bem, trabalhava com disposição, chegava a tirar o paletó. O pessoal dizia que
era fita, troçava. Mas de fato eu não sentia frio. E agora...
Batem na porta, Gildinha avisa:
- Pode entrar. Está só encostada.
Calças claras coladas ao corpo, suéter escura de
gola alta, lenço verde-garrafa no pescoço, Mariozinho põe o bule na mesa de
cabeceira, desvira as xícaras, serve o açúcar, com trejeitos, e desfaz o
embrulhinho.
- O que é isso?
- Biscoito. Chá com biscoito. Legalzinho, hein! E
depois... Olhem lá hein! Quero um amor bem caprichadinho, em minha homenagem.
Tá?
Roberto de Aquino não tolerava veado, fecha a cara,
Mariozinho vai embora.
Castro Aguiar (1940) é o nome literário de
Joaquim Antônio Castro Aguiar, nascido
Capítulo 7
Era noite. Ia saindo, quando o Borba me atalhou com
uma pergunta:
- Aonde vai?
- Andar.
- Por onde?
- Sem rumo.
- Posso acompanhar-te?
- Se quiser.
De mim mesmo, daria resposta negativa. Preferiria
sair sozinho. Não que a presença do Borba me fosse incômoda.
Saímos, eu e o Borba. Sentamos num banco da praça
Pedro II, os olhos espetados no voltear das moças. Borba falava:
- Todos nós já fomos vítimas, de certo modo, de uma
decepção amorosa, uma certa frustração sentimental. Isso é comum, portanto.
Aconteceu comigo e com você. Acontecerá com muitos outros também, porque os
homens são os mesmos, onde quer que estejam. Não nego que é difícil, às vezes,
superar essas crises, porque, quase sempre, elas nos tomam de surpresa. Mas,
vamos ser francos, beber, por isso, só pode traduzir falta de personalidade, de
espírito crítico, de autodomínio.
Aquelas palavras do Borba me açoitavam como chicote.
Não me adiantariam conselhos. Estava farto de ouvi-los. Queria era beber. Beber
muito. Isso, sim.
Súbito, as moças começaram a retirar-se,
- Vamos?
- Não.
- Que é que tu vais fazer aqui, sozinho?
- Nada, Borba. Não irei fazer nada. Mas quero ficar,
ora bolas!
E, levantando-me com ódio:
- Deixa-me em paz, por favor. Irei girar mundo. Não suporto a prisão daquelas
quatro paredes do nosso quarto. Podes ir. Irei ao cabaré. Preciso abafar minha
mágoa na cama de uma prostituta. Sei que tu tens razão, és meu amigo. Mas o meu
desgosto embruteceu meus sentimentos. Estou mudado. Sou outro.
E, percebendo minha grosseria, amenizei:
- Perdoa-me, se fui áspero, rude. Estou nervoso. O
ódio materializa os homens. Ultimamente estou ficando assim...
Magalhães da Costa (1937-2002), nome literário
de José Magalhães da Costa, contista, crítico literário e poeta. Magistrado,
chegou a Desembargador. Nascido em Piracuruca, formado em Direito pela
Universidade Federal do Ceará. Já em Fortaleza praticava a literatura de
iniciante, chegando a ganhar concursos de contos de nível nacional. De volta à
terra, organiza e edita o primeiro suplemento litérário do Piauí, no jornal “O Dia”. Já são excelentes seus contos
publicados no Almanaque da Parnaíba, na
decada de 1960, quando ganhou concursos promovidos por revistas do Sul. Só em 1970 estréia
Ladrão de melancias
- Um dia eu pego o ladrão.
- Que ladrão, tio Pedro?
- O ladrão de melancias. Fiz uma roça. Enchi de sementes,
nasceram bonito. Deu umas chuvinhas finas, aí completou. Enramou que uma beleza
– um lastro parecia um lençol. Vingou, que ficou assim de melanciazinhas novas.
Onde a gente pisava...
- E o ladrão comendo...
- Não deixa nem as bichinhas incharem direito. Se
abanca. Come até o branco. Engole os caroços. Acaba, esconde as cascas. Mas um
dia eu dou de mão nele.
- Como, tio Pedro?
- Pegando. Arranjo um aparelho de injeção, aplico
uma boa dose de tártaro no fundo de cada vinga – em todas elas – que o cabra
nem nota o furinho da agulha, pensá tá que foi picada de inseto – e é aí, e é
aí.
- Aí, como, tio Pedro?
- Comeu, vomita até os bofes. Não quer mais.
Enquanto se lembrar.
- E como o senhor vai saber?
- Como? Ora. Já dei fé que você é mesmo criança. A notícia
logo se espalha. Fulano comeu frito e ofendeu. Frito não tem, com a carne do
preço que está. Caboclo não come mais. Então, está pego. Vou lá, amarro o
safado, ferro com um L na testa, peio, e toco ele pra rua. Entrego lá – ‘tá
aqui, seu Delegado, o ladrão, faça dele o que quiser’ – e volto pra casa pelo
mesmo caminho. Aí armo o tucum, me deito, e vou fumar o meu pé-duro bem
sossegado, livre de praga de ladrão.
Geraldo Borges (1941) nasceu em Matões - MA.
Talentoso contista e cronista, participou da antologia Piauí: Terra, História e Literatura, 1980. Na sua modéstia, reluta
em reunir em livro os contos que publicou nos jornais e revistas, numa atitude
que lembra Graciliano Ramos, a maioria repassados de ternura e compreensão da
vida e da condição humana. Entretanto, em 1989 sai a plaqueta Tiro de Misericórdia, uma pequena
mostra: quatro histórias. Em parceria com Manoel Domingos, publicou o estudo
histórico-sociológico Seca Seculorum, Flagelo e Mito na Economia Rural
Piauiense, 1983. Crônicas saborosas de sua memória e da cidade Teresina
estão
Está aí, na íntegra,
A
dura realidade da lenda, conto
que o autor publicou na revista Cirandinha 9 –Nov. 1983:
“Façamos de conta que eu e você pertencemos à
família do mártir Gregório.Verdade! Nada
mais simples. Não sei o seu sobrenome. Mas pelo fato d’ele ter sido batizado
pela Igreja Católica Romana, presumo o
nosso grau de parentesco. A única diferença agora é que ele é santo.E eu não.
Nem você também:
De qualquer maneira estamos de parabéns! Existe um
santo em nossa família. Na família piauiense.Aleluia. E este estado ao
deus-dará precisa de muitos milagres. Pena que sempre seja um santo de casa...
Ontem, dia de finados, sonhei com o motorista
Gregório e a criança que ele matou. Por razão que desconheço, o menino
atropelado era filho dele. E ambos estavam lendo uma carta endereçada do
inferno pelo tenente coronel Florentino Cardoso, o responsável pela morte do
mártir Gregório, pai da criança vitimada no acidente.
Eis, mais ou menos, o conteúdo da carta:
- Por que não te meteram na cadeia, não te julgaram,
Gregório? pergunta um popular.
- Não sei. O tenente Florentino era muito poderoso.
Não ouvia ninguém.
- E o governador, a polícia, o juiz, os deputados, o
povo, por que não reagiram?
- A época era
de repressão. O povo tinha medo de falar. O governador estava preocupado com a
inauguração do Palácio.
- E o teu patrão, o coronel Gervásio Costa?
- Patrão é patrão. E também coronel.
- Se eu tivesse vivo teria falado, chorado, implorado.
Gregório não teve culpa. (Filho de Florentino).
- Quer dizer, então, meu filho, que você teria me
perdoado?
Sim, São Gregório. O senhor é um santo. O povo sabe
disso.
- Ele é um assassino. Matou meu filho. Deveria
morrer mil vezes...
- O que é isto, coronel?!
- Respeite. Eu sou teu pai.
- Eu não sou mais seu filho.
- Conversa, menino. Agora você está ao lado deles. Se
não tivesse morrido tão cedo, iria entender mais tarde.
- O coronel cometeu um grande erro, um desrespeito
ao povo.
- Povo, coisa nenhuma, seu moleque! Era um problema
meu. Resolvi e pronto.
- Vamos parar de discutir. Fechem o pano. Eu vou
lavar as mãos, disse o governador.
O sonho quase vira pesadelo.
Nisso me lembrei do fato real. Teresina, 1927.
Outubro. Margem do rio Poty. O quadro era terrificante.
“Água, água, por amor de Deus. Minha garganta está
em brasa.”
“Nada disso. Que este miserável torre até morrer.”
“Água, água, por amor de Deus...”
Sol e suor. O corpo do mártir Gregório amarrado num
tronco, como escravo, torrando debaixo do céu. O povo perplexo olhando, parado,
inerme, sem nada fazer... A notícia correndo a cidade inteira. O rio Poty fluindo.
A sede. A família. Os parentes. Absurdo!
Já no cemitério São José. A lápide da sepultura vive
sempre cheia de garrafas d’água e velas acesas, colocadas ali, por devotos
fieis. Pagadores de promessa. Ninguém sabe. Mas sabe lá quantas doenças,
mazelas, desmantelos foram aliviados por este santo. Ninguém sabe. O povo é
quem sabe. Agora temos um santo na família. Na certa vai para o roteiro
turístico da cidade.
Entre as homenagens que São Gregório já recebeu, até
agora, exceto a devoção pura e simples do povo, temos uma capela edificada pelo
município no local do crime, onde Gregório morreu de sede. E um boteco defronte à capela. Reza e
cachaça: dois fortes espíritos.
Mas retornemos ao sonho, porque é dura a
realidade... O melhor mesmo é saber que Florentino Cardoso está no inferno, sofrendo
de acordo com o catecismo. E o mártir Gregório e a criança vivem felizes no
céu, interferindo pelos deserdados, aqui em baixo, neste vale de lágrimas. Quem
sabe um dia não nos ajudará nestes momentos de crise cada vez maior...
O pior é que, além, mais tarde, teremos de dar conta
de nossa omissão. Quando nos perguntarem:
- Por que vocês, que são tantos, deixaram matar o
homem?
Talvez em coro, dentro da capela, ou na porta do
boteco, responderão:
- Seremos, por acaso, a guarda de nossos irmãos?!...
Gregório de Moraes (1938) nasceu em Teresina,
PI. Jornalista, contista, cronista, poeta e romancista. Formado em Letras pela
Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro. Estreou na poesia, com Os Índios,
os Índios, 1968, no Rio, onde morava. Em 1970, ainda no Rio, publica Auroras Perdidas. É de 1975 Praialuz (poemas) e no mesmo ano lança Sol dos Aflitos, contos, onde se
firmaria, passando para a experimentação no romance, com Cão na Noite Morta,
1980. Enquanto no Rio, era ponte
literária para os de sua geração, na província,
com notícias e livros
atualizadores que enviava ou trazia. Sua
poesia é ligada à terra e, no fundo, romântica. Na prosa, entrega-se à corrente
contemporânea da busca do melhor e mais atualizado discurso literário,
aprofundando-se nos desvios humanos, pela negação, na busca sempre de sua positividade. Aqui, o final do conto Ponta de faca
‘Acudam, que seu Belarmino vai matá o Vicente’
Saltou o batente. A explosão. Dava pra ouvir o mato
se torcendo com a correria dos porcos, dos fundos da casa. O clarão. Os olhos
de Belarmino cheios dos olhos da moça. O cheiro de pólvora. E aqueles braços,
feito guindastes, sujigando o homem deitado no chão. Cheiro de chão. Cachaça e
pólvora. “Segura o homem”. Bilau de
novo. Não chegara a atirar no rapaz. Do batente, fora cair no meio da
caporreira. E o tiro acidental. Só o susto. E o Vicente no terreiro. Agora do
lado de cá. Nada de correr. “Quem corre uma vez, vai correr sempre”. Nem pelo
bem de sua mãe foi pra casa. E era o que tinha pedido o tio. E todo mundo mais.
Quando passasse a cachaça, Belarmino não ia fazer nada. Falavam. E não saiu. Plantado no meio do terreiro.
Árvore solitaria na tempestade do mundo.
Linheira. Onde os relâmpagos alumiam, mas o corisco não toca. Árvore
mediana, enraizada no chão bruto, frutificando a alegria da mocidade. As duas
coisas juntas. O espírito teimoso e a coragem que se aninha nos carcarás da
terra estão, também, no espaço das mãos do homem. “Levem o homem”. As vozes atraindo
para si os homens aqui de fora. A xingação solta. Braba. Os primeiros choros. O
caçulinha acaba acordando. E o resto foi atrás.
Uns três. Além da tosse de outro. Catarrin acalmando as mulheres:”Né
nada não, dona Nitinha. Já passou. Calma, povo”. Outra voz: “Passa querosene no
moleira dele. No pé do ouvido”. O furdunço. A mulher balançando no quarto a
rede mijada do caçulinha. As rodas formadas. Cada um na sua versão. Cada qual
mais verdadeira. Catarrin correndo, ajudando, pela sala. Pisa o pé do Joca
Tapuia. Palavrão pra valer.”Disculpe, seu Tapuia”. “Diabo”. Pensa o negrão.
“Depois que inventaram essa tal de disculpa, a gente num briga mais”.
Tudo serenado. Sentado em cima dos cocos de babçu,
que a mulher estaria quebrando no dia seguinte, Belarmino entregara os pontos.
Mansinho. Murcho. Coçando a cabeça. Os olhos assuntando as coisas. Agitada só a
fungação. Mesmo depois do café, quase à força.
E dormiram no ponto outra vez.
Dependurado num prego, ali quase pertinho dele, o
cacete de goiabeira. Rajado. Não era dos que usava no Mearim. Mas tinha sido
também sapecado no fogo. Pra retirar a casca. E não dar bicho. Até o buraco
tinha feito. Um pedaço de vaqueta, amarrado pelas pontas, fazia assim de cordão
de segurar. E fez o salto. Parecia que a mão ia abarcar a estaca. E segurou.
Por cima dos fogoes. Riscou o chão no rumo da frente. Ganhouo terreiro. Ninguém
conseguiu mais encostar. Belarmino e sua arma de fé. Medida. De cotovelo a
cotovelo. E quando a cacetada ia descendo pra cabeça do Vicente, parece que o
homem estava abrindo o mundo. As lamparinas do lado de fora. Um monte. Em cada
mão, uma alumiando a briga. E a sombra dos meninos, acordados, entre as pernas
dos adultos.“Vai morrê. Vou ti matá, zambêta”. Vicente horizontal. Esperem:
perpendicular. Não, de banda. Rolando. Pulando feito sapo. O pau comendo. Gato
maracajá. Não, é o Vicente. Rolando, saltando.
Belarmino na xingação, baixando a ripa. O ódio cresceu em suas mãos.
Prolongou-se na arma. Grita rouco. Ninguém compreende nada. Ou apenas uma coisa.
Vicente vai morrer. Se cansar, vai morrer. Não tem Cristo que dê jeito. Uma cacetada destas, se acertar, não levanta
nem Zebu. É tirikeda. Parecia uma cobra esticada. Procurou-lhe o queixo. Veio
vindo. Outra explosão. Vicente no fundo da piscina, com a mão na loca, pegando
peixe pelas guelras. Piscina natural no leito do riacho da Vermelha, em frente
à casa do engenho. As paredes empedradas. Parecia uma raquete. Muito cheia.
Água pelas beiras. Vicente mergulando o corpo. As mãos sobre as locas, catando
peixe. Um peixe na mão. A embira da calça vem acompanhando. Está rasgada e
rota. Outro mergulho. O cofo engordando com os peixes para o jantar. Tibungo! Tibungo
de novo. Lá pro meião. A claridade explodindo contra os olhos. A luz do sol,
fora da piscina. Não. A luz da lamparina
alumiando a morte caminhando para seu rosto. Outro mergulho. Na terra. Passou
raspando. E agora? A mão na arma. Sua faca. Brilhou contra a luz, fora da
bainha. Gingou. Rolou como tora de buriti,
qundo a gente desarruma um monte. E pisa
As luzes arrastaram para dentro, sem o barulho dos
tambores, o corpo do quitandeiro. E as sombras atraíram para si as passadas de
Vicente.
Alexandre Carvalho (1943) nasceu em
Teresina, onde reside. Jornalista, professor, radialista, prosador e poeta. É
um dos colaboradores da revista Cirandinha, anos 1970. Estudou no Ginásio Leão XIII e no Liceu Piauiense, é
formado
A música letrificada é irmã
da poesia. A convivência de Alexandre Cavalho com a música cedo o levou para a
construção de poemas, que reuniu no
livro Meus Poemas Teus, 1990 e guarda
outro inédito denominado Orquideas e Cogumelos. Em prosa, publicou
também o romance Fogoió da Água Doce, 2005.
O rio e eu
Deslizante rio de minha vida
Vida convulsiva de meu rio
Reboliço intenso de minhas
dúvidas
Borbulhante inconsciência do
hoje
Devastadora torrente do meu
ontem
Tu vives
a mergulhar silente na insensatez
dos mares
Eu vivo
a soluçar desgosto no repassar
dos males
Na calma aparente de teus braços
escondem mistérios de vida
e morte
pois corres aos povos entre
laços
que das águas
dependem a sorte
Caminheiro de água clara e
poética
Manancial lírico do “ amarantino”
Inebriante estrada em sol a pino
entre palmeiras de pureza
estética
Teu mundo
deslizante fanal de longos idos
no murmurar solene dos gemidos
Meu mundo
um viajor pensante e sem destino
a procura talvez de um novo hino
Acaricia com frescor minha alma
ardente
no seguimento de teu curso de
paixões
Aplaca a fúria que letargia a
mente
pra não sair em chamas a queimar
padrões
Tu que levas ligeiro o passado
pelos anos
Embarca meus idos no dorso do
tempo
Enterra meu ontem no eterno dos oceanos
Humberto Guimarães (1945), nasceu
- Duma coisa, filha, pode ficar certa: Feitosa não
leva desaforo pra casa não. Se esses campos falassem tinham muita coisa pra
contar de sangueira e morte de cabra ruím que se meteu a querer pisar toitiço dum Feitosa.
- Eu sei, pai. Mas os tempos são outros, a gente tem
que acalmar; e mesmo nós não somos ricos nem temos patente como os de antigamente.
Esses campos todos que foram dos Feitosa já têm outros donos... Nós aqui
- Deixa de conversa besta, menina. Tu saindo aí
mesmo é que eu vou ficar no ora-e-veja. Vai botar a janta e num fala mais nisso
não, tá ouvindo!?
Jovita engoliu o protesto, mas este ficou-lhe
atravessado na garganta não lhe permitindo engolir a comida, tão entalada ficara.
Ela era assim: quando queria uma coisa ficava tiririca se a contrariavam. Sabia
que era próprio da raça – os Feitosa sempre foram de pavio curto, orgulhosos.
Eram tão cheios de si que nem permitiam que os filhos casassem fora da família.
O velho também sabia do gênio da filha que tinha; a
menina não puxara nada à finada, que, embora prima do marido, tinha o
temperamento pacífico dos Alves – a quem perdera fazia quatro anos; a
pobrezinha fora levada pelo cólera-morbo. Tinha certeza que Jovita não desistiria
daquela idéia de ir embora pro Piauí. A coitada até certo ponto tinha razão:
vivia ali sem mãe, metida com aqueles cabras da peste, pastora de bodes
acompanhada só de seus dois irmaozinhos, vendo um dia atrás do outro sem
novidade. Era danado mesmo... Na vila de
Jaicós o irmão Rogério não tinha fortuna mas, pelo menos, era professor de música,
tinha bom conceito, poderia encaminhar a menina nessa ilustração e até mesmo
arrumar um bom casamento com gente aparentada... Ali
Pedro Feitosa comeu o jantar de “marizabel” com
carne assada – a famosa carne-do-ceará que se comprava aos mercados na quitanda
– fazendo essas considerações lá com seus botões. Nada falará à filhaque,
arreliada, estava lá pra cozinha.
Passou a noite.
Dia seguinte cedinho, Pedro Feitosa, metido nas
perneiras velhas e no jibão remendado, tomava a coalhada que Jovita trouxera na
panela de barro. A danada nem lhe tomara a bênção. Na certa tava enfezada lá na
beira do fogão, roendo as unhas. Chamou a filha e, como se nada tivesse
conversado a respeito do assunto, foi-lhe dizendo, quando ela se aproximava com
a cara emproada:
- Pois é, menina. Precisamos conversar. Senta aí nessa
ponta de banco – falava com a cabeça baixa, como se estivesse conversando com o
prato. Tô com o cavalo selado, vou dar mais uma volta no campo pra ver se acho
a garrota Estrela; se não achar, tenho quase certeza que o patife do Genaro roubou a rez. Aí ele
vai se ter comigo; vai saber o que tirar gosto com um Feitosa. Já tenho o
sangue mais assentado do que os primeiros, mas sei defender o que é meu, tá ouvindo?
– passa a mão na boca, fica de pé e olha para a filha: - Eu tive matutando esta
noite... Na semana que vem ocompadre Joaquim sai com uma tropa carregada de
couro pra negociar nos Jaicós. Se for do teu agrado, tô pensando em te mandar
pra casa do teu tio Rogério. Tu parece que leva gosto por essas finuras da vila.
Como é: quer ir?
Francisco Venceslau dos Santos (1940)
nasceu no Diogo, data Jenipaeiro, hoje Francisco Santos-PI. Mora no Rio, onde é
professor universitário aposentado (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e
Assessor e Consultor de várias entidades, entre as quais a própria UERJ, a
FAPESP e o MINC. Foi editor na juventude
e voltou à atividade, depois de aposentado, com a Editora Caetés, onde edita
revistas e livros. Poeta e crítico literário de alta potência. Obras: Dessertões, 1977; Autoritarismo & Solidão, 1990;
Quarup: Um Romance de Tese, 1999, entre muitas outras. Editor da revista Prisma, onde aparecem várias colaboraões suas. Grande poeta bisexto. A palavra é sua substância, desde que fugiu
da terra de origem. Seus versos vêm da inteligência, com sensibiliade e suor. É
só conferir.
As águas e os rios
na margens por onde anda não carrega com ele
braços de parnaybas, não transporta riachos e rios
é viajante entre táxis, ruas e shoppings
- ryos sem margens literárias de areia e sonho
navega sobre estes rios que só possuem
aspas de águas, vírgulas de mágoas entre
buritizeiros, sobre os brejos sem nome
onde os riachos começam sobre todas
as águas, sobre um rio perdido onde
os anuns, jacus, jaçanãs bebem a água da
cacimba, navega no vago mar
donde as canoas silenciosas e negras
se partem quando é na areia manhã,
a cobra-grande e o peixe-boi fugiram.
entre porteiras e cancelas além dos riachos de tv
tange a boiada de signos no areal da city
neste rio não há diários de náufragos,
roteiros de barcos, bússulas e astrolábios.
José Ribeiro e Silva (1934), nasceu em Cascavel – CE, reside no Piauí há quase
meio século. Formado em Direito pela Universidade Federal do Piaui. Exerceu
cargos na administração pública do estado. Poeta, vem do Movimento de Renovação
Cultural, do Prof. Santana, embora seja avesso à participação da vida intelectual. Não conhecido
como merece. Obras: Colheita Mística,
1970; Garimpando Sois, 1975; Um Grito na Escuridão, 1977; Meus Poemas Prediletos, 1980; Lanças e Punhais,1988, entre outros.
Para Herculano Moraes, “a poesia de José
Ribeiro e Silva, em determinados momentos, conduz a Kafka, T. S. Eliot e
Fernando Pessoa”.
Espirais de fumaça
Madrugada etérea. Frio n’alma.
Visões.
Ruas
onde estrelas ávidas por fulgir
- Com
seus olhos de fogo –
Esculpiram
no ébano do asfalto
Silhuetas
nuas de instantes furtivos
Como
os das vagas ilusões roubadas de mim.
Risos
no salão grená. Espirais de fumaça
A taça
e o vinho em batom agfogados
- Na loucura dos beijos –
E os amantes da noite bacante
logo se evaporam
Como ébrios fantasmas
Na passarela de sombras das auroras
perdidas.
Altevir Alencar (1934) nasceu
Meu velho Parnaíba, as tuas águas
São lágrimas de Deus correndo soltas;
Tu tens, amigo, em tuas ondas revoltas
A tristeza sem fim das minhas mágoas!...
Meu velho Parnaíba, que ironia:
Volto a te ver depois de tantos anos,
Envelhecido pelos desenganos,
Que quando te deixei não possuía!
Pela última vez digo-te adeus...
E partirei, porque no meu castigo
Vive sempre a jorrar, meu velho amigo,
Um mar de prantos, pelos olhos meus.
Entretanto, Altevir
Alencar andou meio mundo. Prefeito de uma
cidade de Mato Grosso do Sul, foi eleito membro da Academia
de Letras daquele estado e voltou para a terra natal, contrariando o que seu
poema diz. Publicou vários livros: Eterno Crepúsculo, 1961; Poemas
da Solidão, 1967; Poemas para Quem
Sabe Amar, 1968; Dentro de Mim,
1970 e muitos outros. Ótimo sonetista. Portanto, veja-se este, em alexandrinos:
Último abraço
Ainda sinto o teu corpo do meu corpo ao
lado.
Nos lábios a volúpia ardente do teu
beijo.
No quarto em solidão desnuda ainda te
vejo
A olhar-me com o olhar nervoso e apaixonado.
Partiste, e ainda sinto a ânsia e o
latejo
Daquele último abraço inquieto e
demorado.
Ficam pelo ar parado o intenso rumorejo
E a imagem pura e pecadora do pecado.
Não posso mais viver sem ter-te nos meus
braços.
Quando longe tu estás minh’alma se
alvoroça
Julgando ouvir no quarto o ruído dos
teus passos.
Pelo ar ficam também as coisas que tu dizes.
E eu tenho a impressão que a minha carne moça
Na tua carne moça até criou raízes.
Antônio Carlos Fernandes da Silva (1945) nasceu
O apito da usina
O apito longo da usina de arroz
rasga, forte, a manhão rescém-nascida,
estremecendo a rede remendada
do empregado surrado pela vida.
Correm dos bairros homens bem dispostos
e começam, humildes, outra vez,
luta perene pelo fim do mês.
O fim-do-mês custoso só lhes dura
duas semanas... somente duas semanas
de festa, sem banquete, sem fartura.
Meio-dia, as crianças na calçada,
nadando em pranto seus ingênuos ais,
já famintas aguardam pelo almoço,
mas o pai, já cansado, não lhes traz.
O olhar penalizado da esposa
e as lágrimas das filhas pequeninas
pesam-lhe mais que os fardos de arroz,
cortam-lhe mais que o apito da usina.
Melquisedeque Viana (1941), nascido
Soneto,sino e sinuca
Só usa quem sabe usar,
o sino toca quem sabe
na hora de badalar,
sinuca joga quem pode
na caçapa encaçapar,
pois é preciso, com arte,
o taco saber tacar.
O soneto é do poeta
talvez o mor instrumento
de expressar com grande apuro
as vozes do pensamento,
buscando sua mensagem
até no sopro do vento,
mas pintando suas estrofes
com as tintas do sentimento.
Rita de Cássia Amorim Andrade (1939), romancista,
nasceu
Já era noite e Henrique agustiado andava pelo
apartamento. Sentia-se febril. A cabeça latejava. Bolhas de suor frio
salpicavam pela testa e forçavam-no a limpá-las a cada instante. O lenço
ensopado, amarrotado pela compressão dos dedos, já não lhe tinha a utilidade
necessária. Pesava-lhe o tormento infligido vida a fora. Assim era o seu
destino, o destino de todos os homens que ousassem quebrar as amarras da lei da
vida e da lei de Deus.Estava intrigado de como Clarissa não o reconhecera.
Teria mudado tanto, a ponto de não despertar qualquer suspeita? Era verdade que
muitos anos haviam se passado. Refletiu na felicidade a acercar-lhe e,
ironicamente, o abismo que a negaria. Via-se mergulhado no dilema da aproximação
que lhe daria a oportunidade da conquista, concomitante, o perigo de ser
identificado pelas características inerentes a si próprio.
Pensou em ligar para a mãe. Deteve-se por alguns
instantes na dúvida se seria justo fazê-la compartilhar o pesar; tantas vezes
ela lhe a esquecer o passado! Precisava meditar um pouco mais. Sentia-se
constrangido a pedir ajuda àquela que, durante toda a vida, fora a companheira
nas viscissitudes, a fonte de onde pôde sugar a força da sobrevivência entre as
quatro paredes de uma minúscula cela superlotada. A tudo suportara em nome da
mãe. Sobrevivera graças a ela. Cada
espancamento, cada trabalho forçado, cada dejeto a limpar, como a limpar a si
próprio, como a arrancar da pele a mancha do pecado. Pensara estar limpo,
purificado. Sua mãe o dissera. Chorou na
alma, em profundo silêncio.
Ao longo dos anos, sua meta era dar novo rumo à
vida, mas era difícil saber aonde ir. Tentara refazer a vida ao lado de outra
mulher, com um casamento que já nascia fracassado. Só lhe restava manter a
esperança de melhores dias. A antiga paixão tão nefasta fora se diluindo,
deixando um vago sentimento de culpa.
Contudo, quando observara Clarissa na sala de
convenções de um hotel em Fortaleza, acompanhada de outros médicos, ela era
para Henrique apenas uma aparição. Viera e se fora, sem contato, sem elo, uma
sombra do passado a alertar-lhe da impossibilidade do esquecimento.Agora,
estiveram frente a frente, olhando-se
nos olhos, interagindo-se de forma ainda bastante obscura, mas
prenunciar um enlace de destinos..
Pôs-se a longas reflexões sobre os reveses da vida.
E, assim como num pesadelo, dirigiu-se ao telefone. Os colegas já haviam se
recolhido. A sala vazia aumentava-lhe a angústia. Ao ouvir a vozda mãe
do outro lado da linha, arrependeu-se de ter que incomodá-la, mas era tarde
demais, a doce e alegre voz lhe abençoava. Por um instante emudeceu-se e ela
pôde perceber que algo de anormal estaria acontecendo:
- Filho, estava exatamente pensando em você – disse
carinhosamente. – Mas..., você só costuma ligar nos finais de semana. Aconteceu
alguma coisa?
- Você se lembra de Clarissa, mãe? Eu a encontrei,
hoje – fez uma pausa e depois prosseguiu: - Fomos apresentados e ela não me reconheceu.
Pedro Celestino, nome literário de Pedro
Celestino de Barros (1918), funcionário público federal e professor do ensino
médio, cronista e contista, recebeu vários prêmios literários, publicou Sinais de Seca, 1964, tendo tido outras
edições. Segundo Geraldo de Almeida Borges, “o
livro de Pedro Celestino é um marco na literatura piauiense, a partir dele começa
o conto urbano no Piauí”. Suas crônicas ficaram esparsas pelos
jornais. Participou da antologia Piauí: Terra, História e Literatura,
Editora do Escrior, São Paulo, 1980.
O texto a seguir é a
crônica Dez reis, publicada na antologia Crônicas de Sempre, organizada
por AdriãoNeto, publicada pela Fundação Cultural Mons. Chaves, Teresina, 1995:
Quando Cassiano Ricardo, cabisbaixo, deixava a bodega
do compadre e rumava para casa, ia pensando em como o compadre, sabendo de sua
calamitosa situação financeira, não tinha coragem de dispensar aqueles
miseráveis dez reis que restavam de um débito já há vários anos, se a situação
dele era tão boa e seus negócios cada dia cresciam e se avolumavam. Sempre
vinha com aquela lembrança que, de tão repetida, já causava náuseas ao bom e
pacado Ricardo.
Mas, era Ricardo dara as costas, Quintiliano dizia à
sua mulher:”Não adianta, o compadre há de me pagar. – Não posso dispensar. –
Veja que o homem está alegre, conversando, cuspindo por entre os dentes, mas
quando relembro a continha velha, ele se entristece, fica naquele estado de
acabrunhamento. – Que homenzinho duro!...”
Merenciana ouvia aquilo calada. E, de si para si,
dizia:
- Pobre compadre! Tantos filhos sem poder criá-los.
– Mas que há de se fazer? Deus quer assim, assim seja.
Até que Cassiano não
era homem que não gostasse de trabalhar.Dava duro. De sol a sol. A questão é que ele já tinha como paga aquela
quantia insignificante. Pois quando compadre Quintiliano chegava ali, trazendo
apenas ‘”a coragem e a cara”, quem o acolheu foi Cassiano. Hoje Quintiliano
estava rico. Era dono de faixas de terreno, contendo imenso carnaubal e grande
parte de coco babaçu, que por gosto se podia ver. Um verdadeiro colosso!-
diziam os que por ali passavam.
Quintiliano era homem que possuía tinho para
negócio. Sovina como ninguém. Apertando o cinto e usando de sua esperteza,conseguiu
ganhar dinheiro. Fazer fortuna. De pé rapado que era passou a ricaço da terra. Era senhor e proprietário, possuindo
boa bodega. Era considerado no lugar.
Quando tinha qualquer serviço, como a pega de um boi
brabo, derruba e queima de bom roçado, era Cassiano que tomava a frente.
Contratava cabra e comandava serviço, quase nada recebendo, pois tinha muita
consideração ao compadre.Podia mesmo dizer-se que Quintiliano estava rico
graças a Cassiano. E, por isso, Cassiano Ricardo levava em capricho não pagar
os dez reis de que era devedor. Assim, um dia,
astuciou o seguinte: fingir-se de doente e simular uma morte, pois só
assim o compadre sovina dispensaria os miseráveis dez reis. Deixou o cabelo e a
barba crescerem. Não se alimentava nem tomava banho. Com quinze dias, o
astucioso Cassiano parecia um defunto. Fedendo a bodum,sentado à soleira da
porta, cofiando a barba e com os olhos compridos enfiados ao longo da estrada,
o simulacro da morte na cabeça, chamou a mulher e disse:
- Vá à casa do compadre e diga-lhe que eu estou
muito doente e que, por isso, necessito do perdão daquela dívida. Sei que não
escapo e quero morrer em paz.
Maricota, senhora do truque do marido,rumou à casa
do compadre e transmitiu-lhe o recado tal e qual ouvira do marido.
Quintiliano, não conhecendo o bem que o dinheiro
proporciona a quem não o possui, que é o de não ser obrigado a pensar nele, arregalou
os olhos e suspirou dizendo:
- Qual, comadre, o compadre não morre não. E,se ele
morrer, não se preocupe. – Quando você
puder, me paga!
Maricota insistiu, mas foi debalde. O compadre
voltava com a mesma conversa.
Então, Cassiano mandou preparar o caixão e fez-se de
morto.
A mulher, chorando, fungando e assoando o nariz, pôs
o caixão no meio da casa, entre quatro velas de sebo, postas em boca de
garrafa, e mandou avisar ao compadre que acabara de perde o marido. Que tivesse
compaixão, que passava a ser órfã. Que dispensasse os dez reis...
Quase Quintiliano dava crença a tal recado. Mas,
como era da família de São Tomé – só acreditava vendo - pôs-se de sobreaviso para o desfecho do caso.
Naquela época, velavam-se os mortos nos templos. E,
assim, o caixão do “ morto-vivo” foi posto
em a nave da igreja.
Altas horas, chegaram três indivíduos, que eram o
terror daquelas paragens, dados os roubos e assassinatos que cometiam. Só seus
nomes metiam medo. Tempestade, Trovoada e Relâmpago. Começaram a contar suas
façanhas e dividir o produto do roubo, quando Trovoada disse: tenho um espadim
de ouro que vale dinheiro e não se pode usar. Que se faz?
- Joga nágua.
- Não, disse Relâmpago. – Introduz nos quartos desse
defunto!
Ao que o “morto-vivo” respondeu: Em meus quartos
não!
E os ladrões dispararam, deixando todo o produto do
roubo.
Cassiano levanta-se e começa a juntar a dinheirama,
quando sente alguém bater-lhe às costas,dizendo:
- Compadre, paga meus dez reis!...
Francisco das Chagas Val (1943), autor que assina
seus trabalhos apenas como Chagas Val,
nasceu em Buriti dos Lopes – PI. Poeta, contista e professor. Mora
Brancura de água mal se nota que existe
que branco é o espaço escrito em nuvem
ou uma garça pintando imóvel a paisagem.
Um peixe em movimento é branco e limpo
e ele se banha ao luar de suas escamas
quando nada na brancura de uma lâmina
ou de uma fina linha em branco silêncio.
Heitor Castelo Branco Filho (1929), nasceu
Murilo Moreira Veras (1933), nasceu em Parnaíba
– PI. Funcionário do Banco do Brasil
cedido ao Banco Central. Advogado, professor, escritor, poeta, editor e
produtor cultural. Estudos
Pedro Marques Barbosa (1930), nasceu em Crateús – CE. Morou muito tempo em Teresina, onde era carteiro e desempenhou
as funções de Gerente de Operações Postais.
Esteve preso em 1964. Crítico literário, contista e cronista, publicava nos
jornais. Tem um livro de contos. Participou de Piauí: Terra, História e Literatura, 1980, organizado e editado por
Francisco Miguel de Moura. É redator-chefe do jornal Diário d’Equipe, em Cuiabá
– MT, onde reside.
Nerina Castelo Branco (1935), professora
universitária, poetisa, cronista e contista. Obras: Poesias Modernas I e II
(1964 e 1965); Cruviana, 1979 (contos); Outros
Poemas, 1981; e Alem do Silêncio, 1994. Foi a primeira mulher piauiense a escrever,
em versos soltos, tecnicamente à moda moderna.
FALECIDOS
Olympio Costa (1925 – 2005), nome completo
Olympio Vaz da Costa Neto, nasceu em Teresina,
Piauí,, e faleceu nesta Capital. Advogado rábula e jornalista. Vocacionado para
a literatura, mas nenhum disposição para publicar seus trabalhos por conta
própria. Alma de poeta. Quem, vivendo em
Teresina dos anos 1950/1960, não o viu andando pelas ruas, sempre de cabeça
erguida, de terno e barba, fumando seu cachimbo, lembrando uma daquelas personalidades clássicas da
literatura, um Eça de Queiroz, um Ramalho Ortigão, ou um dos seus personagens? O crítico literário e cronista Miguel de Matos
fez esse depoimento a respeito de Olympio: “Conhece,
como ninguém, por ser um viajor irrequieto e constante, quase todo o Brasil. Já
distendeu os olhos sobre a vastidão das savanas gaúchas, aqui e alhures uma
casa atestando a vivência do homem. Os cafezais paulistas não lhe são mistério,
nem os pinheirais do Paraná. Da Amazônia misteriosa, em cujas florestas caminhou
a fio, trouxe nos seus embornais (...)
versos que traduzem, com incrível força criadora, os segredos eternos do Inferno Verde”. Mas não só versos. Em 1967, quando Geraldo
Borges e Francisco Miguel de Moura entrevistaram-no para o jornal O CLIP, ele
mostrou-lhes vários poemas inéditos e um romance denominado Pigoitas Bravias, também inédito, que
fora escrito numa dessas suas estadias fora do Piauí, com estilo ao jeito
regional, muitas palavras e expressões interessantes, bem escrito e com boa
dialogação (considerado como uma saga dos cassacos). Obra que nunca foi publicada,
deve estar por aí, na mão de um editor ou com a própria família. Por essa
participação, sempre foi considerado como afinado com o movimento clipiano,
não obstante a sua idade. Mas deixou poemas publicados na Antologia Poética Piauiense, Artenova,
Rio, 1974, e na Antologia de Sonetos
Piauienses, organizada por Félix Aires, Teresina, 1973. Dois poemas antológicos são a seguir mostrados
Judas e Cristo
Retumba em tudo sepulcral silêncio,
Como na campa em que repousa exangue
Heroi infausto de batalha inglória...
No ceu,
As nuvens
Vagando,
São negras.
Mas, de repente, o vento insano ruge,
A terra treme como em cataclismo,
Fulgura o raio, luzem mil clarões.
Ao longe,
Remorsos
De um homem
Que chora.
Dos agudos punhais, na consciência,
Sangram feridas, como dos espinhos
Sangrou o Cristo, num Calvário fero.
Num galho
Mais forte,
Um laço
Carrasco.
...dependurado se estremece um vulto;
Súbito cessam movimento e augústia:
É tudo calma, é tudo luz na terra!...
Mensagem noturna
Para Inezita
Ouve, ó noite de estrelas cintilantes
E rica de saudades, noite quente,
Escuta a verso tão sentido, ardente,
D’ amor infindo para dois amantes.
Recebe, ó noite, d’astros fulgurantes,
O viajor que vem d’andança ingente
A palmilhar a via transluzente
D’amor infindo para dois amantes.
Guia-lhe
os passospor entre a paisagem,
Ilumina-lhe, ó noite, esta viagem,
Com tuas luzes claras e brilantes:
Em que ele, andando pelo campo etéreo,
Veja as mil nuvens de negror cinéreo,
Com amor infindo para dois amantes.
Cid T. Abreu (1937 - 2004) nasceu
Como
seria bom
como seria bom
se eu rolasse a vida
com a esperteza dos meninos
que rolavam a bola
pelo bariri
e o placar
me fosse favorável
no
apito final
aprendi a contar
pelos urubus
que escureciam a tarde
para o pernoite
e algumas vezes errava
pelo retardatário
que se distraía
num fato de boi
os peitos das lavadeiras
eram bem maiores
que a lage
onde batiam roupa
só minha infância
entendia esse contraste.
Momento
seria bem mais fácial
em teus cabelos
o desfilar de rosas
cresceriam envergonhadas
no despudor do negro
ou pelo brilho do
brinco
onde finco
meus olhos
balançando em teu sorriso.
Jamerson Lemos (1945-2008), nasceu em
poeta forte, várias vezes premiado, tem uma dicção muito aproximada da
poesia-práxis, mas é originalíssimo, sem descuidar do acento existencial. Obras: estreia com Superfície do Vento, 1969, depois publica Sábado Árido, 1985, e Nos
Subúrbios do Ócio, 1996. Participou de várias antologias, inclusive de A Poesia Piauiense no Séc.XX, org. por
Assis Brasil. Deixou muitos inéditos,
entre os quais Istmo Soledad (prefácio
de Francisco Miguel de Moura). Premiado em vários concursos de poesia
promovidos pela Fundação Cultural do Piauí e pela Fundação Cultural Monsenho
Chaves.
Depois do deserto
Maripositas
brincam da luz
pepitas
vivas no Ar
não
cansam de voar
em
xis e em cruz
meu
peito vive a bailar
assim
me conduz
Mariposa
me reluz
à Luz
do Luar
sigo
por essa Rua
de
Alma nua
nem
sei pronde vou
tenho
pouco de oiro
trago-a
cravada no coiro
antes
do Vôo
Charada
Uma
pessoa não é só uma
São
duas três pessoas
Enigma
incógnita bruma
Noite
misteriosa voas
Tranqüilidade noturna das lagoas
Cabeça como sino soas
Diz-me que alma é verruma
Quantos somos em suma?
Vida é viagem
Viajar e margear
Floresta deserto penhas miragem
Corpo uma bagagem
Flor a florar
Passagem.
Josias Carneiro da Silva (1929 - l992), professor,
ficcionista e historiador de talento. Suas obras mais importantes: Simplício, Simplição da Parnaíba, 1978,
romance, e Abelheiras, 1991, história.
Folclorista e genealogista, em cujas áreas pesquisou e deixou várias
obras.
TEATRO
José Gomes Campos (1925 - ?) nasceu em Regeneração – PI. Professor (Escola Técnica Federal e Universidade Federal
do Piauí), fez o Seminário Maior,
Texto do Auto de Lampião no Além:
1º Quadro
‘(Gabinete de Lúcifer, no inferno. Material sugerido:
Um estrado, com o trono de Lúcifer, uma balança com um prato mais baixo que o
outro, uma garrafa de cachaça com o copo, um leque de cartas de baralho sobre
um pedestal, no qual se lê a inscrição “INSISTA, PERSISTA, NÃO DESISTA”, uma grande
corrente, lembrando a escravidão. A iniciar a peça encontram-se em cena apenas
o trono de Lúcifer sobre o estrado e a mesa secretária. Um coro atrás dos
bastidores inicia a peça. Canta toada de cordel, a estrofe abaixo):
Bem perto aqui do inferno
Vive um mal assombrado
Um bando de esqueletos
Num barulho achocalhado
São cabras de Lampião
Que se vão lá pro sertão
Do inferno escorraçados.
O que agora se vai ver
Espanta toda a plateia
Pois se preparem os fracos
Vão ter muita diareia
Uma cena do inferno
Lampião briga com cão
Muito grito, horror e peia.
Lampião, o cangaceiro
Expulso dos celestiais
Vem aqui para o inferno
Pedir asilo aos maiorais
Temos muita guerra à vista
Mistério e assombração
Muita morte e algo mais.
(Entram os repórteres. Vem trazendo os objetos do
cenário. À medida que os
Arrumam no palco, cantam).
1º repórter
(Trazendo a corrernte)
O trabalhador de hoje
É um pobre espoliado
O capitalista bochudo
Faz dele um diabo lascado
Só pensa nos lucros fartos
Às custas do pobre enganado.
(...)
2º
repórter
(Trazendo a garrafa
e o copo de cachaça)
O pobre e o rico se agarram
Sem vergonha nem temores
A danada da cachaça
De todas as marcas e cores
No alambique do inferno
Se enriquecem os vendedores.
(,,,)
3º repórter
(Trazendo o símbolo do jogo)
O jogo é pra toda gente
Um foco de perdição
Não ajuda, engana e mente
Nunca vi tanta ilusão
Mas só o pobre lascado
Se arrasa no furacão.
(...)
Após o coro e a saída do 3º repórter, desce
sobre a cena um pesado silêncio, entrecortado, logo após, por cantos de grilo,
coaxar de sapos e rãs)
Cão
Gasolina
(Entra,
assenta-se á secretária,liga o rádio e anota o noticiário. Os ruídos vão
diminuindo até desapareceram. Ouve-se um toque de caixa. Gasolina levanta-se.
Entra Lúcifer e toma assento no trono).
Cão Gasolina
(Com uma exsgerada
mesura)
- A
Lúcifer, detentor das riquezas e da prepotência, a saudação do seu humilde e dedicado
servo, Cão Gasolina!
Lúcifer
-
Alegro-me vê-lo sempre aplicado ao trabalho,meu caro Gasolina. Não me frustrei
por tê-lo nomeado chefe do meu gabinete...
Alguma notícia da Terra?
Cão Gasolina
-
Acabava de registrar o último noticiário. Posso lê-lo?
( N.
B. ESTE NOTICIÁRIO DEVE SER ATUALIZADO CONFORME OS GRANDES ACONTECIMENTOS DO MOMENTO.
É um trabalho que fica a critério do diretor e artistas. O mesmo deve ser feito
com referência a todas as críticas à situação do atualizado).
Lúcifer
(Lê o noticiário)
-
SANDITA – A atriz chilena Andina Santiago aterrissou hoje no aeroporto de Hail.
Trajava um vestido róseo e calçava um sapato grená, presente de sultão
Bendder-Abbas. A célebre estrela, ao descer do avião, deu três espirros. Seu médico assistente, porém, não deu importância
ao acontecido. Assim, a artista está em boa forma para executar o tão
esperado programa que cumprirá naquela
cidade.
BRASIL
– A revista esportiva PLACAR trouxe as medidas completas do jogador Sócrates.
Assim sua coxa mede...
Lúcifer
(Interrompe com uma batida do cetro no estrado)
- Basta!
Nunca ouvi tanta baboseira! Veja até onde chegou a subcultura dos meios de
comunicação da Terra! Leia apenas as notícias que possam interessar à execução
dos nossos planos!
Cão
Gasolina
- As
belezas internacionais em concurso de misses...
Lúcifer
- Não!
Não!
Cão
Gasolina
- O
lindo baile das debutantes, filhas de deputados...
Lúcifer
-
Também, não! Por acaso, Gasolina, você perdeu o censo crítico?
Cão Gasolina
-
Vaticano.
Lúcifer
-
Vamos lá, leia!
Cão Gasolina
- O
papa fez um novo apelo aos magnatas e milionários no sentido de se entregarem
com espírito de amor e justiça à solução do dramático problema da fome.
Lúcifer
(Indignado)
-
Ideia abertamente antidemocrática a de se viver falando
GERAÇÃO MARGINAL
O filosofo Arthur Schopenhauer,
Combinando o filósofo
com a pedagoga, chegar-se-à à conclusão
de que as gerações Meridiano, CLIP e mimeógrafo são continuidade, a
despeito do burburinho e da inquietude, da perplexidade e das viradas da
história. Continuidade maior ainda nas duas últimas citadas, pois singraram as mesmas águas turvas da “Revolução de
Resta, portanto, a
impossibilidade de marcação de datas para cada geração, que diz muito sobre os
inegrantes do que sobre seu tempo. No Brasil dos últimos tempos, por comodidade,
as décadas têm sido referências pelos anos que as iniciam: 1940, 1950, 1960,
1970. No caso do Piauí, onde tudo começa com bastante atraso, não podem ser
consideradas estanques: a geração clipiana praticamente começou no
meado dos anos 1960 e seguirá por aí até a morte dos seus
representantes/participantes, como a dos marginais ou do mimeógrafos, que vai do meado dos 1970 em diante.
Historicamente, a geração marginal (ou do mimeógrafo,
como queiram) surge no interior do estado e não na capital: é uma característica. Nos anos 1971/1972,
tanto em Picos quanto em Parnaíba, duas publicações eram feitas em mimeógrafo:
Voz do Campus e O
Linguinha. Ainda não se falava em livro.
O grupo de Parnaíba,
com a liderança e a participação efetiva de Alcenor Candeira, cria raízes e vai
constituir o Inovação, dando continuidade ao modo de fazer e aos propósitos
críticos da sociedade e da literatura
Mas o acontecimento-marco
da geração
mimeógrafo foi o lançamento do livro Ciranda, em Teresina, no ano de 1976. Cineas
Santos, o editor, declara: “Em 1976,
convoquei um ex-aluno, excelente poeta, para me ajudar a organizar uma pequena
coletânea com poemas de autores contemporâneos. Sem hesitar, o poeta Paulo
Machado saiu a campo e, em pouco mais de um mês, me apresentou os originais do
que viria a ser o livro Ciranda.
Eram textos de Francisco Miguel de Moura, Hardi Filho (os dois mais conhecidos), Dodó Macedo, Domingos Bezerra, João de Lima e o próprio
Paulo”. A coletânea, com representatividade
maior de poetas já característicamente da geração que estava se constituindo (os quatro menos conhecidos) foi lançada
num show denominado Cenas Piauienses: o Rio, no “Teatro 4 de Setembro”, em julho de 1976, valendo a aquisição
do livro como entrada.
Ali, de modo mais ou menos orgânico,
iniciava-se uma nova geração literária, no
Piauí. No começo, só uma pequena parcela publicaria livros individualmente. A produção
surgia através do mimeógrafo, em folhas soltas distribuídas nos bares e casa de
diversão, nas ruas e praças, daí o nome de geração
do mimeógrafo ou marginal.
Anos mais tarde, não
obstante se trate de um grupo de pouca homogeneidade, José Pereira Bezerra
tentou juntá-los num livro denominado Por
que Essa Lâmina nas Palavras,
Fundação Cultural Mons. Chaves, Teresina, 1993, embora não tenha feito uma
pesquisa exautiva, nem considerado autores já falecidos que, por terem mais ou
menos as mesmas características de estilo, deveriam ser evidenciados.
AUTORES FALECIDOS
Torquato Neto (1944 – 1972), nome
literário de Torquato Pereira de Araújo Neto, nasceu em Teresina – PI e faleceu no Rio de Janeiro. Foi o autor que mais influenciou os jovens do
final dos anos 70 para cá, talvez por sua militância no grupo baiano «tropicalista», ou por causa da morte inesperada,
em 9 de novembro, dia de seu aniversário, ou pela atuação na imprensa do Rio,
ou a ainda por tudo isto. A divulgação de sua obra póstuma, Os Últimos Dias de Paupéria (Rio,
1973), quase causou uma revolução poética no Brasil. Portanto, só alguns anos
após esses acontecimentos ele chega e se estabelece junto à moçada do
Piauí. O jornalista, historiador,
crítico Kenard Kruel recentemente publicou o volume Torquato Neto (ou A Carne Seca é Servida), 2001, com introdução, estudos e depoimentos
inéditos.
Dicção
nova, original, para iniciar, Cogito representa bem o estilo de
uma poética que tentou estabelecer e, se não conseguiu, foi por falta de tempo:
eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível
eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora
eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim
eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim.
Torquato Neto
escreveu pouco e viveu como poeta, foi um dos poetas trágicos da
modernidade. Outros é quem vêm
escrevendo sobre ele, juntando seus poemas, artigos e frases. Legiões de
“torquatistas”, o incensam e divulgam de norte a sul. Entretanto, sempre há uma
voz discordante: o crítico Affonso Romano de Sant’Anna, em entrevista a Glória Sandes, publicada na
página de cultura do jornal O Estado, disse que “ele não deixou obra que comportasse
avaliação definitiva”.
Na verdade, não há
avaliação definitiva. Mas, sem dúvida, Torquato deixou um nome que cobriu
sentimentalmente todo o Brasil, não importa se mais por conta do letrista
musical do que do poeta. Portanto, ler Poema do aviso final, de Torquato
ajuda na sua reavaliação.
É
preciso que haja alguma coisa
alimentando meu povo:
uma vontade
uma certeza
uma qualquer esperança.
É preciso que alguma coisa atraia
a
vida ou a morte
ou tudo será posto de lado
e na procura da vida
a
morte virá na frente
e abrirá caminho.
É preciso que haja algum respeito
ao menos um
esboço
ou a
dignidade hmana se afirmará
a machadadas.
Paulo Veras (1953-1983) nasceu em
Parnaíba – PI. Foi contista e poeta. Morava
Assis Brasil selecionou o poema Oferenda,
entre outros, para sua antologia:
Trago
nas mãos
um resto da noite passada
e entre os dedos o suco das estrelas
que como sábias irmãs
me fizeram companhia
Faltou tua orelhinha de búzio
onde eu escutava as marés
e retirava o sal amargo
com a língua em arpão
Esta memória de hoje
é apenas o retrato morto
de um corpo com impressões digitais
sobre a pele
Uma lembrança
que traz de volta
uma dor antiga
uma ferida que é uma boca
de tão aberta
E este peito
está tão cinzento
que chego a pensar
que chove nas vísceras
Ramsés Ramos (1962 – 1998), nasceu em
Teresina e faleceu
saudade me botou na parede
- há que chorar
mas eu sei que a rede
em que me reparto
é um banquete raro
tanto fino quanto farto
saudade triscou no gatilho
- impossível não prantear
mas eu sinto que o ato
entre o partir e o ficar
é o fico, não o parto
saudade remoçou meus desertos
- hei de carpir
mas eu vejo que a lei
de que é feito meu império
pertence à fina grei
do eterno mistério.
Wilton Santos (1955 – 2003),
nascido
“Manhã de sábado
(dia 19 passado), os urubus no telhado sinalizavam aos vizinhos que a
carne seca estava à disposição dos vermes. Arrombada a porta da casa,
localizada no Planalto Uruguai, Zona Leste de Teresina, lá estava o poeta morto
(não se sabe quando nem a causa – no óbito está que faleceu quinta-feira, 17,
de ataque cardíaco – mas o que isso interessa agora?)
Quando me deram esta informação – um soco no
estômago – pensei, comigo mesmo, o peta Wilton Santos morreu assim, sem dar
satisfação a ninguém, como sempre viveu.(...)
Wilson Santos foi um dos mais geniais e autênticos
da Geração pós-69. Vencedor (1º lugar)
no Concurso Torquato Neto de Poesia, promovido pelo C. A. de Letras, da UFPI,
1980, do Concurso de Poesia Falada na Praça e no Concurso Da Costa e Silva de
Poesia, estes últmos promovidos pela Secretaria de Estado da Cultura, em 1981 e
1982, respectivamente.
Wilton Santos é autor de diversos poemas desconcertantes – ora
ácidos, ora líricos, publicados em Cerca
de Arame ( 1979), Diadema (1982), Postais da Cidade Verde (1988), Poesia
Teresinense Hoje (1988), Mosaico (1991),
Ciclo Vital (1993) e Lente
de Contato (1995), entre outros
inéditos. Wilson Santos foi um dos mais solidários companheiros que tive na
luta pela criação da União Piauiense de Escritores – UNIPES, em combate ao imobilismo
das instituições culturais oficiais da época. Embora formado em Geografia pela
Universidade Federal do Piauí, Winton Santos ministrava não só aulas de
geografia, mas de cultura geral, na rede estadual de ensino. Assim, quem teve o
privilégio de vê-lo como professor, com ele muito aprendeu sobre a vida, em
todos os sentidos”.
Sinta na carne
É, irmão, não adianta fugir!
A realidade está na cara
Procure sugar
o fato
Coma o feijão e de sobremesa o prato.
Fato
O orvalho na calda da noite cai
Como uma gota de sangue
Denunciando a violência
Neste País.
“Por ter desafinado ‘o coro dos contentes’, em vida, pagou o alto preço de morrer jovem, só, praticamente anônimo. Mas nunca fez
concessão, nem pra morte. Natural de Picos (Jenipapeiro, atual Franciso
Santos), Wilton Santos, filho de Simplício Morais Santos e Alzira Maria dos
Santos, nasceu no dia 10 de agosto de 1955. Deixou. Deixou, além do pai (era
órfão de mãe), 13 irmãos, os filhos Wilkamayo e Mayta e os poucos amigos na
saudade”.
AUTORES VIVOS
São muitos os escritores
piauienses que continuam vivos, na liça, especialmente poetas. É, pois, uma
geração
Alcenor Candeira Filho (1947), nasceu em
Parnaíba – PI, onde reside. Advogado, professor, procurador do INSS.
Poeta, cronista, crítico, conferencista e historiador literário. Membro da
Academia Piauiense de Letras. Sua obra está consolidada. Livros: Sombras entre Ruínas, 1975; Rosas
e Pedras, 1976; A Insônia da Cidade, 1990; No Reino da Poesia, 2001; Das
Formas de Influência na Criação
Poética, 1980; Aspectos da Literatura Piauiense, 1993; A Insônia da Cidade, 1991; Literatura
Piauiense no Vestibular, 1995; Redação
no Vestibular, 1996, Memorial da
Cidade Amiga, 1998. O Crime da
Praça da Graça, 2008. Antologia
Poética, 2004.
Com aguma influência
de Drrummond, no início, logo superada, aponta para novos rumos, ou seja, aquele
referido por Heloísa Buarque de Holanda: “irônico,
ambíguo e com um sentido crítico alegórico mais circunstancial e independente
de comprometimentos com um programa preestabelecido.”
Autor que aponta
para a geração seguinte, é o primeiro piauiense a publicar livros no mimeógrafo. Pioneiramente, em 1972, com um grupo de jovens parnaibanos, funda o jornal “O Linguinha”, mimeografado, e participa do “Inovação” (1977), também fora do
sistema normal de impressão – órgão que fez mais sucesso de venda e de leitores
que a imprensa existente no seu tempo. Assim seu conterrâneo Renato Castelo
Branco o conceitua: «Hábil cultor da
forma, por vezes neoclássico, mas sempre postado diante do mundo como um poeta
de hoje.» Poemas que informam do
seu estilo:
Soneto
dos quarenta anos
Mergulho nos quarenta anos de idade
como um lobo raivoso e descontente.
Que auroras de porvir se agora outroras
do instante estão de fora tão presente!
Mergulho nos quarenta anos de idade
absorto no pretérito distante
onde no fluido que reduz o alcance
já não reluzem
mitos como antes.
Mergulho nos quarenta anos de idade
certo de que quarenta anos morri
e nessa morte, que é da vida o gosto,
mergulho, aos quarenta anos de idade,
tostado pelo sol, me
protegendo,
de sol a sol, da sombra do sol-posto.
Composição
quando de fixo,
palavra,
livre no livro
penso que podes
e que sobes montanha.
no entretanto,
és mais para plúmbea
que para plúmea.
onde o topo
da montanha?
Paulo Machado (1956), nasceu em
Teresina, onde reside. Poeta, contista, ensaísta e crítico de literatura e
arte. Formado em Direito, com especialização
Poeta denso e ao mesmo
tempo simples, visto que trata dos temas comuns da vida, trabalhando a linguagem
sem prejuízo do entendimento. Paulo Machado espelha bem sua preocupação com o
fazer poesia, no poema Esboço e, principalmnte em Poética,
do qual esta antologia apresenta uma parte:
fica o ranço das metáforas,
o
outono na velha aquarela.
no ponto
fica
a lembrança
das velas.
fica o
silêncio
o esboço do
poema, os múculos
rijos à
espera do agora.
fica a
certeza de carminhar e
em linha
reta,
não fugir nunca.
remar contra a corrente,lutar
sem temer os gospes sujos
dos que rastejam, como cães,
roendo os ossos da omissão.
fica a ânsia
de sentir o sangue queimando
nas veias até
o último momento.
fica um principio
não
temos o direito de trair
a poesia, crucificá-la
numa sexta-feira de passivismo.
Nas ruas da minha cidade há
lições?
(É preciso aprendê-las)
Desfazer o enigma da Rua Grande,
onde os revolucionários depredaram o bonde
e apagram os gestos dos ditadores,
numa rubra manhã de outubro.
(A malha da história sendo tecida pelas mãos
operárias)
Lembra o fantasma de um coronel loquaz
que acrescia cores a suas façanhas
e vadiava pela Rua da Estrela,
atravessando paredes,
sumindo na cinzentura da tarde.
Os paralelepípedos da Rua da Glória
Tinham a densidade do sono das tardes de verão.
Insisto:
aprender as lições que há nas ruas da minha cidade.
Na Rua Bela, era proibido amar.
(Há tempos proíbem as lições de liberdade no meu
País).
Na Rua dos Negros, francesas faziam amor
com os filhos dos coroneis.
Na Rua Paissandu, havia sol no coração dos amantes.
O tempo não apagou o que falavam os operários
da Companhia de Fiação, nos dias cinza da ditadura
Vargas.
Diziam coisas reais
aprendidas no galope das máquinas
e no silêncio das horas, nas noites insones.
Cineas Santos (nome literário de Cineas
das Chagas Santos) nasceu em Caracol
– PI, em 1948. Professor, poeta e contista. Livreiro, depois editor de muitos escritores da sua geração, um grande
movimentador da cultura e da arte. Criou a Oficina da Palavra, casa onde funciona escola, museu e
auditório para atividades culturais. Cineas tem a alma e o corpo daquilo a que
se dá o nome, vulgarmente, de ativista
cultural. Teve um conto selecionado para a revista Ficção, Rio de Janeiro.
Foi classificado em concurso nacional e internacional de poesias. Cofundador e
editor do jornal Chapada do Corisco (1976-77); idealizador do SALIPI
(Salão de Livros do Piauí),
que reune anualmente, livreiros, editores, professores, estudantes, autores e
leitores, além de outros agentes culturais correlatos; coordenador de A Cara
Alegre do Piauí, progama itinerante
de interiorização da cultura. É autor da letra do Hino de Teresina. Obras: Miudezas em Geral; Tinha que Acontecer, 1982; ABC da Ecologia; Poesia da Cidade Verde,
1988; Poesia Teresinense Hoje, 1988; Ô de Casa; Queda de Braço e Aviso Prévio Aldeia Grande, 1992; O
Menino que Descobriu as Palavras, 1992; e Baião de Todos (livro coletivo), 1996. Segundo Paulo Nunes, “Cineas Santos é um homem representativo da
cultura piauiense, em todos os aspectos”.
Nada além
O amor bate à porta
e
tudo é festa.
O amor
bate a porta
e
nada resta.
A um poema
Na
página branca, o poema freme
tão
vivamente pétala
que
posso sentir-lhe o aroma.
Verbo
transubstanciado em canto
acalanto
de um sonho
sem
pressa de desacontecer.
Pouco
importa o poema:
a
página nua recende a ti
e
posso respirar-te inteira
doce
evanescência...
luminosamente
bela
como
a claridade da hora.
Elmar
Cavalho (1956), nasceu
Metapoema
As meadas e as
palavras
são labirintos e teias.
Nelas os poetas se elevam;
nelas as moscas se enleiam
e se debatem
Os
As moscas, não.
Enigma
entre o som
o
sono
o
sonho
a
sombra e a sobra
eu me decomponho
em escombros
em farpas e agulhas
escarpas e fagulhas
desfeito
enfim
em fogo de artifício
feito
estrelas de mim
esfinge autoantropofágica que
não se decifrou e que a si
mesma se devorou
Durvalino Couto Filho (1953), nasceu em Teresina, onde fez os estudos
primário e secundário. Ainda jovem vai estudar jornalismo na Universidade de
Brasília. Inteligente e inquieto, faz experiências em teatro e cinema. Voltando
para o Piauí, começa a trabalhar como publicitário, desenvolvendo outras
atividades paralelamente: letristas, baterista e animador cultural. Nas suas
andaças por São Paulo e Fortaleza atuou no teatro e na música. Publica seu
único livro, Os Caçadores de Prosódia, 1994,
com gosto de inovação. O rei
estava ensimesmado é um poema que dá o acento geral de sua obra,
naturalmente influenciada por Faustino e Torquato.
O rei
estava ensimesmado,
De
sua boca nada se ouvir
-
nenhuma ordem para hoje,
nenhum
enforcamento.
Não
foi cobrado o dízimo da noite.
Um
escândalo arrebentou na economia
e não
foi liberado o pensamento
porque
o rei havia-se calado
e o país
inteiro adormecia.
O enclausurado urrou por entre as grades.
Mil acidentes com os boias-frias.
O bispo ficou celerado, possesso
e o diabo rezou a ordem do dia.
Nna iniciativa privada
forjaram-se falências desastrosas
com a mudez do rei que só ouvia.
Mataram cães de estimação
em mansões de beira-rio.
Comunidades se desintegraram,
crianças tornaram-se desafio
e a nudez das mulheres
virou prato do dia.
Adeus, véus de Alexandria!
Não houve festas nas periferias
e as mentiras aumentaram em abril.
Até que o rei declarou
num assomo de agonia:
“Nada mudou no Brasil.”
Nelson Nunes (1954), advogado, formado
pela Universidade Federal da Bahia, mora
Separadas as águas
desfilam as mulheres
as nádegas em pelo
no dorso de belas éguas
Apagadas as luzes do semáforo
passam as vacas
os úberes esplêndidos
deleitando os rebentos do tráfego
Baixadas as anáguas
suspensas as cópulas
guardam-se os filhos
para a próxima safra
Sustadas as mágoas
entoados os cânticos
irmana-se o sangue
de cordeiros e bárbaros
Descerradas as pálpebras
a luz sem qualquer obstáculo
cessada a utópica marcha
volta-se ao quotidiano espetáculo
Milton Borges (1960) nasceu em Teresina - Piauí.
Medico otorrinolaringologista, especialização em medicina do trabalho, realizou
cursos de aperfeiçoamento em vária capitais do Brasil e no exterior (EUA). Romancista
e contista, sócio fundador da ALEARTES (Associação de Letras e Artes de
Simplício Mendes) e da UBE (União Brasialeira de Escritores - PI). Recebeu
prêmios literários pela FUNDAC (Fundação Cultural do Piauí), com o prêmio
de “Fontes Ibiapina”, com os romances Destino
sobre Rodas, 2002; e Vale dos Mal Amados, ainda inédito.
Participou das antologias Escritores III, 2003, e Escritores
IV, 2006, ambas da UBE-PI; de Coletânes
Ilustradas de Escritores I e II,
em 2004 e 2005, coordenadas por Pedro
Costa, e do livro Alvorecer, em 2004
e 2005, coordenados pelo esritor José Mndes de Sousa Moura. Colabora na revista
De
Repente e outras publicações de Teresina. Em parte, seu estilo está no
conto a seguir:
O passeio
- Oi, esperando alguém?
A morena entreparou ao lado. Espiara-ade soslaio,
desde que abancara. Ou melhor, o pedaço das coxas musculosas, exibindo
generosamente de sob a minissaia esticada.
Não conseguia evitar. Por mais que tentasse. O
momento não era apropriado. Não estava em clima de flerte, o bar uma válvula de
refrigério na mentes prestes a explodir. Sem outra intenção.
Ademais estava acompanhada, ainda que não demonstrasse
satisfação na companhia. Parece até que discutiam.
Não notara interesse no olhar dela. Um só lampejo de
curiosidade. No entanto estava ali, sorriso acolhedor no canto da boca.
Quem diria!
- Talvez você...
Não perdia o jeito galanteador.
- Se é assim...
Apanhou o copo de uísque em sua mesa, onde estivera
bebendo com o rapaz, sído um pouco antes de ela haver se encaminhado ao
banheiro, um gesto sequer de despedida. Sentou sem cerimônia na cadeira defronte,
uma bolsa volumosa de alça no colo.
Mais gostosa que bonita, não importa, os atributos
físicos além das imperfeições fisionômicas.
- O cara da mesa?
Precavido, evitava equívocos.
- Alguém do passado.
Sorriu encantado. Uma agradável compensação para o fiasco
do dia?
- Essas coisas acontecem. – Raul, o simplório
psicólogo de botequim.
- E você, o que faz sozinho por essas bandas?
- Afogando as mágoas na gelada.
- Mulher?
- Nada disso.
- Uma pena.
Um latejar de curiosidade.
- Por que diz isso?
Foi direta: - Contrário podia ser útil.
- Mesmo? - Uma puta? Que decepção – O preço?
- Uma noite de emoção e...
- E...
- Carona até meu carro.
- Sem transporte aqui?
- Depois do que passei, não aceitaria mais nada do
ex. Decepção enorme.
Um presente um tanto oferecido. Não seria o
primeiro, Raul, uma solução para coraçãoes estraçalhados.
- Onde?
- Num estacionamento do Mocambinho.
- Levo até lá.
- Só isso? – Um travo de decepção na voz.
- Depois do nosso passeio.
Chamou o garçom, pediu a conta. Pagou a cerveja, o uísque
pago pelo acompanhante anterior.
O carro junto à calçada do bar, àquela hora de
movimento morrediço, na Duque de Caxias.
Um modelo popular de segunda mão, cuja possibilidade
de pagamento das próximas prestações (emprego perdido hoje), patinhava no campo
das cogitações.
Educado, abriu as portas, indicando a do passageiro
para a garota ( o nome? Oh cabeça, esqueceu de perguntar), que entrou acomodando
no banco. Em sua vez foi abordado por trás.
- Olá, otário.
O suposto ex-namorado da morena pressionava o cano
do revólver em suas costas.
- O quê...?- Um calafrio disparou em sua espinha.
- Precisando carona.
Outro cara se destacou do sombreamento contrário e o
empurrou com o parceiro para dentro do carro, surpreendentemente para trás da
direção.
Sentaram no banco traseiro.
Foi instigado, um toque de arma na nuca.
- Dirija.
A mão tremia, não conseguindo inserir a chave na
ignição.
A morena o auxiliou, gesto delicado,a acertar o
contato.
- Calma, nada demais.
Cabeça baixa, não tinha coragem de encarar ninguém.
- A pretensão?
- Nosso passeio.
- Pensei só nós dois.
Os rapazes explodiram em gargalhada.
- Não se achando egoísta? – O primeiro parceiro, aparentemente
o líder do grupo. – Problema, dois pobres pedestres?
O motor acionado.
- E agora? – Voz tremida, esperando ansioso a
deliberação do assaltante.
- Pegue o retorno, descendo para o Centro.
João Pinto (1951), nasceu em Luzilândia –PI. Escritor, professor de literatura, mora
Subo a escada atrás de Marina, em manhã diáfana e o
verão nos bogarins da Franca Filho, gente me intimidando no olhar, ando pensativo,
tenho vontade de acender cigarro, já na boca, falta fósforo, encaro os
transeuntes solícito, muitos deles me negam, talvez não tenha o hábito, me
constrange a maneira como me fitam, uma sensação me obriga a esconder, mas ao
fazer, deparo com um estranho, aqui, moço, me alegro do seu gesto espontâneo, a
mão dele se instala, uma baforada: apaga o palito, desculpe, era o único que
havia, sacode a caixinha no asfalto junto com meus desejos liquefeitos, desce a
escada momentaneamente, ainda se desculpando, eu páro com o cigarro na boca,
imaginando que o sabor das tragadas já era, desço à mão e machuco o cigarro,
com a sensação de um craque que perdeu uma grande jogada, lembrando que Marina
me vem, às vezes nas fendas do combogó do banheiro, o seu corpo é alcalino e
uma ilha de segredos para se contar, penso nela nesse domingo, doido para
chegar na sua porta e bater, descer à praia do Beça, e junto dela, me encantar
com o mar, suas formas primitivas de vida e a contingência do verde-escuro, escolho um lugar mais
distante, ela estende a toalha, Marina pega um bronze, muitos rapazes suspiram
suas ancas e esbarram em mim, o vento e o sol se encapelam,a praia vira um
festival de pernas e gritos, há uma alegria em tudo, na caixinha do sorvete ali
adiante, nos castelos de areia das crianças, nas embalagens dos descartáveis e
no azul clorofórmico do céu, alguém disse que o mar é o começo da gênese
humana, subo os degraus esmagando o cigarro, olho para trás, me espanto, lá
está o estranho me fitando, o coração se enche de músculo de saudade, coloco na
boca outro cigarro, sento no degrau, e espero a insolvência do instante, faltam
dois andares para chegar ao apartamento de Marina, o estranho se encosta na escada,
sorri, ôi,ôi, cadê o cigarro, devolvi à carteira, ah, fiz suposição, de que,
por exemplo, que você tinha sacudido no mato e se aborrecido, não, não, cigarro
tá uma nota, você procura alguém,sim, tá difícil, poucas são as pessoas que tão
aqui, por causa do Festival, acho, a praia tá assim de gente, quer acender o
cigarro, é bom, então suba comigo, a gente acende no meu apartamento, tá legal,
entro, deixo as sandálias ao lado da porta, não, por favor, entre com elas, se
deixar alguém pode levar, arranjo outra vez nos pés, o apartamento é pequeno, a
mobília além de escassa está em desordem e muitas roupas no chao, ouço também o
pingo no chuveiro desmantelado, me
convida ao sofá, desculpe, tou aqui mesmo,
observo os mínimos detalhes, uma geladeira pequena e um colchão no chão,
sente, por favor, não se acanhe, ela se dirige e abre a janela, e com a claridade,
o sol pinta, lá da banda do mar, pulsando pequetes, dando golfada, levanto do
sofá,risca outro palito e se achega a mim, outra pancada apaga o fogo, droga,
acho isso uma coisa por duas vezes, lembro que nos encontramos na escada, isso
é o vento, o vento é uma coisa chata, a gente se abaixa, me acocoro ao lado
dela, lança a chama, o fogo sapeca o
xerém do fumo, trago, despejando no rosto dela a chaminé,oh me perdoe, não
devia, que nada, e senta ali no assoalho, me apontando o piso, penso que bom ao
lado dela, nunca vi pessoa tão descontraída, em poucos minutos já preparou um
clima de uma grande amizade, a gente se fareja meio sem jeito, a buscar um
espaço ilhado de ternura, meu Deus, o biquini dela é azul, cor dos meus
alfarrábios, mas não pergunto se foi proposital, seria demais, aí ofereço, ela
apanha o cigarro, fumo por esporte, me diz, e nisso nasce o primeiro contato,
aí estão suas pernas depiladas as pirâmides deEgito e sua boca com batom o
arco-íres no meu céu de espera, fume mais, instigo o clima, me mostra uns
dentes até interessantes fragatas de bandeira oscilando, pergunto que hora se
desce, já vexado, não, não, me desculpo, te conheço de algum lugar, ela diz,
quem sabe da Faculdade, friso, pensa quando desvia o olhar para a estante, ah
isso mesmo, agora recordo,você não sai com Marina, sim, às vezes, vocês
namoram, bem não é namoro, amizade apenas,
o apartamento dela fica aqui ao lado, sei, já pintei por aqui diversas vezes,
ela está na praia com outro cara, até pediu que comprasse cigarro no fiteiro,
oh quem diria, deixo escapar o coração entre os dentes, isso é a vida, ela diz,
nisso puxa outro cigarro da minha carteira e pede fósforo, risco o palito, e o
fogo sangra na cabecinha e enche as porosidades do seu rosto, as nossas mãos se
rçam ocasionalmente, sinto em seus olhos um assustar de vento e uma alma de
flores, quando o vento polvilha seus olhos de cinza, oh que azar, vão ficar
vermelhos, tire aqui, me aproximo mais, seu hálito me despeja toneladas de
angústia, serei eu responsável, me pergunto aflito, sinto também que seus
gestos descontrolam, aí toco seu queixo, ela fecha os olhos, o meu coração se
precipita entre as fontes calcinadas da primavera, dói em alguma parte,
pergunto, apenas um ardido, onde, aqui, me aponta o canto do olho onde vejo uma
senzala, limpo seu olho amavelmente, seus braços me circulam, e ganham
turbulência gravitacional, o corpo dela se aglutina no meu formando um poente e
um santuário de águas tépidas, o biquini
se choca no chão e o vento entra em diagonal, degola as minudências dos
artefatos, feche a porta, alguém pode entrar, onde tá a chave, me parece no
trinco, levanto e a chave treque na porta.
João Bosco da Silva (1944), nasceu
Era de meu pai. O sinal conhecido na orelha esquerda
e a marca já quase apagada nas ilhargas identificavam-na como de sua propriedade.
Todavia no que se referia ao trato era como se fosse filha.
Nasceu de uma vaca bastante estimada, a Boneca, a
qual morreu pouco depois de morrinha. Órfã com tão pouco tempo de vida, a pobre
bezerrinha mal conheceu as delícias do amor materno e o sabor do leite
quentinho, pelas manhãs frias e tardes serenas.
Seu qubra-jejum passou a ser a mamadeira. Aquilo era
bom, porém já não recebia a carícia da língua morna a alisar-lhe o pelo macio.
Não obstante a falta daquele amor, agora só vagamente lembrado,sentia-se
recompensada pelo alimento e carinho recebidos. Desta maneira, a ausência da
mãe foi sendo preenchida. E por não ser ingrata, começou a retribuir os agrados
gentis de seu dono.
À hora mística do ocaso, que bom lamber aquelas mãos
de sal, após farta refeição de farinha molhada no leite morno, tirado das outras
vacas amigas. Era orgulhosa, isso era. Conhecia seu lugar, sua condição de
órfã. Não ia sugar tetas que a outros bezerrinhos pertenciam.Tinha pavor de ser
considerada intrusa. Daí haverem falhado as várias tentativas de adoção por outras vacas do
curral. Esperava que sobrasse algum leite e seu dono e amigo viesse dar-lho na
garrafa verde. Que bom quando ele rascava as unhas duras em suas orelhas pequeninas.
Ia degustando a mamada a vagar, saboreando e gozando os carinhos.
Sabia-se miúda e desprotegida, por isso, por isso se
entregava àquelas cócegas gostosas de todas as tardes. Que o amigo era pródigo
Estava crescendo. Percebia uma mudança sorrateira,
um não-sei-quê de indefinível, de diferente. Já não era mais criança, aliás
bezerrinha. Estava passando de uma fase a outra da vida. Virando adolescente.
Que estava crescendo era fato inconteste, embora continuasse mansa, mansinha.
José Ribamar Garcia (1946), contista e cronista
de boa cepa. A infância e a memória são o pano de fundo para reinvenção, nos
primeiros livros. Estreou com Imagens da
Cidade Verde, 1981(crônicas). Outras obras: Cavaleiros da Noite, 1984; Pra Onde Vão os Ciganos, 1990; Ao Lado do Velho Monge, 2003 - contos; Além
das Paredes, 1998, e Ressonância, 2008 - crônicas;
O bar do picolé
Na Praça do Liceu, esquina da Rua Simplicio Mendes
com a Desembargador Freitas, havia o bar onde se fazia o melhor picolé da cidade.
Tão natural que vinha com resíduo da própria fruta. Diferente daqueles
preparados com água e um pozinho colorido, vendidos nas ruas ou no Lindolfo
Monteiro em dia de jogo. O cara gritava picolé de tamarindo e, quando se ia
ver, era gelo puro. Da fruta mesmo um sabor distante, pra lá de Timon.
A mulher que atendia ao balcão era pequena e
magérrima. Tinha feições de índia e, nos olhos, uma tristeza que causava pena.
Não ria, nem falava. Recebia o freguês sem um obrigado. E movia-se devagar como
se carregasse um fardo de toneladas.
Por essa época, Milton Rodrigues ainda namorava tia
Aradi – namoro arrastado, sem fim. Eles costumava aparecer lá em casa duas ou
três vezes por semana, sempre depois do jantar, para marcar o ponto. Os dois colocavam as cadeiras de cipó no
corredor que dava para a rua e ficavam sentados, com intervalos de silêncio,
como se não tivessem mais nada o que um dizer ao outro. Asseguram que isso é
normal em longo relacionamento dessa natureza. Às vezes, ele levava o violão e
dedilhava notas desencontradas e trechos de canções românticas, que ela ouvia
atenta, com aquele olhar de apaixonada, sonhando com o casamento – que viria
oito anos depois. Mas sua presença me agradava, especialmente, quando me
mandava buscar picolés, que eu trazia numa vasilha de alumínio, com os dedos
das mãos enrijecidos. Valia, pois na distribuição minha cota era maior.
Numa dessas noites, tia Aradi comentou que a mulher
do bar estava tuberculosa. Conversa que ouvira no trabalho. A partir dali não
se compraram mais picolés. Foi o fim das farras que Milton patrocinava, sem
exibição. Havia preconceito contra essa doença. Ai de quem a portasse. Estaria
condenado à segregação, ao degredo domiciliar. A família isolava seu doente num
cômodo de onde jamais sairia. Ali aguardava a morte, às vezes antecipada pela
solidão.
O teresinense nunca foi de medo. Criado entre
trovões e coriscos, aprendeu cedo a tocar a vida, com coragem e cabeça
empinada. Mas, quando se tratava da tísica, ele pensava duas vezes. Até mais. E
exagerava nas precauções.
Tio Olinto assimilou esse hábito. Chegado do
Maranhão, entrou em pânico ao saber que a casa que alugara havia sido ocupada por
um homem devorado pelos bacilos de Koch. Não houve quem o tranquilizasse. Nem o
senhorio afirmando que pintara a casa com cal e a desinfetara com creolina. Desfez
o contrato e alugou outra na Rua Riachuelo.
Boato espalha-se mais do que fogo em palha seca de
carnaúba. A história da tuberculose na mulher correu e afugentou os fregueses.
Chegou o momento em que não havia mais o bar, nem a mulher, nem os picolés.
Rubervam Du Nascimento (1954), nasceu
Poema 4:
palavras secam
na pele dos vivos
poetas saem
em silêncio
deixam notas
debaixo das portas
a arma é a poesia
cilada guardada
no tempo
Sobre leis e profetas
cês que testemunham
um tempo em retrocesso
e defendem
um ceu de fantasmas
cês que se meterm
pra consertar a manhã
nem bem s’inicia
e se dizem donos
daurora
não importa
se as mãos
tão vazias
por favor
façam
pelo
menos
uma
menção
de amor
ponham
outra vez
a noite
no caroço de tucumã.
Menezes y Moraes (1951) nasceu em Altos, PI.
Jornalista, poeta, contista e crítico,
estréia em mimeógrafo, com Laranja
Partida ao Meio, 1975,
Oferenda
(sol – estrela)
Trago-te esta estrela da tarde
colhida no azul do mais puro céu
E a certeza da vida que se faz
sentida
com a argila das mãos
e o barro dos pés
- o sonho concretizado –
Trago-te ainda os metais desses
pássaros de ofício
nos tons jorrantes de suas
cachoeiras
E a ternura dessa tarde
que escorre macia
entre o cio da paz
e o por de sol dos teus cabelos
Rosa Kapila (1953), nome literário de
Rosa Maria dos Santos Kapila, nasceu em Teresina, PI. Muito cedo mudou-se para
o Rio de Janeiro, onde estudou e onde mora. Contista, romancista e crítica
literária. Escritora vocacionada, professora de língua portuguesa, literatura e
matérias relacionadas. Doutora
São nove horas da noite. Três trens já partiram após
sua chegada. Cansada de perguntar as horas passeia em volta das bancas de bolo
frito. Um guarda a persegue, pergunta se ela tem documentos. Não está vendo o
tamanho de minha bolsa? Diz isso para afastar a presença desconfortante do
homem. Guardava o silêncio da barriga, para preencher mais tarde de café com
leite.
Procurava manter uma certa tranquilidade,
Clotilde. A estação continuava iluminada
e o vai-e-vem de pessoas distraía muito mais do que ela imaginava. Não fazia mal.
Tomou sereno, poeira no nariz, meteu o pé na areia e lembrou das tapiocas que a
mãe fazia – todas fininhas e transparentes. Morria de tudo, menos de saudade.
- Aceita uma cerveja?
- Só se for no bar mais próximo.
Saiu com o desconhecido. Andando as horas passavam
com mais rapidez. A cerveja choca já lhe entorpecia. A mão áspera amaciava sua
cintura. Há quanto tempo não tinha um homem? Quando as plantas começassem a
chorar, voltava para a estação. A sandália se enchendo de areia. Tinha que
guardar alguma coisa para relembrar enquanto estivesse sentada naquele banco
duro. Começou a usar um recurso antigo – meteu o pé no sapato do desconhecido e
subiu... tranquilamente esfregava.
Primeiro dançaria um bolero no salão fuleiro. A
tristeza medonha por nunca ter desfilado num carro aberto de circo, chegava
agora. A pista furada prendia seus pés... já não existia mais cimento para ser
carregado pela vassoura. Pendia de um lado para o outro. Sentada, o fêmur latejava.
Saíram. Sentiu desejo e enfiou a cabeça no pescoço
do homem. Fixava a cara rapada, mais tarde apostaria em sua transformação.
- Mais cerveja?
- Uma só.
A barra do dia apontando, com dificuldade divulgava
os trilhos tortuosos. Junto ao desconhecido se sentia feliz. Entraram numa casa
pequena. Clotilde deita na cama. O homem apaga a luz.
São seis horas da manhã. A estação cresce.
Passageiros correm com medo de perderam o primeiro trem. Clotilde dobra o
chale, coloca-o na bolsa. Senta numa banca de laraja, puxa conversa com a mulher gorda...
- Vendeu muita laranja?
- Como a coisa tá, quem chupa laranja? Mas dinheiro
pra cachaça não falta.
- Se quiser posso ajudar a descascar...
Tira o gosto da cerveja amarga com duas laranjas
presenteadas pela banqueira, silenciosamente se afasta, agradecida.
(...)
Manhã distante, casa oculta por um jardim sem
flores, só gramado. A janela escancarada dava uma falsa sensação de liberdade e
consciência tranquila. A cortina de flores amarelas foi se pregueando aos
poucos até fundir-se numa só prega. Claridade! Um tapa num mosquito que quis
chupar seu sangue. Um avião que passou deixou fumaça no ar e ela escreveu um
nome no ceu. Esfregou as mãos a fim de sentir calor. A sensação de já ter morrido,
pagando pecados na Terra. Tão simples pegar na mão de alguém e atravessar a rua
correndo. Principalmente quando esse alguém era ele. Calafrio. Aflição incontida
em seus gestos. Segurou-a pelas braços para acalmar sua tensionalidade.
Carregada de emoções – prática e objetiva apenas para reviver. A preocupação
passando, como uma chuva pesada.
Se culpar por quê? Fazia agora a carta que não ia
mandar. Depois que ele saiu começou a olhar para o chão – viu lençois e uma
barata correndo. Meteu a mão na cabeça e decidiu: vou embora daqui nesta semana
ainda. Esta será a última imagem desagradável que recebo de presente desta
casa. Se deslocou engatinhando e foi até o banheiro, ficou olhando para sua
última mijada. Arrependida por não ter sido cruel. Poderia ter simulado...
feito um jogo... sabe lá o quê. Vomitou.
Ficou com ódio de seu vômito porque por mais que engulhasse não conseguia
curpi-lo fora, aquele gosto estava lá dentro em suas entranhas.
Desembarcou. Sem terra, sem nome. Uma rua como outra
a recebeu. Não sentiu desejo de perguntar onde estava. Sabia voltar para a estação.
Oston Lustosa (1957), nome literário de
Oton Mário José Lustosa Torres, nasceu em Parnaguá, sul do Piauí. Magistrado,
contista, romancista, ensaista, orador, autor dos romances Meia-Vida, 1999 e Vozes da Ribanceira, 2003, além
do livro de crônicas O Pescador de
Personagens, 2000. Foi Juiz de Direito
Ida e volta pensando na filha do pescador. Cortou,
carregou, subiu a lenha no caminhão.
Cheio de força e vontade, machadou com
desenvoltura e sucesso. Deitou por terra caneleiros, decepou angicos, fez
piquizeiros em toras curtas.Quando os dois ajudantes lhe perguntaram o porquê
da afobação, sorriu, desconversou.
Assar a caieira é o seu projeto. Pagas as despesas
do frete do caminhão, terá dinheiro de sobra. Um presente para Ditinha, a filha
de Galdino Canoeiro. Por certo, ela não recusaria, não lhe faria tal desfeita.
Dançou com ela, teve medo de lhe falar em namoro, noivado, casamento. Sim, quer
falar-lhe das três coisas ao mesmo tempo. Tem a seu favor a boa vontade do pai:
- “Tomara a menina se engrace do Zito...” –
contaram-lhe na venda de Bisô.
Vai e vem abastecendo a fornalha. A lenha seca de
marmeleiro faz línguas de fogo enormes que lambem o madeirame verde, ardendo-se
tudo
Estalos, chiados, pipocos... A lenha é toda brasa
viva,. Zito, com um gancho de pau, como se fora uma zagaia, enfia pedaços de
lenha na boca vermelha da fornalha. Seiva amarela, fervendo, escorre das pontas
cruas dos toros de madeira.
No ar, cheiro bom de milho assado, carne assada, torresmo...
É o cheiro que exala dos tijolos
queimando. Baro-de-louça, encarnado, forte; sem mistura, sem areia, sem
impurezas. Caprichoso o Zito. Mercadoria sua é de primeira. Ensinamento do
velho pai, aleijado, a quem o reumatismo anquilosante invalidou. Uma vida quase
toda no barro, na lama, na boca da fornalha.Tivesse a saúde, ainda o velho
Malaquias era homem para a madrugada no barreiro, a picareta nos pulsos... E o
milheiro mole de tijolos receberia o sol das nove horas. O quebra-jejum no beiço do barranco e o outro milheiro até o pino das doze. Pendido o
sol, cheio o bucho, mais barro, mais corte, mais um milheiro esparramado no
terreiro da olaria quando a tocha de fogo fizesse roda para cair no ocaso. Banhava-se
no rio, pitava o seu cigarro, ouvia a sua cantoria à porta de casa pela
boquinha da noite. Hoje... Um aleijado, as dores comendo-lhe o prazer de viver.
De cócoras, a um canto do barreiro, Zito volta a
pensar
Três coisas para lhe dizer: namorar, noivar e casar.
É homem direito, quer compromisso sério. Trabalhar é a sua diversão. Assina o
nome, sabe votar. Lê. Não vai deitar-se com as raparigas. Uma vez só deu
dinheiro a Zurica e não gostou da experiência.
Mira as mãos calosas, palmas gretadas, unhas
encardidas.Acaricia o peito nu. Quisera ter mãos finas, dedos longos... Como os
dedos do hippie. O tipo chegou ao Poti Velho faz pouco tempo. Aboletou um dos
cantos do salão do Centro Operário e fabrica aneis, pulseiras, brincos e
braceletes. Material brilhoso, amarelão, banhado a ouro talvez. Cigarro nas
fuças, cabelos longos, pele vermelha, nariz afilado. De onde veio ninguém sabe.
- “Oferecidas!...”
Pensa nas amigas de Ditinha. Estavam lá as três:
Jelita, Cissa e Cleonice. Davam risadas e estiravam os braços para o forasteiro
colocar as pulseiras. Com aqueles dedos finos, o marmanjo vai por brincos nas
orelhas de Ditinha.
- “Pronto! Vai comprar a menina...”
O cheiro do barro queimando tem agora o perfume da
fumaça do cigarro do hippie.
Como será isto de fumar maconha?... O Lico Passarinheiro
é fumador. Safado o Lico Passarinheiro. Come todas as moas do lugar. Partindo
pra cima de Ditinha, vai o que é homem.
“Meto-lhe a faca no bucho!”
Filete de fumaça estufa da tora verde de caneleiro.
Seguem-se o assobio e o pipoco como tiro de revólver. Zito não deixará que o
Lico Passarinheiro puxeo revólver. Debaixo do grandalhão, com faca no pé do umbigo:
- “Conheça que vai morrer, filho-da-puta!”
Como quem dá bordoadas de misericórdia no inimigo
acobardado, Zito com a lança quebra os dentes da fornalha. As brasas grandes
são os dentes do Lico Passarinheiro.
Dilson Lages Monteiro (1973), nasceu em Barras, PI, e mora
O galope das estrelas
Meus olhos tocam o campo
onde cavalgamos sonhos.
Ouço o mugido do gado
preservando o encanto da noite
e galopamos na tangente do açude
onde o céu se oferece para contemplação.
A madrugada corre ensandecida.
Minhas mãos alcançam as alturas
e degusto o oásis do sertão
onde cavalgamos sonhos.
William
Melo Soares (1953), nasceu
Assim aceso
eu vivo assim
de corpo e alma
peito aberto
aos meus irmãos.
esta canção
eu canto
e digo em viva voz
por mim
por ti
por nós
e esta chama
acesa assanha
amor dentro de nós.
Socorro Abreu (1967), nasceu
Já desapareciam os últimos raios do sol quando Berenice saiu da
casa de sua irmã Laura, onde passava os dias. Pela manhã auxiliava os três sobrinhos
nas tarefas escolares, à tarde ia ao colégio e somente à noite retornava para a
casa dos pais. O caminho que separava as duas residências não era longo e ela
aproveitava esse tempo que estava longe das atenções dos familiares para
coordenar os pensamentos, já que estes a perturbavam tanto ultimamente.
O espetáculo que o sol proporcionava ao entardecer deixava-a
angustiada e oprimida, e se lhe perguntassem a razão, não saberia explicar. Não
conseguia nem mesmo entender o porquê de tudo aquilo; aliás, como muitos outros
porquês que estavam presentes em sua vida e ela não encontrava uma única
resposta, sequer, que a satisfizesse ou mesmo que esclarecesse seu pequeno
mundo tumultuado.
Durante a pequena caminhada, as imagens da infância se faziam
presentes transportando-a para os seus primeiros anos de vida na tentativa de
buscar a origem do enredo no qual estava engalfinhada.
Nascera em uma província, lugar pequeno, onde todos sabiam da vida
de um, e um sabia da vida de todos. O lugarejo era dividido praticamente entre
os parentes, excluindo apenas uns poucos arrendatários, o que formava assim uma
só família.
Nessa comunidade se destacava um enorme jequitibá que ficava às
margens da rua principal, era tido como árvore símbolo do lugar. Ao longe as
palmeiras dos buritizais erguiam-se majestosas contracenando com um azul
límpido que era visto quase que constante. As ruas estreitas se faziam notar por
toda parte e as casas quase todas respeitavam antigas construções. Os membros
mais antigos detinham todas as decisões importantes e bem poucos podiam fugir
do que era estabelecido. Foi em meio a essa grande família que a pequena
Berenice nasceu, cresceu e se tornou adulta antes mesmo de chegar à adolescência.
Era uma criança tímida, calada e reservada no meio de seus cinco irmãos, onde o
carinho e a atenção dos pais quase não existiam e eram disputados sutilmente
para não demonstrar sinal de fraqueza. Apenas o trabalho era o que todos
aprendiam desde pequenos, os sentimentos pareciam não existir, e nem mesmo eram
questionados. Pensamentos que denotassem afetividade não passavam por aquelas
sete cabeças. E foi assim que Berenice aprendeu que o único sentido dado à
vida, era o trabalho e como precisava de muita atenção para assimilar o
trabalho doméstico que a mãe explicava uma única vez, Berenice teve que
aprender a desenvolver com rapidez a inteligência. Com isso passou a ser
observadora e atenciosa. Aprendia
rápido, mas nem por isso recebia algum elogio da mãe.
Só havia uma coisa que temia: os estranhos. E quando acontecia de
alguns aparecerem à sua casa, ela corria a se esconder, para logo depois ser
caçada e exibida como se fosse um animal raro para logo depois ser caçada e
exibida como se fosse um animal raro
Dos inúmeros parentes que tinha, a todos tratava com respeito e
obediência e dos muitos a quem chamava tio, nem mesmo sabia o porquê, apenas
fora acostumada assim, tornando-se um hábito entre eles. Mas dentre esses,
apenas um lhe prendia mais atenção: era seu tio Albena. Com a pouca idade que
tinha, não conseguia entender a dimensão desse parentesco, como também não
compreendia porque gostava mais dele que dos demais. Não sabia por que ele não
frequentava sua casa como os outros irmãos dele faziam; não alcançava o porquê
daquela atenção singular e silenciosa que ele parecia lhe dirigir à distância;
não sabia o motivo do nome dele ser quase que proibido dentro da sua casa; não
conseguia entender por que os pais dela pareciam detestá-lo... E assim eram
tantos porquês que a pequena Berenice se perdia sem respostas.
O que sentia em relação ao seu tio Albena, fugia-lhe a razão, mas
como que em um pressentimento entendia que era melhor não participar a ninguém,
o que não era difícil fazer, já que pouco conversava e poucos lhe dirigiam a
palavra e, demais, conhecia também a língua cruel da sua grande família. Quando
acontecia de alguém se desviar da rota que eles estabeleciam, a língua agia
como um açoite no lombo do infeliz que passava a ser desacreditado para todo o
sempre. E assim, eles julgando fazer justiça, atiravam suas vítimas à sarjeta
sem uma segunda chance. Ela, não querendo correr esse risco, se fechava cada
vez mais com suas dúvidas, sentimentos e interrogações. Era uma criança de
forte personalidade, mas vivia ensimesmada.
Das poucas lembranças que tinha da sua infância, as que mais lhe
agradavam eram os dias de domingo quando Albena aparecia no povoado, já que
durante a semana ele trabalhava na cidade. Não compreendia o que ele fazia, mas
sabia que estava ligado à política, o que também ainda não conseguia entender,
mas suspeitava ser esse um dos motivos da rivalidade entre seus pais e ele.
Marcos Freitas (1963), nascido
fuga de corrente?
quem sabe
meu coração
não tem voltímetro
subito?
quem sabe
meu trapézio
não tem lona
chuva de maio?
quem sabe
meu querer
não tem ensaio
desvario?
quem sabe
minha
calçada
não
tem meio-fio.
Lara
Larissa (1985),cujo nome completo é
Lara Larissa de Araújo Lima, nasceu
Teresina, PI, mas residiu em várias cidades do interior, em virtude de ser
filha de Juiz de Direito. Desde cedo, no
Colégio D. Bosco, onde fez o Fundamental, mostrou grande inclinação para as
letras, tendo publicado seu primeiro livro, Primeiros Contos de Lara, em 1994. Entrou para a Universidade aos
16 anos e foi aprovada em dois cursos: Direito e Jornalismo. Em 2004, lança A Terra dos Sonhos Mortos, romance que
o médico e crítico literário Humberto
Guimarães, da Academia Piauiense de Letras louvou, apontando a escritora como
revelação: “O
estilo singelo como o de Saint-Exupéry em o “Pequeno Príncipe”, como o de Maurice Druon em “O Menino do Dedo Verde”, como o de Richard Bach em “Fernão Capelo Gaivota” e “Longe é um lugar
que não existe”, segue, como esses autores, um fio condutor de idéias
positivas, porém bem mais objetivas, saindo do pessoal da auto-ajuda para o
social na perspectiva histórica renovável” . Lara Larissa é um fenômeno literário, na prosa,
comparado ao de Raquel de Queiroz.
Outros autores desta geração que marcam presença, com livros
individuais e participações coletivas, por isto o seu registro, embora
resumidamente: Carvalho Neto, Élio
Ferreira e Zózimo Tavares:
Carvalho Neto (1944), nome literário de João Ribeiro Carvalho Neto. Nasceu em Amarante – PI. Formado em Odontologia pela Univesidade
Federal do Ceará. Poeta e dentista.
Publicou Variantes do Berro, 1978; e
Arquitetura do Ser, 1982. Participou
da antologia Mão Dupla (poetas do
Piauí e Ceará), 1994. Poesia com acento popular e, de certa forma, aproximada
do tropicalismo de Torquato Neto.
Élio Ferreira de Sousa (1956), natural de Floriano – PI.
Poeta e professor de Literatura,
ensaísta. Segundo Ronaldo Alves Mousinho, “Élio
Ferreira joga com as palavras num sigular malabarismo de efeitos polifônicos e
cênicos”. Produz pouco, mas com muita criatividade. Seu estilo é singulariza-se
quando joga contra as diferenças sociais, sem contudo descuidar-se do lado subjetivo
humanizador. Obras: Canto
sem Viola, 1983; Poemartelo,
1986; O Contra-Lei, 1994; e Né Preto, 1988 (em parceria).
Zózimo Tavares (1962), nascido
TEATRO
Presença destacada, tanto em publicações quanto em
apresentações teatrais, são Aci Campelo (1955), Wellington Sampaio (1959) e Afonso Lima (1954).
O três autores publicaram importantes peças no livro A Nova Dramaturgia Piauiense, da Fundação Cultural Monsenhor
Chaves, Teresina, 1989.
Aci Campelo (Francisco Aci Gomes Campelo)
nasceu em Lagoa da Pedra-MA. Formado
Wellington Sampaio (nome completo: Wellington
da Silva Sampaio) nasceu
Afonso Lima (José Afonso de Araújo
Lima), natural de Campo Maior –PI, formado em Direito e
Nenhum comentário:
Postar um comentário