MODERNIDADE

 

   III

                                              MODERNIDADE

 

“as ondas que voltam sobre as mesmas praias,

noivas desconhecidas a cada novo encontro.”

 

                              Alberto Da Costa e Silva

 

 

 

                                GERAÇÃO  MERIDIANO

                             

          

          Nos anos finais da década de 1940, um grupo de jovens se reunia em Teresina, quer na redação dos jornais, quer sob a forma de associações literárias. Inicialmente,  tem-se o depoimento de um desses jovens, naquela época, jornalista Afonso Ligório Pires de Carvalho, que depois se tornaria um elegante contista, aventurando-se também pelo romance e pela  memória com desenvoltura. Ele conta:

          Saí de Teresina para Recife, forçado pela mudança de domicílio da família.(...) Eu era apenas adolescente.  Mesmo assim , já havia fundado em Teresina um jornal chamado O Autêntico, 1945, e participava dos movimentos do Clube dos Novos, 1946, ao lado de Paulo Nunes, Hindemburgo Dobal, Vítor Gonçalves Neto, O. G. Rego de Carvalho, Edmar Santana e outros. Vítor, em entrevista publicada em Teresina, lembra o meu desempenho. Hindemburgo igualmente deu o seu testemunho na revista Presença, nº 20 (1º semestre de 1993), onde diz que O Autêntico, feito pelo Afonso Ligório, era o jornal do movimento intelectual da época. Em O Autêntico publiquei meus primeiros contos.”(Trechos de Carta de Afonso Ligório, de 10 de junho de 1994).

Depois veio a revista Meridiano, feita por O. G. Rego de Carvalho, M. Paulo Nunes e H. Dobal, que ultrapassaria a década, indo até os anos 50, deste século, embora tenha tido apenas três números. A principal figura da revista, seu  editor, era O. G. Rego de Carvalho.  Ela ficou mais na lembrança  do que os demais órgãos literários que reuniam a moçada intelectual, por isto bem mereceu dar seu nome à geração.

          No rastro da Geração de 45 nacional, o movimento Meridiano abjurava Drummond, os poetas de 1930 e o regionalismo de seus romancistas, mas no fundo os imitava. Àquela época, Martins Napoleão já era lido e festejado no Piauí, com mais frequência.

          Contemporâneos, colegas de colégio ou comungantes das mesmas idéias,  além dos já citados diretores da revista «Meridiano», eram  Fontes Ibiapina, Álvaro Ferreira, Esdras do Nascimento,  Álvaro Pacheco,  Afonso Ligório Pires de Carvalho e Osvaldo Soares do  Nascimento, que completam o grupo  dos que continuariam ligados às letras. A estes, pela idade e pelas as ações que desenvolveram em prol da cultura, podem ser citados Celso Barros Coelho,  Ribamar Oliveira, Vítor Gonçalves Neto, Camilho Filho, José Maria Ribeiro,  Heli Santos Piauilino, Eustáquio Portela e Edmar Santana. Que participavam da Arcádia, outra organização cultural surgida naquela década.   

                         

                             FICCIONISTAS E POETAS

 

O. G. Rego de Carvalho (1930) nasceu em Oeira – PI. Formado em Direito, lecionou no Liceu Piauiense, trabalhou no Banco do Brasil (aprovado em concurso público nacional, em 1952 – 1º lugar). Estudou nos  Colégios Diocesano e no Liceu Piauiense. Ganhou muitos concursos literários, o primeiro foi o da revisa A Cigarra, quando passou a colaborar nos periódicos do Sul (Jornal de Letras, Correio da Manhã, Diário de Notícia, O Cruzeiro). Membro da Academia Piauiense de Letras e laureado com prêmio “Coelho Neto”, da Academia Brasileira de Letras. Estreou em livro, com o romance Ulisses entre o Amor e a Morte, 1953.  Em seguida publica Amor e Morte, 1956, uma coleção de contos que não quis mais reeditar. Entretanto alguns deles foram revistos e publicados nas revistas O Cruzeiro e Ficção, do Rio, e na antologia  Piauí Terra, História e Literatura, 1980.  Seus  romances Rio Subterrâneo, 1967 e Somos Todos Inocentes, 1971, tiveram a primeira edição publicada e distribuída nacionalmente pela Editora Civilização Brasileira – Rio de Janeiro). Além destes publicou a novela Amarga Solidão, 1979 (1ª edição encartada na revista Cirandinha), tendo sido reeditada pela Fundação Cultural do Piauí, 1988.  São belas  obras de ficação onde os sentimentos vicerais do ser humano são tratados com profunda emoção e constante maestria. Trabalhando constantemente sua obra, até a exaustão, reedita-a escoimada de imperfeições, para apresentar o melhor estilo na língua portuguesa, só encontrando paralelo em Eça de Queiroz.  É também o mais musical dos nossos escritores. Uma referência naturalmente é José de Alencar, superando-o em muito. Quanto a sua feição psicológica, não terá nenhuma relação com Machado Assis, salvo no alcance da alma sofredora, mas sem a ironia daquele. Talvez O. G. Rego de Carvalho seja a confirmação de que «a música é a lógica da alma», segundo expressão de Ascendino Leite, outra das leitruas e possíveis influências de O. G. Rego de Carvalho, grande leitor da melhor literatura universal, de Dante a Camões, de Dostoiévski a Tolstói, de Flaubert a Balzac.

Disse o poeta Carlos Drummond de Andrade: “De Rio Subterrâneo tierei forte sensação de obra calcada no que o homem tem de mais dolorido e profundo, e trabalhada com profunda consciência artística. É desses livros que a gente não esquece.” Como página antológica do seu estilo, eis uma parte do primeiro capítulo de Rio Subterrâneo, 10ª edição, Renoir Editora, Teresina, 2009:

 

                                    Limbo

 

Nada distraía a atenção de Lucínio, preso, há dias, na doença do pai. Era doloroso suportar o afastamento: saber que o velho sofria, escutar-lhe os resmungos noite afora, ouvir sua respiração desde o corredor – e não poder fitá-lo nos olhos indormidos.

Muitas vezes, detendo-se ante a alcova, mal continha o impulso de entreabrir a porta, se não para entrar, ao menos disposto a revê-lo. Lá dentro, zonzo de angústia ou em delírio, José febricitava, sob a vigilância da mulher, que o assiste em tudo e quase nunca o deixa só.

“Por que papai evita minha presença?” Lucínio não compreendia. A mais ninguém José detestava nas crises; somente por ele é que se trancava naquela solidão enfermiça, como se vê-lo fosse causa de novos sofrimentos. “Entretanto, sinto que não me odeia. Bom, é louco por mim”.

Imerso nesses pensamentos, o jovem afastou-se da quinta e desceu o barranco à beira do rio, coberto de jitiranas,detritos das enchentes e espumas que as ondas traziam num baque surdo, profundo. A correnteza impetuosa era um convite à loucura: arrastava a imaginação remoinho adentro, com um rumor de vozes abafadas, atraindo o espectador desprevenido para a morte. Lucínio arrepiou-se, recuando a tempo. De novo, o pai: sua alienação fazio-o padecer, aguçando-lhe a vontade de substituir a mãe nos desvelos, em especial nas noites frias de inverno.

Nessa tarde escura, cor de cinza, a atmosfera parecia fechar-se, impregnando-lhe os sentimentos, já desolados, dos tons soturnos da natureza. O vento gelado feria-lhe o rosto, zunindo nos coqueirais e vergando as mangueiras pendentes de frutos. O céu enegrecido por densas nuvens prenunciava desespero: o pai aos gritos, a mãe querendo acalmá-lo em vão, e ele impotente diante dessa tortura, a reprimir a dor em silêncio. “Basta de chuva!”

Um apito prolongado desviou-lhe os olhos para a ponte. O trem se aproximava, despedindo fagulhas pela chaminé abrasadora, a estremecer o chão em volta, ao compasso de seu trepidando movimento. A fumaça branca subia aos poucos, num vivo contraste com as nuvens cinzentas e as águas vermelhas do rio, onde um vareiro ainda jovem lutava contra a força da correnteza,  tentando descobrir um porto seguro para a balsa.

O Parnaíba há muito transbordara do leito, submergindo as coroas que se formavam ao longo do curso, nos meses de estio. Engrossado pelos afluentes e pelo aguaceiro constante que despencava, fora alagando os baixios, desfazendo roças, subindo ribanceiras, até se tornar indômito. Já fizera duas vítimas, que engolfara no turbilhão, à vista dos canoeiros assustados.

Porém a fase aguda ia passando. O volume reduzia-se lentamente, permitindo que um lençol de lama e sujeira amortalhasse os capins submersos e os arbustos desgalhados, que resistiam assim à erosão do solo e à voragem da torrente. Um martim-pescador correu ao nível das águas, e voou para o céu. No outro lado do rio, morcegos ondulavam aos bandos, por sobre o arvoredo do bosque e o campanário da matriz.

Logo mais, a  noite. Lucínio estremeceu só em pensar na insônia que iria sofrer, contendo-se ante a porta do quarto, enquanto a chuva amorteceria as imprecações do pai doente. Até sua mãe se ocultava dele nos últimos dias. Quisera arrancar-lhe uma confissão, e não pôde. Marieta ouvira-o reservada, a roer as unhas, os olhos fitos num ponto longínquo. Nunca ele desvendara o mistério que envolvia essas criaturas estranhas, que vinham emagrecendo com o passar dos meses, como se uma chama interior lhes devorasse as energias.

E não apenas o corpo que definhava. Também o espírito. Distante era o tempo em que sua mãe, alegre e cheia de vigor, enchia a casa com a ruidosa presença, a tomar conta do sítio, de ânimo forte. Hoje está envelhecida, meio absorta, com uma expressão dura no olhar. Não se importa com o asseio, deixando essa parte sob a vigilância de Odete, que ainda não sabe impor-se às empregadas e, por sua vez, não é muito zelosa, preferindo subir na cerca, perto dos umbus, a ter de empunhar uma vassoura.

Sua irmã tinha o corpo adolescente e a impulsividade de uma menina. Por falta de assistência materna, crescia solta à beira do rio, voluntariosa, brigando com os moleques e os grajeiros vizinhos, de todo alheia ao drama que amargurava a família. A mãe queria protegê-la contra tais dissabores, e por isso sempre a conservava longe da quinta, durante as crises. Agora mesmo Odete se encontra em viagem com Dulce, tia velha que a estima e em cuja residência ela costuma passar semanas inteiras.

Ah, se Lucínio pudesse apagar a frustração da consciência! A fuga já não lhe parece covardia: nada pode fazer para minorar as angústias do velho, diminuir-lhe a tortura das noites agitadas. No entanto ele não se esquece um só minuto de que sua própria vida refletirá eternamente esse drama doméstico. ‘Admirável, saber que o destino de um homem sofre as repercussões de existências alheias’. Poderia falar assim? Existiria ele divorciado dos seus, de sua essencia íntima, como uma árvore sem raízes?

‘O que não devo é pensar’, refletiu, verifiando com surpresa que se distanciara do sítio, estando próximo de Timon. O frio era mais intenso e o céu mais negro. O vento trazia as primeiras bagas de chuva – violentas como pedras. Gentes que vinham da capital, após o labor, saíam ligeiro dos botes e das lanchas, e procuravam abrigo nas bodegas, ou debandavam em correria rua acima, na esperança de ir ter em casa antes que a tempestade caísse.                           

         

 H. Dobal (1927-2008), cujo nome completo é Hindeburbo Dobal Teixeira, nasceu em Teresina. Poeta lírico singular. Embora adote alguns temas e formas do modernismo de 45,  não estacionou naquelas metáforas e imagens  herméticas; ao invés, inovou-as com o cheiro da terra, o gosto da simplicidade e do quase sempre bom humor. Sem contar os pequenos ensaios praticados em Teresina, na juventude, começou a publicar na imprensa literária do Rio. Os livros vieram mais tarde. Participou primeiramente da Antologia dos Poetas Bissextos Contemporâneos, 2ª edição, de Manuel Bandeira, 1964. Livros: O Tempo Consequente, 1966;  O Dia sem Presságios, 1970; A Província Deserta, 1974;  A Cidade Substituída, 1978;  Os Signos e as Siglas, 1986; Uma Antologia Provisória, 1988;  Efêmera, 1995; e mais dois livros de prosa. Comentário de Manuel Bandeira: “Poeta ecumênico, chamou Odilo a Dobal no seu tão belo e compreensivo estudo apresentando o novo poeta. Mas eu prefiro dizer poeta total.” Nos últimos anos exerceu grande influência, especialmente a partir da volta para Teresina, onde  firma residência. Segundo O. G. Rego de Carvalho, Dobal é o segundo maior poeta piauienses, pois o primeiro é, sem dúvida, Da Costa e Siva. Três poemas dos  mais característicos do fazer poético dobaliano vão transcritos a seguir:

 

                        Campo Maior

 

Ai campos do verde plano

todo alagado de carnaúbas.

Ai planos dos tabuleiros

tão transformados tão de repente

num vasto verde num plano

campo de flores e de babugem.

 

                        Ai rios breves preparados

de noite e nuvem. ai rios breves

amanhecidos na várzea longa,

cabeças d’água  do surubim

no chão parado dos animais,

no chão da vas e das ovelhas.

 

Ai campos de criar. fazendas

de minha avó onde outrora

havia banhos de leite. ai lendas

tramadas pelo inverno. ai latifúndios.

 

               Réquiem

 

                       Nestes verões jaz o homem

sobre a terra. E a dura terra

sob os pés lhe pesa. E na pele

curtida in vivo arde-lhe o sol

destes outubros. Arde o ar

deste campo maior desta lonjura

onde entanguidos bois pastam a poeira.

 

E se tem alma não lhe arde o desespero

de ser dono de nada. Tão seco é o homem

nestes verões. E tão curtida é a vida,

tão revertida ao pó nesta paisagem

neste campo de cinza onde se plantam

em meio às obras-de-arte do DNOCS

o homem e outros bichos esquecidos.

 

                   Os amantes

 

Eis-me de novo adolescente. Triste

vivo outra vez amor e solidão.

Canto em segredo palpitar macio

de pétala ou de asa abandonada.

 

Outro amor em silêncio e na incerteza

oprime o coração desalentado.

Ó lentidão dos dias brancos, quando

a angústia os desejos breves como um sonho.

 

Insidioso amor em minha vida

reverte o tempo para o desespero,

a inquietação da adolescência,

 

e o pensamento me tortura, prende

como se nunca houvesse outro consolo

que não é mais de amor. Porém de morte.

 

Paulo Nunes  (1925), nome literário de Manoel Paulo Nunes, nasceu em Regeneração, PI. Professor universitário, técnico em assuntos educacionais do Ministério da Educação, aposentado. Orador, cronista e ensaista. Na juventude, chegou a escrever contos que, em virtude de sua autocrítica, ficariam inéditos.  Foi Secretário de Cultura, quando reorganizou o Conselho Estadual de Cultura e reativou a circulação da Revista Presença. Assessor do Ministério da Educação e do Departamento de Ensino Fundamental – MEC. Membro da Academia Piauiense de Letras, presidiu a instituição depois da morte de A. Tito Filho.

Como educador, afirma: “Participei de todos os eventos principais da educação no Piauí, como a criação da UFPI, cujo trabalho de preparação dos documentos básicos coordenei, tendo ainda acompanhado de perto a tramitação do processo no Conselho Federal de Educação. Fui cotado para ser reitor, mas os donos do poder político dominado pela ditadura militar implantada em 1964, excluíram meu nome de tal cogitação, sob a pecha de subversivo que me acompanharia na vida pública durante aquele ignominoso período.”

 Na juventude fez crônicas, mas firma-se na crítica literária. Ele mesmo declarou: “ Em 1946 criamos o Clube dos Novos. Foi a primeira instituição que fundamos e a que presidi. Escrevíamos nos jornais e editamos a revista Meridiano, entre 1947 e 1950, que ficou conhecida nacionalmente. (...) A Academia era alvo de ataques dos plumitivos que surgiam querendo fazer literatura.”(Revista Educação e Arte”- Teresina, sem data, mas circulou em fev./2011). Obra: A Geração Perdida, 1979; A Província Restituída, 1981; O Discurso Imperfeito, 1988; As Solidões Justapostas, 1992; Tradição e Invenção, 1993; Modernismo & Vanguarda (I e II) 1996 e 2000; Tradição e Invenção (Nova Série), 1998; As Duas Faces da Nossa Cultura, 1999; e Tradição e Modernindade em Eça de Queiroz, 2000, todos de ensaios e crítica literária. Além dos livros, é rica e enorme sua produção em jornais e revistas literárias, entre as quais a Presença, do Conselho Estadual de Cultura, cujo órgão há alguns anos preside. Página antológica é a crônica memorialística Uma Visita Sentimental, recolhida do jornal Diário do Povo,1º/7/2005:

 

Convidado por uma professora do Liceu para ali proferir uma palestra sobre a reinauguração daquele tradicional educandário, onde concluí, há sessenta anos, o chamado curso clássico, marcada para as 9 horas de 2ª feira passada, dia 29, ali compareci no horário regulamentar, com dez minutos de antecedência. Após conversar com o seu atual diretor, Prof. Silva Neto, críatura simpática e afável, filho de pessoas de meu convívio, verificamos ter havido algum equivoco naquele convite, porquanto nem ele tomara conhecimento do assunto nem conseguiu localizar a autora do convite e nada indicava  ter havido qualquer ato preparado com aquela finalidade.

Aproveitei entretanto a oportunidade para, em companhia do diretor, visitar o prédio devidamente reformado, inclusive uma das salas de aula da parte oeste, na qual eu me lembrava de haver lecionado durante algum tempo, ao longo dos anos, cerca de 25, que exerci o ofício de professor.

Lembrei-me a propósito da famosa crônica de Machado de assis sobre o Velho Senado, contida nas Páginas Recolhidas e não pude deixar de associá-la a este momento de evocação na história daquele velho educandário, pelo qual já passaram várias gerações de estgudantes e onde não mais havia retornado depois do meu voluntário exílio brasiliense.

Todos se lembram das palavras iniciais do romancista:

‘A propósito de algumas litografias de Sisson, tive há dias uma visão do Senado de 1860. Visões valem o mesmo que a retina em que se operam.Um político, tornando a ver aquele corpo, acharia nele a mesma alma dos seus correligionários extintos, e um historiador colheria elementos para a história. Um simples curioso não descobre mais que o pinturesco do tempo e a expressão das linhas com aquele tom geral que dão as cousas mortas enterradas.’ (Obra Completa, vol.II, p.636, Companhia José Aguilar, Editora, Rio de Janeiro, 1974).

Depois de fixar, de forma imperecível, o retrato das figuras do tempo e de reconstituir, através delas, a fisionomia moral de uma época, conclui o relato à maneira niilista, evocando a visão das personagens desaparecendo, uma a uma, a enfiar por um corredor escuro ‘cuja porta era fechada por um homem de capa preta, meias de seda preta, calções pretos e sapatos de fivela.’

E acrescenta a seguir:

‘Este era nada menos que o próprio porteiro do Senado, vestido segundo as praxes do tempo, nos dias de abertura e encerramento da assembleia geral. Quanta cousa obsoleta! Alguém ainda quis obstar a ação do porteiro, mas tinha gesto tão cansado e vagaroso que não alcançou nada;  aquele deu volta à chave, envolveu-se na capa, saiu por uma das janelas e esvaiu-se no ar, a caminho de algum cemitério, provavelmente. Se valesse a pena saber o nome do cemitério, iria eu catá-lo, mas não vale; todos os cemitérios se parecem.’(Ob.cit.,pp.643-4).

Saí dali com a sensação de haver recuado quase meio século, passando assim a viver novamente o momento melhor da minha vida.

Mas, como o velho porteiro do Senado, verifiquei que nada se restaura no tempo, quando muito apenas as lembranças.

Depois da recepção calorosa dos alunos, uma vez apresentado pelo diretor, em uma das salas onde houvera lecionado por algum tempo, procurando dar vida e dimensão humana e perene a algumas figuras da língua e da literatura portuguesa, pude sentir que tudo mergulha no lago do esquecimento. Pensei por um minuto que possivelmente tenha ficado um pouco da memória daqueles instantes para verificar que nem isto talvez tenha restado. A vida é dinâmica, as gerações se sucedem ao longo do tempo e o que resta do passado será quando muito um pouco de brasa extinta.

Ao descer com a dedicada companheira de toda a vida, após despedir-me do afável diretor, as escadarias do velho educandário, senti que aquele passado estaria para sempre mergulhado no esquecimento. Não olhei sequer para trás para não virar estátua de sal, como na legenda bíblica. Apressei um pouco os passos para não seguir a imagem do velho porteiro do Senado da evocação do bruxo do Cosme Velho. Ainda bem que a manhã luminosa e quente me fez reentrar na rotina dos dias presentes.

 

Afonso Ligório  (1928), nasceu Luzilândia – PI, contista, cronista, romancista, membro da Academia Piauiense de Letras. Jornalista, teve vida profissional em Recife (onde publicou alguns trabalhos literários) e trabalhou em grandes jonais daquela metrópole. Quando saiu de Teresina, já ensaiara seus primeiros escritos nos jornais do Piauí.  Reside em Brasília, onde edita o Jornal da ANE, entidade cultural a que pertence e presta inestimáveis serviços . Recentemente publica  seus contos em livro:  Só Esta Vez, 1987, e A Hora Marcada, 1981, e, em seguidas os romances históricos, de cujo ciclo é exemplo Capitania do Açúcar, Recife, 1999. Outras obras: Tempos de Leônidas Melo, 1994, tendo participado também da coletânea Cronistas de Brasília, 1985.  Na época do Clube dos Novos publicou contos e crônicas , na imprensa.  Ele próprio declara sua participação no movimento Meridiano, confirmada por seu fazer literário hoje, ainda com os mesmos acentos daquela geração. Contista exemplar:  contido, seguro e consciente do seu valor.  O conto Só Esta Vez., do livro do mesmo nome, é prova de sua arte.

 

Enquanto se vestia, sem pressa, Ernesto olhava o corpo de Helena, estirada na cama. Ela mostrava a nudez sem restrições.

- Meu telefone agora é 253... – sem se mexer, Helena ditava pausadamente os números, como quem disca.

Descambando para os cinquenta, Ernesto pensou na diferença de idade. Dali podia ver os ângulos mais íntimos de Helena, quase adolescente.

Era sempre assim, depois de uma aventura. Interrogava-se, obsessivo, e procurava afastar a sensação de culpa  com exercícios mentais pouco eficazes.

Naquele dia, não se demorou no apartamento de Helena. A caminho de casa, dirigia como um autômato. Olhar longínquo, pensamento distante, indiferente à paisagem em movimento. Seu corpo parecia levitar. O trânsito obrigava a parar a curtos  intervalos. As partidas eram quase instintivas. Quando percebia, o carro já estava em movimento, acima dos 90. As luzes dos veículos que trafegavam em sentido contrário incidiam, incômodas, em seus olhos, como açoite.

No princípio, usara da astúcia, da longa experiência, para aquela conquista. Supunha-a apenas mais uma, e passageira. O tempo escoou-se rápido. Agora, indagava se devia prolongar o relacionamento, se não seria mais prudente um recuo sensato, um ponto final. Sentia-se tão ligado a Helena que não ousava sequer pensar em solução definitiva, embora reconhecesse a oportunidade. Sabia que não era aconselhável brincar com essas coisas. As reflexões baralhavam-lhe o pensamento.

Entrou em casa sem fazer barulho, na ponta dos pés. Percebeu a mulher mexer-se na cama. Amiudou os passos. Quis acender a luz, mas decidiu que não devia incomodá-la. O corpo despido de Helena, realçado por lençois brancos, tal qual pintura de Goia, continuava a projetar-se em sua mente, na escuridão do quarto, como ideia fixa. O silêncio e a presença de objetos familiares devolveram-lhe a realidade.  Gostava do aconchego da casa. Respirou fundo e sentiu súbito alívio. Agradável sensação de segurança o envolveu pouco a pouco.

A representação do corpo de Helena não saía do cérebro de Ernesto. Os quadris roliços, seios firmes...

- Vá dormir, meu bem – a voz sonolenta da mulher dissipou as fantasias que se renovavam.

- Alguém telefonou? – perguntou sem intenção, como se quisesse dizer: “estou aqui”.

Por quese preocupar tanto? – interrogou-se.  Talvez exagerasse o sentimento. O tabu das coisas morais, o temor do erro, da falta, o sentimento de culpa prolongado, torturante. Quantos estão a fazer isso neste momento, sem traumas, pelo contrário...

Deitou-se,  preocupado. Detestava esse tipo de problema. Relutou e prometeu que não a procuraria mais.

Acordou cedo. O primeiro pensamento foi para Helena. Começou a repetir o número do telefone que ela ditara na véspera, para memorizar: 253...

Na hora do café, passou a refletir que não era justo o que vinha fazendo. “Ela, uma menina;  ele, quase um velho”. Novamente, em jogo antigos valores e ideias moralistas. “Bobagem”, raciocinou conclusivo. Experimentaria uns tempos sem vê-la. Depois faria visitas espaçadas, até, quem sabe, se esquecerem.

No trabalho, o telefone era o objeto mais importante. Enquanto o olhava, como a vigiá-lo, na memória o número de Helena se repetia, incessantemente.  Reprimiu  o desejo quase compulsivo de ligar.

No final do expediente, o telefone toca. Expectativa. Rápido, segura o fone, mecanicamente. Detém-se, num excesso de cautela. Aguardaria outras chamadas. Na terceira, sem poder controlar-se, tira o fone do gancho, imposta a voz e faz a interrogação costumeira:

- Alô? Em fração de segundo, temeu que não fosse ela, mas alguém, inoportunaamente, ligando para fazer qualquer negócio.

Do outro lado do fio:

- Ernesto? – voz jovem, doce, inconfundível. Sôfrego e trêmulo acerta um encontro para o dia seguinte. “Mas só esta vez”, prometera a si mesmo depois de desligar.

         

          Assis Brasil (1932), nascido em Parnaíba, primeiros estudos no Piauí. Em seguida, vai para Fortaleza, onde começa a colaboração nos jornais. Jornalista de formação, tendo participado intensamente do movimento renovador do SDJB (Suplemento Dominical do Jornal do Brasil), com Mário Faustino. A estréia em livro se dá no Rio, 1953, com Verdes Mares Bravios (posteriormente republicado com o título de Aventura no Mar, coleção infanto-juvenil). Em 1955 é a vez de seus Contos do Cotidiano Triste, também no Rio.  Mas não é a ficção curta que o seduz. Assis Brasil renova o romance, introduz  um novo regionalismo na literatura brasileira que marca o sentimento interior através de novas estruturas e formas de falar do homem, ao fazê-lo expressão do meio e de todos os meios. Esse novo romance está contido na Tetralogia Piauiense, que se compõe de Beira Rio Beira Vida, A Filha do Meio Quilo, O Salto do Cavalo Cobridor e Pacamão, começada a publicação em 1965 e finda em 1969. Com  Beira Rio Beira Vida, foi primeiro prêmio do WALMAP, maior concurso literário nacional,  façanha  que Assis Brasil repetiria em  1975,  com Os que Bebem como Cães - livro que faz parte de uma “nova tetralogia”, agora urbana, juntamente com Deus, o Sol, Shakespeare, 1971 {também premiado pelo  WALMAP), O Aprendizado da Morte e Os Crocodilos  – uma fase talvez mais ousada do que a primeira.

           Mas Assis Brasil não é somente o grande romancista brasileiro da atualidade, escreveu e publicou inúmeros livros na área infanto-juvenil  e é também  um  crítico maior.  Trabalhos da importância de Faulkner e a Técnica do Romance, Joyce - o Romance como Forma e O Livro de Ouro da Literatura Brasileira (400 anos de história literária) merecem destaque na literatura da espécie. Outra série da maior importância foi a dos romances historicos: Nassau, Sangue a Amor nos Trópicos, 1990, seguido de  Villegnon, Paixão e Guerra na Guanabara; Tiradentes, Poder  Oculto o Livrou da Forca; Jovita, Missão Trágica no Paraguai;  Paraguaçu e Caramuru: Paixão e Morte da Nação Tupinambá, entre outros. Dos brasileiros, é o mais fecundo escritor vivo. Faz tempo que ultrapassou Coelho Neto, isto é, depois de  O Sol Crucificado, 1998, a centésia obra. Publicando constantemente,  tem influenciado bastante a atual geração de escritores do Piauí e do Brasil, de norte a sul. É membro da Academia Piauiense de Letras e recebeu o prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra, em 2004.

           Eis A Cela, parte do primeiro capítulo de Os que Bebem como Cães, 2009, 7ª edição:

 

          A escuridão é ampla e envolvente.

          O silêncio total, cortado apenas por aquele velho barulho que parte de seus ouvidos.

          Sempre fora assim: quando em silêncio, em paz ou em expectativa, o zumbido voltava, em duração enervante, direto como a fala direta do policial:

          - Deixa as mãos dele algemadas.

Aos poucos ia apalpando o escuro da cela, o silêncio da escuridão, o zumbido do próprio corpo – estava no chão frio: não era cimento, nem tijolo, terra batida, úmida, mas não molhada ao ponto de ensopar sua roupa – os braços para trás das costas, os pulsos algemados.

Aos poucos, ia apalpando o chão com o corpo, de bruços, o rosto quase a tocar a areia: - sentia o cheiro da terra – uma terra velha e usada, com cheiro de mofo, com cheiro de urina – sentia as paredes, mesmo sem vê-las na escuridão: a opressão do cubículo estava em seu corpo, em seus poros.

A posição era incômoda: as mãos nas costas, o corpo meio de lado, o rosto na areia fria.

- Deixa as mãos dele algemadas.

Por quanto tempo cheirava a terra abafada pelo próprio corpo? Horas, dias – lembrou-se de que precisava comer ou urinar ou falar ou gritar, mas na verdade não tinha vontade de fazer coisa alguma, queria apenas permanecer na posição incômoda, como se estivesse em maratona para provar que o corpo podia resistir a tudo.

Tentou se mexer, mas sentiu que o ombro direito, fincado no chão, estava dolorido – puxou os braços nas costas, e as algemas nos pulsos rasgaram a carne com um estremecimento:  o silêncio foi interrompido com uma espécie de chiado – podia agora saber que sangrava, havia um novo odor no ar abafado – o sangue cheirava a barro, a ferro com ferrugem, cheirava a terra seca quando recebe as primeiras chuvas.

Era isso ou apenas imaginava um odor ou adivinhava a cor viva embebendo a terra cinza –  e sangue e terra acabavam por formar uma abstração, um enigma.

Também não sabia se era noite, se era dia claro – uma cela sem grades,sem a pequena janela no alto, talvez sem porta. Mas por mais fechada que estivesse, uma porta sempre deixava passar alguma claridade, uma réstia de luz, um sopro vivificador. Nenhuma luz, nem uma leve brisa

Da posição em que estava, mais uma vez tentava esquadrinhar o escuro, à procura de um ponto, de uma indicação que pudesse sero ar ou a luz. Via o escuro de baixo para a frente e para a cima, em ângulo ascendente.

Do teto também não escapava coisa alguma, mas o quarto – era mais um quarto do que uma cela comum – estava frio, embora abafado, um tanto úmido, cheirando a mofo. E se estava frio, úmido, cheirando a mofo, era porque recebia, em qualquer hora, chuva, vento ou algum raio de sol perdido.

Assim, concluiu: era noite, e como o frio apertava na espinha agora, concluiu:  era madrugada, e como o cheiro do ar entrava em suas narinas, filtrado através do que quer que fosse, concluiu: a manhã estava próxima, e como o estômago reclamava o vazio estertor, concluiu: faz mais de vinte e quatro horas que não me alimento.

E se decidiu a esperar pela manhã próxima – alguma claridade poderia atravessar aquela escuridão, pelo teto, pelos lados, onde deveria existir uma porta fechada tão rente à parede como se fosse um prolongamento dela. E se decidiu a esperar que lhe trouxessem alguma coisa para comer, e se decidiu a esperar que acontecesse algo, mesmo um pequeno barulho ou um grito ou alguém caminhando lá fora ou dizendo algumas palavras.

“Lá fora”.

O que existirá lá fora? O que é esse lá fora?

 

Álvaro Pacheco (1933), nasceu no Piauí. Jornalista, editor, poeta,  formou-se em direito, em 1958. Estreia no Rio, com Os Instantes e os Gestos, no mesmo ano, demonstrando ressonâncias de Drummond, do qual, passo a passo, vai-se  distanciando. Outras obras: Pasto da Solidão, 1965;  Margem Rio Mundo, 1966; O Sonho dos Cavalos Selvagens, 1967;  A Força Humana, 1970;  A Matéria do  Sonho, 1971; Temmpo Integral, 1973; O Homem de Pedra, 1975;  Itinerários, 1983; e Seleção de Poemas, 1984; e ainda  Balada do Nadador do Infinito, no mesmo ano de 1984.  Trabalhou como jornalista em grandes jornais e foi editor de importantes obras da literatura brasileira e de outros países. Álvaro Pacheco é nome expressivo da geração. Indo embora cedo para o Rio, onde se fixou definitivamente, nunca se desligou da dicção e do sentido que fizeram o grupo  meridiano. Sua poesia se tece de cores e vozes humanas com aspirações divinas. Mais cores do que vozes, o que faz dele um poeta lírico atual, campeador de mitos, através de um discurso que parece fácil mas não é. Ao contrário, foi capaz de grandes feitos no poema curto e no longo. Dois poemas e duas fases, mostram sua dimensão e seu crescimento:

 

             O menino e o rio

 

O rio era lirismo e crepúsculos

Dissolvidos em barro e barrancos.

 

Seu leito era de viagens impossíveis

Para além dos sonhos dos meninos.

 

Seu som era o da chuva e o vento conjugando

O alargamento da saudade e da esperança.

 

Sua luz era o sol e a areia e o pecado

E a água rasa se lavando nos domingos.

 

Sua casa eram moradas naufragando

Em desejos estragados, um comboio.

 

E o seu porto eram as mulheres viajando

No cachimbo e ao anoitecer de suas balsas

Os olhos do menino e em seus destinos

As cargas podres de laranjas e limões.

 

        Poema final da adolescência

 

Te digo agora, mulher, minha lembrança

De um amor juvenil – e o prazer transparente

De te contemplar burguesmente a tarde

Na moldura de um pórtico colonial.

 

Posso agora revelar os sofrimentos

E os mínimos prazeres desse tempo

E te dizer a revisão da saudade e do amor

Em meu momento final de adolescência.

 

Já posso agora exilar teu nome

E de mim todo o lirismo jovem

Que sobrou exclusivamente de ti:

Não se sabe aonde vai quem muito amou.

 

Posso agora, mulher, fazer a síntese

Destes tantos anos de pedaços:

Terás sido minha última lembrança

Para carregar na vida, terás sido

Meu provável sinal de eternidade.

 

Fontes Ibiapina (1921 – 1986) é o nome literário de João Nonon de Moura Fontes Ibiapina. Nasceu em Picos, PI.  Contista, romancista, folclorista, teatrólogo. Na vida prática, magistrado e professor. Faleceu em Parnaíba, onde era juiz. Mas andou antes por várias comarcas. Colaborou em “Avante” (1952), do qual foi diretor,  “Opinião”(1953) e “Almanaque da Parnaíba”, bem como em muitos outros órgãos da imprensa de sua época, principalmente com matéria literária e crítica. Quando começou a escrever seus contos, submetia-os  aos concursos das revistas “A Cigarra” e “Alterosa”, respectivamente do Rio e de Minas, ganhando muitos desses concursos. Esses contos seriam reunidos  em seus primeiros livros:  Chão de Meu Deus, 1958 (que teve uma segunda edição em 1965)  e  Brocotós, 1961. Outras obras do mesmo gênero: Pedra Bruta, 1964;  Congresso de Duendes, 1969;  Destinos de Contratempos, 1974;  Quero, Posso  e Mando, 1976; Mentiras Grossas do Zé Rotinho, 1977;  Lorotas e Pabulagens de Zé Rotinho,  sem data de publicação, premiado pelo MOBRAL.  Romances: Sambaíba, 1963; Palha de Arroz, 1968;  Tombador, 1971;  Nas Terras do Arabutã, 1984;  Curral de Assombrações, 1985. Folclore: Paremiologia Nordestina e Passarela de Marmotas, ambas de 1975. Teatro: O Casório da Pafunça, 1982. Deixou no prelo o romance  Vida Gemida em Sambambaia e a coletânea de contos Eleições de Sempre e Até Quando, que saíram ainda com data de 1985. Em 1994, a Fundação Mons. Chaves publica  Crendices, Superstições e Curiosidades Verídicas.

          A crítica  nem sempre foi atenta com Fontes Ibiapina, dir-se-ia até que foi ingrata. Com obra tão volumosa e importante, ele não teve uma análise profunda como merecia.   Assis Brasil, no Dicionário Prático de Literatura Brasileira, Rio, 1979, registra um depoimento de Francisco Miguel de Moura sobre seu fazer literário: “Nos últimos anos tem sobressaído mais o seu trabalho de pesquisa que o de ficção. Mas ele (Fontes Ibiapina) trouxe uma importante contribuição à literatura do Nordeste, guiando os passos dos novos para a pesquisa da linguagem falada e sua transposição honesta e desabusada para as páginas dos romances e contos.”

          Depois de sua morte saíram dois opúsculos divulgando  contos de Fontes Ibiapina: Trinta e Dois e Tangerinos, 1988, e  Dr. Pierre Chanfubois, sem data de publicação.

          Pertence à geração Meridiano, pelo seu trabalho com a palavra, pela invenção e pelo tempo em que começou a produzir. No conto, trabalha o diálogo vivo, num tom bem humorado,  insistindo na repetição como efeito estético, na fabulação mais fabulosa, consciente do seu trabalho. Recupera o falar do nosso caboclo e, transgredindo-o, numa linguagem consumível pelas populações da roça e da cidade. Assim conquista admirável estilo pessoal e telúrico. Prova de sua originalidade muito forte é que deixou seguidores.

          Do conto “Trinta e dois vai aqui um fragmento:

         

          Quase todas  as noites uma família de retirantes se aboletava no alpendre grande de nossa fazenda. Eram homens magros, mulheres em andrajos e magras também; crianças também magras e barrigudas – que se destinavam ao Maranhão.

          Um caboclo velho chegou com a raça toda – a mulher e seis filhos.

           - Dá  licença, capitão...

           - Pois não, à vontade.

          A voz era humilde porque a terra não era a sua e o seu caminho era o caminho da seca. O Papai era capitão, porque era o dono da casa. Arriou a bagagem, deu um suspiro.  Foi um suspiro tão grande que talvez tenha ido ao seu “Ceará de Açúcar”.

- Ah! seu moço... nem em sonho queira saber o que temos sofrido nesta viagem... Se em toda casa nos recebessem assim, apesar de tudo, seria um céu de rosas. Mas, pode acreditar como nesta luz que nos ilumina, como há muita gente que só falta é cuspir em nossas caras.

- E de onde vocês vêm?    que mal pergunto.

          Pergunta bem. De Lavras de Mangabeira. Lá este ano não pingou. Foi uma Seca mais danada do mundo. Uma coisa é ver, outra é dizer; está se acabando tudo, e não é de outra coisa não, é de pura fome. Morre gado, morre gente, morre tudo, enfim. De janeiro a 19 de março (quando saímos de lá), não caiu uma gota d’água em cima do chão. Nunca vi Seca tão grande!

                                   - Aqui também não houve inverno.

- Sim, foi seco. Estou vendo. Mas, lá pra nós, foi dez vezes pior do que isto. Basta saber que aqui houve inverno no ano passado que Deus deu. E lá foi bastante fracateado. Milho só deu tamboeira. O feijão aguentou mal a primeira carga. Por aí o senhor tire o resto, e veja como a coisa lá está preta.

- E pra onde vão?

- Para o Maranhão. Para a terra onde Deus dá chuva para os pobres. Mas já estou quase vendo que lá não boto. Eu saí com muita fé. Vinha até com esperança de um dia voltar com uma ponta de recurso. Mas já perdi a esperança. Já perdi até a fé. Sei que nem pobre como saí voltarei. Pra falar a verdade, até a esperança de lá chegar já perdi. Estou fazendo promessa pra que chegue com vida por lá, e escape a família no coco babaçu. Aquele menino ali está batendo febre desde de antes de ontem. Não sei o que é. Mas ele vai morrer.

          Meia noite, mais ou menos, ouvimos um choro cansado. Um choro enterrado. Um choro no centro da fome. O Papai abriu a porta e saiu. Eu o acompanhei, sempre fiel ao meu princípio de curiosidade.

- Menino intrometido! Volta pra trás!

O velho aguentava um tição de fogo na mão do menino que, com os olhos fixos no teto do alpendre de nossa casa, morria no apogeu da miséria. Estirada ao chão, uma mulher magra e suja se lamentava da sorte. Cinco garotos, de cujos olhos desciam fios de lágrimas, soluçavam em ritmo. Abriu a boca três vezes, lentamente, e expirou.

O velho filosofou:

- Que coisa triste... seu moço. Dá até pra não se acreditar nas coisas do outro mundo. Será possível que Deus exista!   Achava que sim. Agora acho que não. Deus, sendo Deus como o povo quer que Ele seja, não ia deixar que uma criança inocente morresse de fome em tamanha miséria. De duas, uma: ou Deus não existe, ou só existe para os ricos, pra mim não existe, porque eu sou pobre. Nasci na pobreza e nunca soube o que fosse ser rico no mundo.

A Mamãe jogou o seu infalível catolicismo na ponta da língua:

- Tenha paciência...  moço. Tudo que Deus faz é bem feito. Sei que seu filho morreu, e que o senhor muito sente em o haver perdido. Mas, no mundo, de tudo se vê. E mesmo ele foi em bom tempo. Era batizado. Já era cristão. A esta hora, está com os outros anjos da Corte de Deus.

- Mas eu não me conformo. Não há quem me faça conformar, e ninguém se conformaria estando em meu lugar. Antes houvesse sido eu. Iria satisfeito.

- Nada disto. Se o senhor morresse hoje, tanto ele como os outros e sua mulher se acabariam de fome amanhã, ou depois. Sei que nada tem para lhes dar. Mas, não queira saber, nem em sonho, o que sofre uma pobre viúva carregada de filhos, especialmente numa época como esta.

- Eu bem sei, siá dona, que tudo que a senhora está dizendo é uma pura verdade. Mas o que eu não posso é ficar calado com uma coisa desta.

Virou-se para o Papai e pediu uma esmola de sete palmos de terra. E eu fiquei assustado com aquela história. Pensei o que pudesse ser uma esmola de sete palmos de terra e não compreendi. Depois, atribuí que ele queria ser nosso morador. Iria ter mais cinco meninos  para o meu quadro de futebol. Mas achei logo que sete palmos de terra não davam para se fazer uma casa. Só se fosse uma casinha mais pequena que a de Madrinha Clara. Fui para o oitão e medi sete palmos. Não. Não podia ser. Mas, que o meu palmo era pequeno, pensei. Os pequenos nunca podem julgar os grandes por si, porque os grandes são diferentes dos pequenos em todos os pontos de vista. O velho seria nosso agregado, e mais cinco jogadores entrariam para o meu time.

Só depois que cavaram a sepultura, lá nas “Covinhas dos Anjos”, foi que eu compreendi o que era esmola de sete palmos de terra.

A tipóia, atada numa estaca, tentava balançar mas não podia, de tão esticada que ia. Ninguém gritou irmão das almas!  Não sei se porque o corpo era maneiro, ou se porque sabiam que em tempo de Seca não se encontra um irmão das almas para remédio.

Arriaram a bagagem. Desataram as cordas e, sem nenhum protocolo, jogaram os punhos da rede na cara do pequeno defunto. Botaram-no na sepultura. Uma mulher magra gritava dentro duma carga de nervos, como se quisesse proibir a cena. Mas ninguém deu assunto aos lamentos da mulher. Meteram terra na cara do menino, até que ficou rente – uma sepultura do mesmo jeito das outras.

Lembrei-me duma história que a velha Madrinha Clara, minha ama preta, contava. Lembrei-me, e tive a impressão de que depois ia nascer capim naquela sepultura, e aquele menino ia cantar:

                    - Negro de meu pai,

                      não corte meus cabelos,

                      que a madrasta me enterrou

                      pelos frutos da figueira

                      que o passarinho comeu.

                      Chô, passarinho!...

A Mamãe acendeu duas velas de cera de carnaúba nas extremidades do túmulo.

O retirante pendurou os olhos compridos na estrada, e convidou a velha para se irem. A esta altura, quando eu já perdia a esperança dos cinco jogadores novos para o meu time, a mulher abraçou-me, beijando-me a cabeça, numa  voz claudicante:

- Deus te proteja, meu santinho... São Francisco do Canindé há de ajudar aos teus pais, para que eles sempre possam servir aos miseráveis que passam por aqui.

Eu sentia vontade de chorar. Não sabia por que sentia vontade de chorar, e, não sabia também por que sentia e não chorava.. Mas tinha certeza que o menino ia cantar:  

                     - Negro de meu pai,

                       não corte meus cabelos,

                       que a madrasta me enterrou...

 

           Celso Barros Coelho (1922), nasceu em Pastos Bons–MA, fez humanidades no Seminário Menor de Teresina (1938-1944), completando o curso no Colégio Diocesano (São Francisco de Sales), ao mesmo tempo em que lecionava nesse colégio. Desde 1945 dedicou-se ao magistério. Ingressou na Escola Normal Antonino Freire, com a tese Da Poesia Latina, na Época de Augusto, 1950. Bacharelou-se em 1953, pela Faculdade de Direito do Piauí. Advogado a partir de 1954; professor de Literatura (Latina e Portuguesa) da Faculdade Católica de Filosofia do Piauí, tendo sido um dos seus fundadores; e professor titular da Cadeira de Direito Civil da Faculade Federal de Direito do Piauí (hoje UFPI), por concurso (1967). É Procurador Autárquico Federal (INSS), apoesentado. Político, fundou o PDC, do qual era deputado estadual em 1964, quando foi cassado; exerceu as funções de Secretário de Estado (1995); Deputado Federal eleito  (1974), não foi diplomado; em 1983 assume, pela segunda, vez a Câmara Federal, onde desempenhou papel brilhante no encaminhamento de leis  como a da regulamentação do divórcio, entre outras. São muitas as sua publicações na área do Direito, sendo ele um dos maiores advogados do Piauí e também o melhor orador. Outros livros: Formação da Cultura Brasileira, 1964; Homens de Idéias e de Ação, 1991; Confronto de Idéias, 1997; Três Poetas de sua Terra, 1984; Perfis Paralelos, 2003; e Tempo e Memória, 2009. Suas palestras e discursos são verdadeiros ensaios, tanto no direito, quanto na crítica, na filosofia e na literatura, muitos deles publicados em jornais e  revistas, especialmente a da Academia Piauiense de Letras, de cuja entidade é membro e foi Presidente.

                                  

                                     Heloísa – minha  professora

 

          A sua imagem me acompanha sempre. Heloísa de Gusmão Castelo Branco. Veio de São Luís com sua irmã Lolô. Depois de minha tia Lourdes, que me alfabetizou, foi minha primeira professora, por um ano apenas. Marco sentimental de minha vida, presente à minha lembrança nos seus traços de beleza.

          Se me fosse dado procurar um modelo ao qual associasse sua imagem, a escolhida seria a criação genial de Leonardo Da Vinci, a ‘Virgem das Rocas’, que se contempla no Museu de Louvre. É para esta que a visão da infância me conduz, projetando-a na sua simplicidade, na sua ternura, no seu carinho.

          O menino humilde e sonhador, nos seus nove anos, talvez lhe tenha despertado algo de diferente. Quem sabe se não adivinhava os passos que eu iria dar?

          Não me recordo do toque de sua voz, mas guardo a sua imagem, semelhante à da Virgem do Museu de Louvre, as faces rosadas e alegres, forte brilho nos olhos, como se com eles quisesse iluminar meu destino.

          Dela nunca me esqueci. Entrou em meu ser espiritual para nele permanecer como um símbolo, como um foco de luz. Essa luz que nasce em forma de centelha das letras do alfabeto, na leitura dos primeiros livros, onde começamos a unir razão e sentimento naquele ritmo traçado por George Santayana ao conceber a razão como a harmonia das paixões.

          Somos sempre dominados pelas paixões, nunca por uma só paixão. Paixão pela verdade, pela beleza, pela arte, pela vida, pelo sonho, pela aventura, pelo amor. Mas quando a paixão por tudo isso domina os homens, a forma de equilíbrio e o uso da razão.

          Minha paixão da infância, nos idos de 1931, em Pastos Bons, onde nasci, foi a professora Heloísa. Fui seduzido pela beleza daquela professora. Só mais tarde descobri a similitude, nos traços que o artista genial colocou nas faces da ‘Virgem das Rocas’, talvez inspirado em modelo semelhante de sua infância, onde as impressões nos dominam e se tornam indeléveis para nós.

          Olho a casa onde era a escola. Separada da casa de meu avô por uma rua, que hoje são ruínas, as ruínas do armazém de Teixeirinha.

          Agora a recomponho na visão do passado, em busca da infância perdida, mas da qual emergem para mim duas figuras que me prenderam sempre: minha tia Lourdes, ainda viva, e a professora Heloísa, que vive em mim, na minha lembrança, e a quem tento em vão procurar, para saber para onde se foi, onde viveu, o que fez, se ainda vive.

          Uma vaga notícia me informa que vivera em Brasília, funcionária da Câmara dos Deputados. Terá sido? Então pisamos de novo o mesmo solo, contemplamos a mesma paisagem, olhamos o mesmo céu.

          Ando à sua procura. Não para vê-la, mas para identificá-la em algum lugar por onde passou, deixando sinais de sua presença, de onde seria ainda possível recolher os seus gestgos, rever a sua imagem e voltar àqueles idos remotos em Pastos Bons, quando entrava na  sala de aula abraçando os alunos, me abraçando também.  É esse abraço que permanece, confortável, aconchegante e que em mim deixou sinais que o tempo não apaga porque foi direto ao coração. Hoje, imagem fugidia nesse mar de ausência.

 

William Palha Dias (1918) nasceu em Caracol, PI. Magistrado, historiador, cronista e romancista. Estreou tarde, como uma boa parte dos escritores de sua geração. Caracol na História do Piauí, 1959, é  uma estreia excelente, monografia escrita em estilo sóbrio, narrando guerras no interior do estado, com estilo que tem sabor de ficção, embora suas ações tenham sido reais. Com Fontes Ibiapina e Alvina Gameiro, William Palha Dias forma a tríade do regionalismo piauiense. Não fosse o limite que se impôs, abeirando-se  da sua própria fala, teria realizado uma obra ficcional mais compacta. Verifica-se, dessa forma,  que o novelista de Endoema (1965),  E o Sibarita Casou (1978),  Os Irmãos Quixaba (1979),  Mulher Dama, Sinhá Madama (1982) e Alcorão Rubro (1994) se sente mais à vontade em Memorial de um Lutador Obstinado, 1997, tal como em O Dia-a-Dia de Todos os Dias, 1983, entre outro livros do gênero.  Deu também sua contribuição na área educacional, escrevendo e publicando O Piauí, Ontem e Hoje e O Piauí em Estudos Sociais, 1975, em  parceria com  sua esposa Profª Maria das Graças e Silva Palha Dias.

 Em toda sua obra de ficcionista Palha Dias prefere dispensar alguns aspectos da ficção – o aprofundamento psicológico, por exemplo – para fixar-se no factual:  a história e as funções sociais dos personagens. O escritor Moura Lima observa, por outro lado, que “Palha Dias revela domínio estilístico na estrutura frasal bem elaborada pelo ritmo, pelas expressões e pelas preciosidades sem par da fala do povo”. 

Como  ficcionista,  William Palha Dias começou com o romance Endoema. Extrato do  primeiro capítulo pode ser lido a seguir:

 

Do peitoril largo, depois de haver deixado a rede de caroá enganchada nas escápulas do alpendre espaçoso, Zé Concliz ouvia atento as ordens severas do coronel Rosendo:

- Zé Concliz, prepare dois burros para uma viajada bem longa. Será de madrugada, após a chegada de Alfredo. Não suporto mais as insinuações capciosas daqueles mamelucos com o fim de agarrar o meu inescrupuloso filho e atraí-lo cada vez mais para uma união tão desigual com Matilde que, apesar de bonita, não é de nossa linhagem. Somos fidalgos e, por isso, não concordo em tal desatino.

- Está bem, coronel, na hora certa os burros estarão arreados. Eles se encontram um tanto seleiros, ontem mesmo, eu e João Preto demos umas voltas e os bichos estão doidos de bons. Podem tirar vinte e cinco léguas diárias.

Dona Ornelinda, esposa do coronel, banhando-se em lágrimas pela resolução apressada do marido; mas que, pelas circunstâncias, acertada, na farta dispensa arranjava os alforjes com provimentos indispensáveis à longa viagem do filho, enquanto que dona Benedita, tia Dita, como era chamada pelos sobrinhos, metia numa maca os pertences e roupas de Alfredo.

Enquanto se maquinavam na casa grande esses preparativos, à revelia de Alfredo, na residência de seu  Amâncio Medrado, a festa em honra ao padroeiro da casa se animava, sendo que, depois da novena, que naquele dia era a última, teria lugar a costumeira dança.

 

 E o romance Vila de Jurema, seu livro mais conhecido, termina assim:

 

Por muito tempo o ar da Vila que nascera sob o signo da borracha de maniçoba se encontrava impregnado da borrasca de toda aquela tormenta. Todavia, muito tempo se passara sem que  governo nenhum  se atrevesse a impor obediência aos tão sofridos Bernardes, que, inegavelmente  com seus atos de bravura, escreveram um capítulo de destemor para a história duma região, para a história de uma Vila nos confins perdidos de um sertão bruto.

 

         Álvaro Ferreira (1893 – 1963), nasceu em Teresina - PI. Era cirurgião-dentista, formado em Salvador. Foi professor de francês e diretor do Liceu Piauiense e da Escola Normal. Catedrático em geografia. Jornalista de “A Folha” e “A Folha da Manhã”, colaborou em outros jornais e revistas. Membro da Academia Piauiense de Letras, foi um dos seus presidentes. Cronista e contista, publicou apenas um livro: Da Terra Simples, 1958. Sua prosa é firme, bastante significativa, carregada de emoção. Num período de poucos prosadores, representa bem a literatura do Piauí. Talvez inconscientemente, antecipou a confusão que se estabeleceria nos anos 60 entre o conto e a crônica. Segundo o Prof. Wilson Brandão, “há contos de Álvaro Ferreira que se sobressaem pela sobriedade do estilo e pela intenção regionalista.”  Seu conto Ocupação é selecionado entre os melhores:

 

Os homens desceram as montanhas e nadaram o rio, após a fuga do mar. Do nascente traziam a flecha dos combates travados no litoral, em defesa da terra invadida. Da outra margem do rio, chegavam aguerridos e desconfiados, como a sondar a natureza, sempre misteriosa e inabordável nas suas manifestações.

Encontraram-se nas várzeas, limitadas pelas serras, flanqueadas pelo caudal, a oeste, em marcha, atraídos pelas vagas que rolam ao norte.

Era uma paisagem triste. Não havia, aqui, o verde dominante do poente, -  naquele Eldorado que a lenda coloriu com os sonhos dos navegantes, vindos de outras bandas. A palmeira, que se perde no longe dos horizontes, fixara-se no solo, para marcar a escala progressiva das gerações vindouras. De raro em raro, um agrupamento vegetal, denunciando a presença de rios que o clima martiriza nas longas estiagens. Mais adiante a chapada agreste. A caatinga, com o aspecto de seres doentes, completa o quadro que, na monotonia das cores, cansa os olhos, nos dias de muito sol e nas noites escuras. As alvoradas são incêndios que aumentam nas horas que passam, até os primeiros instantes de um crepúsculo prolongado. Ferida pelo calor, a terra apresenta a fisionomia de quem muito sofre, nas rugas dos terrenos desnudos.

Na tristeza do meio físico, os homens viveram os seus dias felizes. Donos da gleba, percorriam-na em todos os sentidos, caçando e pescando.  Mal a esfera se iluminava, e já andavam pelos campos e pelos mananciais, os destemidos habitantes da planície, surgida das águas, em tempos que se perderam no emaranhado da História. Quando vinham as trevas, paravam a caminhada, deitando o corpo bronzeado sobre a temperatura do sítio viajado.

Era um cuidado que tinham voltar cedo para a casa de folhas e paredes de cipós onde, às noites, dançavam e cantavam, festejando a  vitória do trabalho, a liberdade, em toda a sua plenitude. E só mais tarde, ao apagar da lareira, o silêncio caía por entre os rudes folgazões.

O vento, que o mar ainda manda,  passava pelos descampados e penetrava as raras florestas, sacudindo as plantas e derrubando as folhas que o verão queimava. Vinham as chuvas violentas, com descargas tremendas, danificando os fracos vegetais e abatendo animais, alimentando-se das ervas dos prados. O homem sentia a fúria dos elementos, mas confiava em  Tupã, em seu supremo poder que se refletia, abrandando o rigor das tempestades.

Assim, eles viviam confundidos nas coisas, e como humanidade imatura. Eram venturosos porque desconheciam os meandros da vida que outros levavam. Não tinham encargos, apenas a necessidade da própria subsistência.   Só.

Um dia, porém, alguma coisa de estranho perturbou a paz daqueles viventes. Prepararam-se para a reação. Juntaram o material de guerra há tempos atirado a um canto. Já agora, o material bélico devia ser suficiente. Levaria na ponta o veneno fatal. Entenderam-se bem nas conversações. As providências estavam tomadas. Os mais atilados auscultaram a terra. Ouvido aplicado àqueles lugares amados, por onde tanto andaram atrás da caça arisca, anunciou a grande e irremediável desgraça.

Escutaram, partindo de um ponto distante, vozes parecidas com as suas, e mais o tropel de patas pisando a gleba ameaçada. Partiram ao encontro do invasor. Travou-se a luta. E o senhor daquele mundo perdeu-o para o que entrava. Todo o seu tesouro, tudo o que lhe pertencia, desde os primeiros momentos, quando o mar fugiu, deixando a planície livre,  agora passava às mãos dos invasores.

Mas o vitorioso saiu da batalha, com o sangue do vencido a lhe correr nas veias, e nalma, a bravura dos fortes e a resignação dos humilhados. São qualidades antagônicas que se combinam no caráter do indivíduo que marcha para um destino qualquer.

         

A. Tito Filho (1924 - 1992) é o nome literário de José de Arimathéa Tito

Filho. Nasceu em Barra – PI. Foi jornalista fecundo e professor de mérito (língua portuguesa e literatura), além de grande orador. Crítico literário, historiador, memorialista, cronista afinado com as causas do povo, usava linguagem castiça, sem afetação. Uma das maiores inteligência que o Piauí produziu, toda a serviço da cultura e das letras. Sua obra é irregular e variada. Foi Presidente da Academia Piauiense de Letras por mais de vinte anos. Começou a publicar livros em 1951, Combustível e Alimento é o primeiro. Depois vieram  O Problema Social da Infância, 1952;  Da Atualidade do Latim Vulgar, 1958;  Viagem ao Dicionário, 1972.  Só em 1973 sai Teresina, Meu Amor, livro que o tornaria mais conhecido e amado. Muitos outros viriam, mas o livro de crônicas sobre Teresina continuaria sendo reeditado até 1991, às vésperas de seu falecimento. Outros seriam  Gente e Humor, 1974; Praça Aquidabã, sem Número, 1975;  Sermões aos Peixes, 1975; Teresina, Praças, Ruas, Avenidas, 1976; Crônica da Cidade Amada, 1977;   Governos do Piauí, 1978.   Grande parte de sua obra está dispersa entre artigos, prefácios, estudos  nos jornais e revistas, não obstante ter publicado cerca de 27 livros. A crônica Roteiro, do livro Teresina, Meu Amor, cuja obra o situa entre os renovadores da geração, é o melhor exemplo do seu estilo:

 

          Aqui tens a praça Rio Branco,  o coração comercial da cidade. De manhã, mulatas, morenas, louras, casadas e solteiras, brotos, coroas e matronas circunspectas praticam o entra-e-sai, visitando as dezenas de casas comerciais existentes na praça e nas ruas vizinhas.  Senhores sisudos, estudantes,  gente de todo naipe – paqueram, conversam,  trocam dedos-de-prosa, contam as últimas sempre com um aumentozinho – o aumentozinho malediscente. Há encontro de poetas, de jornalistas, de intelectuais.  De tarde, a partir das 16 horas, a movimentação é intensa. De noite, a praça fica deserta, como cidade abandonada de cinema de bandido norte-americano.

          No rumo do rio Parnaíba,  indo-se da praça Rio Branco, chegarás ao Parque da Bandeira – bem cuidado, bem cercado, paraíso da criançada e convite ao descanso.  Pares de namorados, nos bancos, dão mais graça à festiva paisagem verde. Defronte do parque, o Hotel Piauí, linhas modernas, elegante, luxuoso. Um dia percorri todos os seus aposentos, mostrando-os a casal amigo que se acompanhava de uma senhora viajada, recém-chegada com o esposo para habitar a cidade. E ela me disse com riqueza de sinceridade:

- Nem em Paris vi hotel como este.

          No final do Parque da Bandeira – o Parnaíba – o velho monge de barbas brancas – como cantou Da Costa e Silva.  Rio de água boa. Junto às suas margens, a gente ainda vê, como no outro rio, o Poti, as lavadeiras batendo roupa.  Algumas de seios à mostra. Outras quase nuinhas como nasceram. Quando a gente era menino ia ao Parnaíba e ao Poti para ver peito de lavadeira.  E a mãe de cada olhador recebia a respectiva xingação.

          Perto do rio Parnaíba, o mercadão ou mercado velho,  também designado mercado central. Aí de tudo se vende: carnes, peixes, verduras, frutas, sandálias, calças, lamparinas, panelas, louça, meizinhas, beberagens eróticas, pós mágicos. Camelôs vendem cura-tudo, literatura de cordel, alguns cegos recitam lamurientos versos de arrecadar esmolas. E dezenas de restaurantes   ao ar livre, com comida feita sob as vistas do freguês, vendem os mais variados pratos, sempre apimentados: fritos, sarapatel, buchada, panelada, mão-de-vaca, vísceras. Um arremedo dos mercadões de Fortaleza e de Salvador. Um colorido especial à vida da cidade.  Poderás encontrar no mercadão o sujeito que vende maconha, o bicheiro, e as mulatas mais desconfiadas do mundo. E muito chá-de-burro, o talentoso muncunzá.

          Nunca deixarás de passar uma noite de domingo nesta cidade afetiva, tranquila, pitoresca... Pois numa noite de domingo admirarás a maior concentração de brotos  e coroas  de que se tem conhecimento desde a chegada dos navios de Pedro Alvares Cabral. Garotas de todos os tipos e formatos fazem a noite dominical da praça Pedro II. Vem vê-las. Os brotos ocupam uma parte da praça, a outra parte pertence às coroas.  A paqueração faz o resto – paqueradores a pé, paqueradores de automóvel. Tudo originalíssimo, sem modelo noutras terras.

Vem! Teresina te oferece vida nova em cada esquina, em cada praça, em cada rua.

Alvina Gameiro (1917 – 1999) nasceu em Oeiras – PI. É romancista, contista, poeta e pintora. Formada pela Escola Nacional de Belas Artes e graduada na Universidade de Colúmbia, Estados Unidos. Professora de português e inglês em vários educandários do Piauí e Maranhão.  Escreveu seriados para a TV Ceará, Canal 2, de 1963 a 1965 (Dois na Berlinda e O Contador de Histórias). Estreou com  A Vela e o Temporal, Edições O Cruzeiro, Rio, 1957, que levantou críticas elogiosas de José Américo de Almeida e José Lins do Rego. Em seguida publica O Vale das Açucenas, 1963,  e   Curral de Serras, 1980 – todos romances, e dois livros de contos: 15 Contos que o Destino Escreveu, 1970, e Contos dos Sertões do Piauí, 1988.  E, de interlúdio, um livro de poesia, denominado Orfeão de Sonhos, 1967, e  Chico Vaqueiro do Meu Piauí, 1979 (uma espécie de romance versificado).

É uma obra na qual se observa ligação profunda com a terra e as raízes, características dos chamados regionalistas. Entretanto, seu estilo natural, elegante, permanece  bem comportado  até sair Chico Vaqueiro do Meu Piauí (quando apresenta boa dose de criação linguística, sendo  louvado por A. Tito Filho e Martins Napoleão). Mas surpreendente mesmo é em Curral de Serras, obra monolítica, segura, onde sobressai o ritmo popular da redondilha maior, num exercício profundo de captação da antiga língua portuguesa no discurso do sertanejo, com muita originalidade, só encontrando paralelo em Guimarães Rosa.

Assim dá início:

 

Na beira da corrente, matutava, espiando o viço do capinzal, bebedor daqueles frescos de orilha de riacho, ‘inda com uma chave d’água já no fim de setembro, mês danado de seco.

Sabe, Doutor?  Desne que o mundo é mundo, capim é cabelo da terra, cobertor do chão, esperança dos vivos e, quando cai chuva e ele verdece, é nem ver um bilhete da saudade... Agora, aqui, eu apago. Alumio adiante, apois, desvio só serve mesmo é por mor de arredar a gente p’ra fora do caminho, encompridando viagem. Se avexe não, Doutor. Quando bem nem vosmicê esperando ‘teja,  esbarro no mesmo ponto e emendo na saudade que acabo de suspender.

Entonces, como ia dizendo, ‘tava apeado, montaria matando sede numa isca de riacho, eu preguntando a capim quantos palmos ele tinha e capim informando que boca de gado por ali não pastava, fazendo estrago. Nesse comenos, um homem apareceu, pensando que no repente.. Engano do cujo. Avistado já era, ladeando meu piso bem por dentro do mato, no desmontado, puxando um cavalo castanho-claro pelo cabresto, ‘inda na estrada mestra em muito antes d’eu ganhar rumo d’água.

Feita a saudação,  escanchou ror de perguntas, grudadas nas rédeas da minha vida. Escorei o caldo um tempão, esguardando o intrometido. O homem era fogoió sardento: cearense, judeu por inteiro ou cruzado com cristengo; tinha os olhos de cavalo gazo: confirmação de gringo; pestanas roídas: sapiranga antiga ou tracoma adiantada;  beiços esfolados: lida com o sol, cachaça ou morrinha de fígado. Da cabeça desci.  O pescoço dele era grosso, enterrado: sujeito de fôlego curto; o tronco alargado mas de muito pouca altura: sinal d’alguma força; pernas e braços espichados à moda de aranha: vagaroso sacador de armas.

Ali, com possibilidades e desvantagens do homem já seguradas na minha mão, falei:

- Posso tomar ciência por mor de que os feitos e rumo de minha sorte chamam interesse de vosmicê?

- Desculpa, ‘tou querendo merecer por via do adiantamento, seu moço, mas porém a espiculação corre de ordem de minha patroa. Ela mandou caçar homem branco, forte, munido de coragem, e se alguma beleza estampada tivesse não fazia desmerecimento.

Parou bom pedaço, procurando jeito d’emendar a explicação e acabou com este despacho:

- No aberto da cor, no corte da figura, no desassombro da fala amostra vosmicê o talho da encomenda.

Gastei silêncio redobrado, especando cisma,  enquanto vasculhava a forma da cara do fogoió, por razão do tipo não me encarar. Guardava vistas fincadas no molhado do chão, adonde o bico da alpercata fuçava lama.

Seu Doutor, quem descarrega nos pés não tem amarra nos nervos... Foi o qu’eu maginei logo. Ai, deixei o quieto se aquietar bem e falei de pipouco, por laçar a vista do cabra:

- Denegar querendo, quem s’atreve a me levar sojigado?

O espirro da pregunta assustou o estranho, que m’espiou atravessado. Esbarrei desconfiança nele e me botei preguntando a meu juízo se sobrosso do fogoió era cobrado por efeito da tirada ou parença doutra cara nembrante a minha. Seria que daquela vez a sorte me levava  p’r’o rumo da caça, ou tudo qu’eu maginava era só suspeita desfundada, dum ente farto de correr mundo, s’agarrando com o desejo de dar com o procurado?

- Não querendo ir, o moço não vai. Emenda caminho. Pronto! Aguardo outro cavaleiro.

Ficou mastigando embaraço, trancado em soturno e demorou foi tempo p’ra  afroixar mais um tico do resguardo:

- Quem se aventura nos dentros desta solidão, traz é motivo possante na garupa... e se é que algum vivente vosmicê anda buscando, dê o nome, a proveniência com os sinais, qu’eu sabendo, digo.

 

Lourenço Campos (1913–1973), nasceu em Picos -PI, onde viveu a maior parte de seus dias, e faleceu em Simplício Mendes - PI. Durante algum tempo morou em Manaus - AM. Colaborava na imprensa do Amazonas e do Piauí. Usava também o pseudônimo de Leo Lira. Deixou muitos poemas inéditos, alguns foram reunidos e  publicados recentemente pela família, com o título de Canto do Nordeste, 2001. Praticava o soneto, a trova e o verso livre, cuidando bem da forma. Expunha, em sua poesia simples, a beleza, a terra, a mulher, a natureza, a vida.  Participou da Antologia de Sonetos Piauienses, 1973, organizada por Félix Aires. Do livro póstumo, eis dois poemas de sua lira:

 

                            Minha terra

 

          Fitam-te sempre, ó  pedra de brilhante,

          Os olhos tristes do meu pensamento!

          És linda estrela a cintilar distante,

          Sob o lençol azul do firmamento!

 

          Duas igrejas se contemplam e oram.

          Cantando passa o rio entre o rosário

          Dessas roças de arame que te cercam,

          Emoldurando o colossal cenário.

 

          Tuas  serras azuis semelham bando

De ondas  de mar por Deus petrificadas,

Joelhos em terra, para o céu rezando...

 

          Cidade, emblema verde da esperança!

          Daqui te envio lágrimas roladas

          Sobre a saudade rósea da lembrança.

              

                       Gotas de luz

 

          Lá do Céu tão bordado de estrelas

Saltam gotas de luz pelo ar...

Passa a lua no mar do infinito

Qual jangada de espelho a nadar.

 

Pedacinhos de nuvens bem alvas

Se transformam em carneiros do além

E minha alma a voar pelo espaço

Se transforma em carneiro também...

 

Como é belo sentir a poesia

Destes versos que agora compus,

Esquecer as misérias da vida

Contemplando essas gotas de luz.

 

 

Adail Coelho Maia (1909–1962) era poeta sentimental, excelente no soneto. De seus sonetos, foi publicada apenas uma brochura, totalmente esgotada. Nasceu em São João do Piauí, onde faleceu tuberculoso. Autodidata, tinha bastante cultura, especialmente em direito, exercendo a profissão de rábula. Foi biografado na Antologia Poética Piauiense, de J. Miguel de Matos, 1974. Eis um poema considerado representativo de sua poética, O Usurário:

                                          

                                          Pensando simplesmente no dinheiro
                               Vive o rico usurário, noite e dia.
                               Se alguém lhe bate à porta, traz primeiro
                               A nota do que tem por garantia!
 
                               Por quase nada, tudo ele avalia
                               Num gesto de sagaz aventureiro;
                               E em  pouco tempo, cheio de alegria,
                               Leva do pobre o traste derradeiro.
 
                               O seu Deus é a riqueza conseguida,
                               Com ela pensa em se livrar do inferno
                               Porque com ela triunfou na vida.

                              

                               Mas um pesar em seu viver influi,
                               Saber que morre e o desespero eterno
                               De não poder levar o que possui
.    

 

José Expedito Rego (1928 - 2000). Médico, jornalista, crítico literário, poeta, romancista. No início escrevia apenas poesia e publicava nos jornais, produção que depois foi enfeixa em livro com o título de Horas sem Tempo, 2000. Notabilizou-se com o romance histórico Né de Sousa,  depois reeditado com o subtítulo de Vaqueiro e Visconde,  em 1981. Outros:   Malhadinha, 1990;  Vidas em Contraste, 1992, além de um livro de contos: Estórias do Tempo Antigo, 1996. A construção de seus romances, por serem voltados para a história e a vida social do povo,  pode dar uma falsa idéia de  realismo ou naturalismo à outrance.  Mas não é tanto assim. Lida bem com a forma, constrói a fábula criativamente, uma prosa atualizada, escorreita e carregada de bom humor. Um dos melhores romancistas do Piauí. O romace Vaqueiro e Visconde assim começa:

 

                   Do nascimento de um grande homem

 

Né Martins caminhava impaciente, do lado de fora do oitão da casa, ainda vestido com as perneiras de couro e o guarda-peito. Tirou apenas o gibão, enquanto engolia o caldo quente que lhe tinha preparado a negra Vicença. Através da parede de taipa, podia ouvir os gemidos baixos de Donana Rodrigues. Era o primeiro filho que nascia. Escutava também as palavras de encorajamento de Josefa, a parteira, mulata de olhar vivo, acostumada às noites perdidas, não tanto com a assistência aos partos, que naquele tempo e naqueles confins se davam raros, mas com os amores de coração, o cafuso Joaquim, de olhar mais brilhante do que o dela. Josefa tinha mais de trinta anos, era rija de corpo e quente de amor. Né Martins bem que a olhava guloso, às vezes. Aprendeu de pouco a arte de partejar com sua tia velha Catarina, que morreu no inverno passado. Ela própria teve dois filhos pegados pela Catarina e foi sua melhor lição. Donana mostrava-se cheia de acanhamentos, não queria deixar que Josefa desse ao menos uma olhada, para ver como ia a cousa. Pelo jeito ainda estava longe.Primeiro parto era assim mesmo.

Lá fora, Né Martins regulava os passos pelos gemidos de Donana. Andava mais depressa quando eles aumentavam e os diminuía quando a mulher calava. De vez em quando, paarava e olhava o tempo. O inverno comedçou cedo no ano de 1767. No dia 8 de dezembro havia já pasto garantido para o gado.Choveu naquela tarde mesmo e o riacho botou uma bela cheia. Os bezerros pinotavam alegres junto à cerca do curral, berrando pelas vacas, que respondiam com um mugido estirado e baixo.Formigas de asa se escondiam pelas palhas ainda molhadas da cobertura da casa. Estava acabando de escurecer.

A fazenda Serra Vermelha tinha sido doada por Valério Coelho Rodrigues, pai de Donana, velho português que se casou com uma senhora paulista e vivia ali perto, numa das maiores propriedades rurais da região. Amansava cerca de quatrocentos bezerros. Serra Vermelha haveria de ser grande também, pensava Né Martins, homem de trinta e muitos anos.Veio novo de Portugal, mas demorou algum tempo pela Bahia. Resolveu tentar a vida nos rincões nordestinos, trouxe carta de recomendação para o bastardo Coelho Rodrigues, trabalhou a princípio com o velho, na fazenda deste. Foi quando começou o namoro com Donana, bem mais nova que ele. Ambos ganharam com o casamento. Donana era rica, porém não era bonita. Ele, pobre, tinha saúde, disposição para o trabalho e, nas veias, sangue português limpo. A doação da fazenda veio a calhar. Agora lhe nasceria o primeiro filho que, se fosse macho,deveria chamar-se como o pai, Manuel de Sousa Martins, conforme a vontade de Donana. Para ficar diferente do genitor, que era conhecido de todos por Né Martins, o menino ganharia o nome na intimidade de Né de Sousa.

Né Martins estava cansado. Passou o dia todo andando a cavalo, em companhia do vaqueiro Afonso, a ver se encontrava umas novilhas arredias, que, pelos cáculos, andariam bem amojadas. Não encontraram as reses, levaram muita chuva e, ao chegar em casa, esperando estirar o corpo na boa rede tapuiarana, encontrou a mulher no rodeador.

Os gemidos agora pareciam mais fortes e amiudados. Josefa atarefava-se lá dentro. Né Martins estava cada vez mais impaciente.  Veio pela frente da casa, entrou na varanda, onde o vaqueiro se havia sentado sobre uns arreios, e a um canto.

- Que dia é hoje, Afonso?

- Hoje é sabo, seu Né.

- Sábado?

- Inhô sim! Dia bom pro minino nascê.

- Dia bom, por quê, Afonso?

- Diz qui minino macho, qui nasce dia de sabo, tem de grande.

Né Martins continuou a caminhada, agora na varanda. As esporas retiniam, indo e vindo, pelo chão de barro batido. Junto à porta do corredor, acendeu-se o morrãoenrolado de cera de abelha. Olhando para o interior, viu luz na dispensa. Foi até lá e encontrou Josefa.

- Como vai a dona?

- perto de nascê o minino. Tou aqui percurando um pouco de manteiga.

- Para que manteiga? – sobressaltou-se Né Martins, pensando em furto da mulata.

A parteira encabulou. Não podia dizer ao patrão para que servia a manteiga. Né Martins insistia, já zangado:

- Para que manteira, negra?

- Seu Né, é pra ajudá no parto de Donana. Ela tem qui bebê um pouco, pra  criá mais força... E a gente passa também nas parte... pro minino nascê mais depressa...

Agora foi a vez de Né Martins encabular. Deixou a parteira na despensa e voltou para a varanda.

                                          (...)

- Toma o lençó, morde cum força!

Donana meteu a ponta de lençol entre os dentes e mordeu, como ensinou a parteira, o rosto congesto, as veias do pescoço para arrebentar. Josefa conheceu que havia chegado a hora. Aquele repuxo grande não podia ser outra cousa. O menino nascia, Sentou do lado da cama e esperou. Ralmente, não tardou que o rapaz estrebuchasse e berrasse, sobre os panos limpos. Josefa limpou-lhe o nariz e a boca, amarrou e cortou o umbigo, pôs a pucumã, envolveu-o nos cueiros. Passou a cuidar da mãe. Não tardou que viessem as companheiras. Chamou  a mucama para ajudar nas arrumações, agora que o pior havia passado.

Don’Ana Rodrigues de Santana estava composta e arrumada, quando Né Martins entrou radiante, para ver o recém-nascido. Era homem, como tinha esperado. E chegou em paz! Donana sorria da cama, o menino do lado, muito vermelho e amassado, respirando manso. Num canto do quarto, Josefa colocou um defumador de estrume de gado, com folhas aromáticas. Espantava as moscas e os maus espíritos.

Né Martins sorria, contente.

 

Clóvis Moura (1925 - ?), nasceu em Amarante-PI e faleceu em São Paulo. Formado em filosofia,  jornalista, poeta, ensaísta, sociólogo, autor de Rebeliões na Senzala, 1959;  Espantalho na Feira, 1961;  Argila da Memória, 1964;  Flauta de Argila, 1992, entre outras obras.

 

          O quadrilátero boi

          tem o mugido e tem aspas.

          O cabo ficou sobrando

na moldura projetada.

O boi é pedra e mais olhos:

olhos que doem no poente.

Rumina os ocasos mansos.

Tem no olhar um ponto e vírgula.

O boi preto vem com chifres

vermelhos para o curral.

Nas ancas há movimentos

ritmicos para o punhal.

O quadrilátero boi

foi para lugares

de cal e pedra, cardeiros,

distância e sol. É um dado

jogado, quando é malhado.

Quando é novilho parece

que está cheirando o horizonte.

O boi engole o curral

para encurtar a paisagem.

Ficou somente no córrego

o salibre que com barro

foi por ele absorvido

à tarde no lambedor.

O boi ferrado é um limite,

é boi de propriedade.

O quadrilátero boi

não se parece a machado,

não tem perfil de adaga,

não se assemelha a punhal.

Antes parece uma casa

acachapada: os dois chifres

são dois pássaros pousados

olhando os donos passados.

Os pés plantados na terra

Parece que esperam o mijo.

O boi muge a paisagem.

 

João Emílio (1937 – 1995),  nome pelo qual ficou conhecido literariamente João Emílio Falcão Costa Filho, nascido em Teresina e falecido em Brasília, no exercício de sua profissão. Foi essencialmente jornalista político. Nas horas vagas praticava o conto e a crônica com beleza e simplicidade, quando se voltava para a terra de origem. Confessava que entre uma viagem à Europa e umas férias na fazenda, nas redondezas de Teresina, muitas vezes tomava o rumo da última, para reabastecer–se da força telúrica. Estreou com Aleluia, 1977;  depois vieram: Crônicas, 1987, e  O Andarilho, 1989, o primeiro e o último de contos. Trabalhos seus foram incluídos em diversas coletâneas, inclusive Piauí: Terra, História e Literatura, 1980.

 

Carlos Castelo Branco (1920 – 1993). Jornalista, com especialidade na área política. Foi um dos maiores jornalistas brasileiros do seu tempo. Viveu mais fora do que no Piauí, mas nunca se desligou de sua terra, sua gente. Era membro da Academia Piauiense de Letras.  Contista, romancista, cronista, pertencia também à Academia Brasileira de Letras. Na literatura ficou famoso com um livro, Continhos Brasileiros, 1952, sua estréia, que não quis reeditar. Depois da publicação de Arco do Triunfo, romance, em 1959, desgostou-se da literatura. Tudo o mais que escreveu classifica-se como artigos e ensaios políticos, salvo as crônicas de Retratos e Fatos da História Recente, 1994.

         

                      OUTROS ESCRITORES

 

Estes são os que se ausentaram longamente da terra, por isto pouco produziram ou foram menos divulgados. Sua influência foi menor na literatura piauiense. Mesmo assim são aqui lembrados:  

 

Osvaldo Soares do Nacimento (1930 – 19..?) nasceu em  Amarante – PI.  Poeta e romancista. Formado em Direito; Promotor público no Piauí,  técnico em Desenvolvimento Econômico.  Pertencia ao núcle inicial do Movimento Meridiano.  Autor de Frutos da Terra, 1950 (poesia); Há Tantas Estrelas no Ceu (novela) e Proteinas para a Raça Eleita, 1979 (romance).

 

Moura Rego (1911–1988), nome artístico de Raimundo de Moura Rego.  nacido em Matões-MA,  Poeta, cronista, romancista e músico. Jornalista e funcionário público federal. Publicou: Trovas, 1942;  Gritos Perdidos, 1944;  As Mamoranas Estão Florindo, romance, 1985;  Notas Fora de Pauta, crônica musical, 1988, e deixou inédito um volume de contos regionais.  

 

Antônio Sampaio (1923), nasceu em Esperantina – PI. Professor, poeta, historiador, romancista. Obras: Reminiscências, 1964; O Velho Samuel, 1965, e, anteriormente,  Esperantina à Luz da História, s/data.  

 

Cândido Carvalho Guerra (1921), farmacista, professor, poeta, ficcionista. Publicou: Enxurrada do Gurguéia, 1956; Cânticos Tropicais, 1986;  Maria da Soledade, 1994, este publicado pela Fundação Cultural Monsenhor Chaves, Teresina.

 

J. Ribamar Matos, nome literário de José Ribamar Matos (1946 -1974), Obra: Poeira de Estrada, 1984 - uma coleção de suas poesias publicada pelo Instituto Histórico de Oeiras, Piauí.

 

Júlio Romão da Silva (1917), jornalista, dramaturgo, ensaísta, etnólogo, especialmente com  Memória Histórica sobre a Transferência da Capital do Piauí, 1952;  A Parábola da Ovelha, 1963; A Mensagem do Salmo, 1967;  O Letreiro Luminoso, 1998, conto. Membro da Academia Piauiense de Letras.

 

Pedro da Silva Ribeiro (1930), formado em Direito, funcionário do Trbunal de Contas da União, aposentado. Mora em Brasília. Professor, cronista, contista, romancista. Membro da Academia Piauiense de Letras. Obras: Vento Geral, 1982;  Sol Poente, 1987, entre outras. 

 

Ribamar Ramos, nome literário de José de Ribamar Rodrigues Ramos (1914 - 1994), jornalista, professor em Floriano, depois bancário, indo morar no Rio de Janeiro, onde se aposentou em 1974. Obra póstuma: Angústia e Êxtase, l983, Secretaria de Cultura do Piauí.

 

J. Ribamar Oliveira (1921 – 1995). Romancista e contista. Um dos fundadores do Clube dos Novos –   movimento cultural da geração.  Só veio a publicar livros muito tarde: Porto da Imaculada Conceição dos Marruás, 1979; João Burundanga, 1980; Um Rio de Águas Barrentas, 1989, e A Guerra do Jenipapo, 1993.

 

Vítor Gonçalves Neto (1925 – 1989). Jornalista, cronista, contista. Publica conto na  Antologia de Contos Regionais Brasileiros, 1951, organizada por Pinto de Aguiar, na Bahia.  Participa também da  Antologia de Sonetos Piauienses, de Félix Aires, 1972.  Livros publicados: Conversa tão somente, 1957, crônicas,  e Roteiro das Sete Cidades, 1963.  

 

Juith Santana (1924 –1988). Folclorista, poeta e historiadora. Livros publicados: Salmos do meu Destino, 1969;  Piripiri, 1978; Parnaíba, 1983;  O Padre Freitas, 1984;  História Alegre de Nossa Gente, 1986.

 

 

                                      TEATRO

 

Francisco Pereira da Silva (1918-1985), funcionário da Biblioteca Nacional, Rio, mas  natural de Campo Maior – PI, fazendo parte dos seus estudos em Teresina (ginasial), indo cursar o clássico em São Luís. Dramaturgo e contista, cujas obras principais são Lázaro, l948, Cristo Proclamado, 1959, Romance do Vilela, 1960, Chapéu de Sebo e Vazo Suspirado, 1963, Reino do Mar Sem Fim, 1978, e mais Chão dos Penitentes, Raimunda-Raimunda,  A Nova Helena, O Caso do Chapéu, O Desejado e tantas outras, tendo marcado forte influência no teatro piauiense, é nome imprescindível a uma história da literatura no Piauí. Deixou muitos inéditos, entre os quais um romance: Revocata. Em Chico Pereira  “percebe-se, no início, influências de O’ Neil e Garcia Lorca..”  Mas, a partir de Cristo Proclamado  “o autor encontra expressão própria, onde elementos de comédia doméstica e de conflitos familiares se somam à preocupação com a condição social do homem do Nordeste brasileiro”, diz Cláudio Bastos. E Tarciso Prado diz mais: “Antecipou-se à sua época escrevendo um teatro moderno e altamente avançado, quando as produções de então eram todas conservadoras.”  Pessoa de temperamento doce mas de inteligência viva, Chico Pereira levou para seu teatro a seriedade e o estudo,  além do amor às coisas simples e verdadeiramente belas. Sua peça mais famosa é Chapéu de Sebo, que antes foi conto,  participou da antologia de contos  Piauí: Terra, História e Literatura e já antes participara da antologia de contos organizada por Graciliano Ramos. Vale a pena uma amostra de parte de Reino do Mar sem Fim, publicada pela revista Cirandinha, nº 3, 1978, peça levada à cena no Teatro 4 de Setembro, dentro da programação da 1ª Semana Chico Pereira, de 9 a 5-12-1985, com Tarciso Prado como ator e diretor.  

Este é o início da peça:

 

Um grande lençol branco que muda de forma para sugerir – ora, uma rede de embalo, ora as velas de um saveiro. Música. No proscênio estão Leopoldino, Aldora Estrela e Ariosto Marinho. Ao lado deste, um samburá.

LEOPOLDINO – Meu nome? Antônio Leopoldino dos Santos. A idade que eu tenho?  É de 32 anos. Sim, sou casado. O nome dela é Aldora Estrela dos Santos. Filhos? Tenho três. Isto é, agora são só dois, pois Narcisa, a mais velhinha, sumiu. E eu sei? A gente sabe os caminhos da vida?  Tudo é muito misterioso. Sabe não. Ninguém sabe. Não. Deus mudou a vida-dela. Eu/? Não! Não senhor! É um alive! A mulher?  Então Aldora Estrela, tu tem a coragem de dizer que  me viu? Ah isso não! Ela me viu foi na rede do copiar – me balançando com a sumida menina – contando para ela aquele relato de um tal de Prìnspo Formoso. Se Aldora Estrela até me disse assim: fez a menina dormir sem lavar os pés.

ALDORA Eu? Aldora Estrela. Tenho 30 anos. Sim, sou casada com este homemaí, que, por desgraça, é o pai de meus filhos. Sim, tive três. Narcisa, a falecida, era a mais velha. Tinha 10 anos. Agora são só dois: Alaor e Lael, o caçula. Narcisa? como era ela?  Ah, era lourinha, lourinha. Excelência, ai quem me dera a minha filha de volta! Que eu me encontrasse de novo com a minha filha. Seria um sonho. Um lindo sonho!

LEOPOLDINO – Pois pra mim a volta dela é garantida. É uma certeza.

ALDORA (mostrando uma bonequinha) – Cacheada ver uma boneca. Como esta bonequinha que era dela. Doutor eu juro! Minha gente eu juro! Juro como ele deu a minha filha pra Janaína. Pois se ele prometeu?

LEOPOLDINO – Eu prometi?

MÚSICA, O LENÇOL SUGERE, AGORA UMA REDE    NO PROFUNDO AZUL DA TARDE. E NELA VAI DEITAR-SE LEOPOLDINO. SURGE NARCISA, QUE VEM SENTAR-SE NAS PERNAS DO PAI.

         NARCISA – Conte de novo, meu pai.

          LEOPOLDINO – Não te contei vinte vezes? Agora vou contar a de Janaina.

          NARCISA -  Não, não quero a de Janaína.

          LEOPOLDINO – Por quê? Você não gosta da Rainha do Mar? De nossa Mãe Janaína? Ela é sua madrinha. Sabia?

          NARCISA (com a mão na boca do pai) – Pare. Conte a história do Prinspo Formoso. Conte mais. Conte. Ela é bonita.

          LEOPOLDINO – Então o pai tinha três filhas e ia fazer um viajão de léguas e muitas léguas.

          NARCISA – Como  era ele?   

          LEOPOLDINO – Era assim como eu, um pescador, sendo que era Rei. Então a primeira filha, que atendia pelo nome de Mafalda, pediu que ele, na volta, trouvesse para ela um vestido da cor do campo com as fulores. Lianor, a segunda, pediu que ele trouvesse um vestido da cor do ceu, com as estrelas.

          NARCISA – E a terceira? A de nome Rosa Flor? Já sei. Ela pediu um vestido cor do mar com os peixinhos.

          LEOPOLDINO  -  Podia ter sido,  que no coração dela é o que ela queria mesmo, era esse vestido,  pois ela,  como você, Narcisa, gostava de tudo que era do mar.

          NARCISA – Então, o que ela pediu?   

          LEOPOLDINO – Ela pediu uma flor.

          NARCISA – E eu? Tinha pedido o quê?  Deixe eu ver. Ah, eu pedi a boneca Mãezinha. Não foi?

         LEOPOLDINO – Foi. Então Rosa Flor pediu ao pai a flor mais linda do mundo!  ‘E quando inteirou 6 meses / o Rei para casa voltou / tristonho desconsolado / pela flor que não achou / logo pra filha estimada / que nunca lhe incomodou’ Quando faltava uma légua / para em casa ele chegar / avistou de muito longe /

         NARCISA -  ‘um sombrioso pomar / perto dum velho castelo / onde devia passar.

           LEOPOLDINO – ‘Havia então uma roseira / ornamentando o portão /

           NARCISA – ‘ e uma rosa vermelha / perfumava a região’.

 

 

                                  DIGRESSÃO III

                Movimento de Renovação Cultural

 

 

 

 

Antes de terminada a década de 1950, o movimento  se esgota por diversos motivos: cansaço, dispersão de seus principais membros,  abandono de alguns em busca de atividades práticas e morte de outros.

O tempo social é descontínuo, de modo especial para a literatura. Mas, mesmo assim,  há de perguntar-se, então, como se daria a transição entre os meridianistas e o pessoal mais novo, da geração que se chamaria clipiana?  Não seria tudo a mesma coisa? 

Não. A prova são o tempo social, os figurantes e os textos de ambas as gerações. Nos anos 60,  a comunicação entre o Piauí e o Rio desenvolver-se-ia a tal ponto que,  facilmente, era possível ler  tudo o que fosse editado no Brasil, inclusive os jornais com seus suplementos literários e culturais.  O pensamento existencialista dos franceses e da geração do pós-guerra já circulava com velocidade, juntando-se à tendência memorialística da ficção piauiense  (apontada pela crítica recente),  ambos concorrendo  para o desenvolvimento de um existencialismo caboclo como clima de época. É possível que alguns ecos da Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, acontecido em Minas, em agosto de 1963, chegassem até o Piauí. Em suas conclusões, aquele movimento, representado pelos  poetas do concretismo e outros nomes expressivos da poesia nacional, assentava, entre outros postulados renovadores, que “a responsabilidade do poeta perante a sua época e, mais particularmente,  perante a sociedade de que faz parte, não deve permitir-lhe o uso da linguagem para encobrir a realidade, aceitando e consagrando, como fixos e definitivos, padrões, formas e temas, que se limitam a repetir”.

          No plano limitado da província, no primeiro momento, a ressonância da poesia de  Álvaro Pacheco é maior que a de H. Dobal, que publicara apenas nos jornais e revistas do sul e na Antologia dos Poetas Bissextos, de Manuel Bandeira. Na prosa de ficção, Fontes Ibiapina e O. G. Rego de Carvalho,  líderes incontestes da geração passada, exerceriam alguma influência nos escritores que começavam nos anos 1960, e Paulo Nunes, na crítica, era seguido em letra e voz.  E isto, se  foi muito bom por um lado, por outro colocava outra pergunta que as gerações normalmente se fazem:

Como afirmar-se sem contestação?

Para complicar o quadro da geração que se iniciava, aparece no cenário, um divulgador da estirpe do Prof. Raimundo Santana, político (foi Prefeito de Campo Maior – PI e Secretário de Planejamento do Piauí), sociólogo e mestre: dedica-se com paixão ao magistério – e funda o Movimento de Renovação Cultural (1960), publicando os historiadores Odilon Nunes e Mons.Chaves, na Revista Econômica, além dos seus próprios trabalhos de pesquisa, e  incentivando os escritores que surgiam na área propriamente literária: J. Miguel de Matos (Síntese Bibliográfia da Literatura Piauiense), A. Sampaio (O Velho Samuel), Pedro Celestino (Sinais de Seca) e tantos outros, sem preconceitos quanto ao gênero, pois a sua intenção era cultuar o Piauí, através de estudos econômicos, história, crítica e literatura.

 

Raimundo Santana (1926), cujo nome completo é Raimundo Nonato Monteiro de Santan, nasceu em Campo Maior – PI. Formado em Direito e Economia, professor, autor de Introdução à  Problemática da Economia Piauiense, 1957; O Desenvolvimento Econômico Nacional na Teoria Econômica Geral, 1959; e Evolução Histórica da Economia Piauiense, 1964, brilhante inteligência e grande vontade de contribuir, deu sua parcela na modificação do panorama cultural das décdas de 1950-1960.   Registre-se que sua produção mais recente remete para a ciência e a filosofia da ciência, pois, no fundo, é  um espírito científico e sempre esteve além do seu tempo, como mostram  à saciedade os volumes publicados últimamente, resultantes de cursos e conferências na Universidade Federal do Piauí, na Universidade de Brasília, na Escola Superior de Guerra e no Colério Interamericando de Defesa (Washington – EUA): - A Nova Realidade-Mundo, I e II, 1997 e 1998.  

Além disto, laborando nesse terreno, reúne inteligências e especialidades e propicia edições coletivas, sob sua direção, entre as quais Piauí: Formação, Desenvolvimento, Perspectivas, 1995, e Apontamentos para a História Cultural do Piauí, 2003.  Organizou criou e mantém a Fundação de Apoio Cultural do Piauí, membro da Academia Piauiense de Letras, entidade que dirigiu nos anos 200/2001, promovendo edições de livros, revistas e conferências sobre a passgem do velho ao novo milênio.

 

 

                              GERAÇÃO DO CLIP 

 

                   

Em 1964, por simples coincidência ou, quem sabe guiados pelo destino,  reúnem-se, em Teresina, alguns jovens e fundam uma associação literária, convencendo a outros que ler e escrever seria tão importante para o desenvolvimento da sociedade quanto fazer política e discursos ou mesmo fortuna nos negócios.  Assim, Hardi Filho (Cinzas e Orvalhos, 1964, livro premiado em concurso público da Prefeitura Municipal de Teresina) e Herculano Moraes (Murmúrios ao Vento, 1965),  cada um com seu livro na mão, já editado, juntam-se ao bancário Francisco Miguel de Moura, que acabava de chegar da Bahia, trazendo debaixo do braço os originais  de  Areias  - livro que viria a ser sua estreia, no ano seguinte.

          Não obstante o desconforto por causa do abalo político-institucional de do ano, parecia um tempo de calmaria na vida literária. Poucas pessoas trabalhavam na área, mas isoladamente. Literatura parecia uma atividade distante, já no passado. A turma-núcleo do movimento meridiano debandou.  Paulo Nunes, H. Dobal e  O. G. Rego de Carvalho estavam no Rio, em  Brasília, ou no exterior.  O Piauí se ressentia também da ausência do grande editor e divulgador de nossa terra e da nossa gente, tanto em literatura quanto em economia e históra, Raimundo Santana, primeiro nos Estados Unidos e depois em Brasília, como professor na UnB. Existia a Academia Piauiense de Letras, nas mãos do velho Des. Simplício de Sousa Mendes, a qual, na crítica de O.  G. Rego de Carvalho, se  tornara simplesmente uma academia de desembargadores.

Então, aos jovens Herculano Moraes, Hardi Filho e Chico Miguel juntar-se-iam o jornalista e historiador Osvaldo Lemos, os contistas  Geraldo Borges e João Henrique Sousa, o romancista Castro Aguiar,  o teatrólogo Tarciso Prado,  os poetas e cronistas Honorato Rocha Costa, Benoni Alencar, R. Vilarinho, Wagner Lemos, Cacilda da Mata, Rosa Castelo Branco, Joaquim Soares e Francisco C. Viana, para a fundação oficial do Circulo Literário Piauiense - CLIP, em 9 de  abril de 1967.  No ano anterior  havia saído Areias, de Francisco Miguel de Moura, e, em seguida Linguagem e Comunicação em O. G. Rego de Carvalho, em 1972, tornando-se conhecido  em todo o Brasil como crítico literário. Na visão de Herculano Morais,  Chico Miguel já apontava para a técnica do concretismo. Depois da leitura de Pedra em Sobressalto (1974), O. G. Rego de Carvalho declara: “Francisco Miguel de Moura cresceu na minha admiração e hoje o posso citar como um dos três maiores poetas do Piauí, ao lado de Da Costa e Silva e H. Dobal”. 

Numa avaliação do Movimento de 1967, alguns anos depois, constata o historiador Herculano Moraes, que “o Círculo Literário PiauienseCLIP era  o instrumento através do qual a mocidade intelectual da época discutia os rumos do país, os lançamentos editoriais, os acontecimentos culturais, colocando a nu suas posições filosóficas e o pensamento literário, em textos que eram ouvidos e lidos por todos. Sonhavam com um país livre, onde o direito de dizer e pensar não fosse uma utopia.” 

Esse grupo encarregou-se de invadir as páginas dos jornais e os programas de rádio (Herculano Moraes e Hardi Filho, à época já faziam programas  radiofônicos), para levar sua mensagem. Recitais de poemas foram improvisados, com ajuda de Tarciso Prado e de outras pessoas de teatro; peças foram encenadas;  um jornal – O CLIP – foi editado, sob a inspiração e ajuda de Herculano Moraes. Naquele nº 1, entre outras matérias, saiu uma entrevista com o poeta, romancista, jornalista e rábula Olímpio Vaz da Costa Neto, feita ao vivo por aqueles ousados jovens do CLIP, no Quartel da Polícia Militar, onde o entrevistado se encontrava preso por crime de Imprensa. Não esquecer que a situação política do Brasil era das piores até então: jovens, estudantes ou não, eram presos sob as mais rídiculas acusações. Dentre os clipianos, foram para a cadeia Geraldo Borges e  Benoni Alencar, assim também o Prof. Diogo Ayremoraes Soares, da Faculdade Católica de Filosofia do Piauí.

Benoni Alencar relata, em entrevista: “O regime militar, no Piauí, interrogou e prendeu 62 pessoas. As autoridades militares foram truculentas e sanguinárias, criaram um clima de  medo e terror; medo e terror porque  não se sabia se voltava vivo dos interrogatórios, que eram feitos de madrugada” (Meio Norte, 28-12-1998). Alguns moços do Piauí desapareceram misteriosamente.

Estudantes, artistas e intelectuais eram perseguidos. Eugênio Rego resume, em matéria do jornal Diário do Povo, de 4 de julho de 2007, as palavras de Tarciso Prado, ator e testemunha ocular: “A repressão que se intalou no Brasil a partir de 1964/1965, atingiu  de cheio o Grupo Teste de Teatro, criado em 1965, cujo grupo viria a ser o mais importante movimento estudantil piauiense. Os anos seguintes seriam marcados pela repressão institucionalizada. Em 1967, a montagem do polêmico Auto de Lampião no Além, de Gomes Campos, atraiu a ira dos militares, e o autor acabou preso junto com Tarciso Prado e outros atores. A repessão marcava o fim da era de ouro do teatro piauiense.”

A música popular, outra arte próxima da poesia,  também fora marcada pela ebulição da década. Narrando as dificuldades por que passaram os jovens idealistas da música para criar as  duas primeiras  bandas e  apresentar os primeiros shows, eis o que escreveu o poeta Alexandre Carvalho, radialista que começou a trabalhar na Rádio Clube de Teresina, em 1963: “Início da década de 60, a censura havia castrado todo o poder criativo da música popular brasileira. (...) Aqui, no Piauí, não havia TV, mas o rádio dava seus primeiros passos com a Jovem Guarda. (..) Começa aqui a história inesquecível do conjunto musical  Os Brasinhas, resumidamente, é claro, desde o seu nascimento até  1968. quando, por coincidência, o conjunto começou a se modificar  e eu tive que partir para assumir no BB de Imperatriz – MA, tendo antes, juntamente com o Ernesto criado um novo grupo chamado Os Metralhas”. (O Sonho não Acabou, Teresina, 2002)

Foi nesse clima que nasceu o CLIP.  E dali partiram seus fundadores para a integração com os que vinham, mais novos ou mais velhos, até com pessoas que aspiravam a Academia Piauiense de Letras, como J. Miguel de Matos, assunto sobre o qual os clipianos nem pensavam para si. Mas também não detestavam. Movimentar a cultura, tirar a literatura do marasmo a que fora relegada era a aspiração. Fazer publicar os livros que estavam engavetados. Promover concursos e lutar pela participação do poder público no setor artístico. Dessa forma, suas ações resultaram na criação da Secretaria da Cultura, em 6 de dezembro de 1973, e, posteriormente, na Fundação Cultural do Piauí, em 4 de abril de 1975.    

          O  CLIP não duraria muito tempo como entidade, mas também nunca foi sepultado. Seus adeptos dispersaram-se, talvez levados pela situação política do país - o Golpe Militar de 64, seguido pelo de 68 - mas desaguaria na oportuna criação da União Brasileira de Escritores do Piauí (UBE-PI), a 21 de outubro de 1973.

 Da geração «clipiana», citem-se os dirigentes do movimento e outros  que possuem obra definida, com boas referências da crítica:  Hardi Filho (do grupo,  certamente, o nome mais expressivo na poesia),  Francisco Miguel de Moura, Magalhães da Costa, Herculano Morais, Castro Aguiar, Gregório de Morais, Geraldo Borges e Osvaldo Lemos.

  

                                  POETAS E PROSADORES  

 

Hardi Filho (1934), nome literário de Francisco Hardi Filho, nasceu em Fortaleza – CE. Poeta, cronista, crítico literário, jornalista. Chegou ao Piauí já funcionário público federal, onde fundou raízes sentimentais. Ninguém é mais piauiense do que Hardi Filho. A Assembléia Legislativa, num ato de justíssimo reconhecimento, concedeu-lhe o título de cidadania. Secretariou o CLIP enquanto a entidade funcionou. Obras: Cinzas e Orvalhos, 1964 (Prêmio da Prefeitura Municipal de Teresina);  Gruta Iluminada, 1970;  De Desencanto e de  Amor, l983;  Cantovia, 1986;  Teoria do Simples, 1986; Suicídio do Tempo, 1991;  Veneno das Horas, 1991;  Estação 14, 1997, O Sonho dos Deuses e os Dias Errantes, 2001;  Tempo – Nuvem, 2004; Poemas da Mesma Fonte, 2006; Feições do Tempo e da Vida, 2009; Tempo contra Tempo, 2007 (parceria com Francisco Miguel de Moura) - poesia, além dos ensaios: Poesia e Dor no Simbolismo na Poesia de Celso Pinheiro, 1974 (1ª edição), reeditado em 1987;   Oliveira Neto, Poeta do Amor e da Alegria, 1993 e o memorial O Dedo do Homem, 2000.  No seu trabalho contínuo, de obra a obra, incorpora as conquistas do moderno e as mais recentes experiências do verso na construção poemática de modo geral. Entretanto, a crítica tem concordado: é no soneto que está o melhor de sua arte.  Poeta nobre, mesmo quando se submete a temas populares;  sua dicção é duma dignidade que não se encontra facilmente na literatura brasileira atual.  «O privilégio do verso me esperava.», escreveu, ele próprio, num de seus poemas.

          A. Tito Filho assim se expressa em relação ao poeta Hardi: “É uma vocação real de poeta, bem revelada nesse livro de versos de boa água, dedicado mais aos tristes. Cinzas e Orvalhos, indicado pela Academia Piauiense de Letras ao prêmio “Celso Pinheiro” – Concurso Literário da Prefeitura de Teresina – 1963. Só as cousas simples o comovem, com suas mensagens inquietantes. Sua poesia é a contemplação, onde permanece, em absoluto abandono, como se não precisasse de conforto humano. Tem ele o gosto da solidão. Personalidade forte, espírito direito, tudo nele é claro com paisagens dos tropicos. De apurada experiência intelectual, Hardi escreveu livro rico de lídima inspiração poética, que tanto enobrece as letras piauieneses.  Obra que aproxima a alma dos outros para a compreensão dos desencantos do mundo”.

E dele disse Herculano Moraes, autor de Visão Histórica da Literatura Piauiense (1976): «Chega a resumir a última glória de uma poesia efetivamente compromissada com os estados interiores da alma.»

 

                              Infância

          

 Infãncia é viço, é floração,  é sonho,

Barco de velas côncavas ao vento,

No verde-azul do mar – deslumbramento,

Sob os anis do ceu – jardim risonho.

 

Revendo minha infância em pensamento,

Na evocação feliz em que me ponho,

Comparo e sinto com pesar, tristonho,

Como perdeste, ó mundo,o encantamento!

 

Infância pobre, prenhe de rumores,

Rica de enlevo, amor e confiança:

Uma festa de músicas e cores.

 

Jamais toldou meu pensamento a cisma,

Jamais sentiu meu coração de criança

Este vazio imenso que me abisma.

  

 

     Artista

 

No atelier da vida, solitário,
somente em comunhão com a fantasia,
eu fui o artista que criou miragens
para conforto de ânsias infinitas.

Eu fui, também, aquele que traçou
formas de vida pelo sentimento;
o gênio louco que ideou amores
para sustento, amparo da esperança.

Insano escafandrista dos mistérios,
fui tradutor das emoções do mundo
e desenhista da volúpia eterna.

De pé, trêmulas mãos, olhos insones,
fui satanás sedento de domínio,
fui deus criando e alimentando sonhos!

                   Esdruxulo

 

A prata, o caviar, a mesa elástica

riem do pobre

e lhe pesam no vazio do estômago.

 

O lustre, o veludo, o mármore

esbofeteiam

a faca do menino pálido.

 

Doi no seu corpo o sacrifício

da ingênua espera:

aberta mão ao desviado prêmio

 

De tanto conviver com áscaris

morre o menino

de alma e coração imáculos.

 

Uma paixão antiga, hoje única,

domina o mundo.

É torturante a dor sem número.

 

           Francisco Miguel de Moura (1933), poeta, contista, cronista, romancista e crítico literário,  nasceu no município de Picos (povoado Jenipapeiro, hoje Fransciso Santos – PI). Com Herculano Moraes (Presidente) e Hardi Filho (Secretário), formava o trio ativo da diretoria do CLIP, no cargo de Tesoureiro. Trabalhando no Banco do Brasil, a função clipiana casou bem com a circunstância funcional. Embora chegado a Teresina nos albores da “revolução” de 1964, vindo da Bahia, entrou de cheio no movimento que se esboçava. É incontestável o reconhecimento do seu valor  na geração dos anos 60, inclusive por nomes famosos como Assis Brasil e H. Dobal.  

Por razão histórica pertinente, aqui vai transcrita parte da matéria  de autoria de Herculando Moraes, sobre o poeta Chico Miguel de Moura e seu livro Areias,  lida no programa LIRAS SINFÔNICAS, da Rádio Pioneira de Teresina, em 10/5/1967:

 

          “Sua poesia, na maioria das vezes, focaliza a própria vida: seu labutar incessante e quotidiano, suas desgraças e seus martírios, suas lágrimas e suas dores. Seu poema O Copo é uma afirmativa do que dissemos”:   

 

A poesia rústica do copo,

o homem simples vai,

pela manhã que vem,

brindar à solidão

de sua alma esmagada

ao peso da desgraça

da pobreza amém.

 

Bateu na mulher,

brigou com o amigo,

discutiu com o patrão,

perdeu o trabalho:

- Vai para o copo,

único amigo que o fará sonhar

e esquecer

e perdoar

a vida que passa rodando

pelo fundo dos olhos bons.

 

Não o condenem por isto.

É um santo desconhecido,

sua vida não lhe vale.

Consolação.

 

Também o copo

- entornado e consciente –

sem esperança de chorar

a última lágrima do dia

antes do poente,

preferiu suicidar-se

mas sub-repticiamente.

Sua vida não lhe vale.

Consolação.

 

Eu quero também beber poesia

No copo da imaginação,

Todo santíssimo dia.

Quero ficar tonto no chão,

Acreditar no mundo,

No movimento.

Na vida.

Essa vida que não me vale.

Consolação.

 

“Noutras vezes, tateia no mundo da infância, e a saudade lhe invade o espírito. Inspira-se. As figuras se embaralham na sua mente.  E sua cidadezinha, e berço do seu berço, aparece qual um milagre na noite de sublime inspiração”:

                                         À Minha Vila

 

Entre dois chapadões – terra bendita,

de alma mais pura do que a branca areia,

terra que ouviu, de minha mãe contrita,

rezas a Deus, logo depois da ceia...

 

És tão humilde e pequenina aldeia

que, pela vida, em nosso peito habita.

Qual semente daquele que semeia,

és semente do amor – terra bendita!

 

Teu sol é quente  e é frio o teu luar.

São  gigantes, na sombra, o juazeiro

e a carnauba... – O vento a farfalhar.

 

Vê-se, em roda à capela, o casario

como a adorá-la... Ó meu Jenipapeiro!...

De frente: o vale, o lajeado, o rio.

 

 “Chico Miguel é um homem simples. Tem maneira toda sua, toda especial de tratar com suas amizades. Poeta primoroso, seus trabalhos têm beleza, não artifício. Moderno, em todos os sentidos, ultrapassou as barreiras do parnasianismo e do simbolismo como escolas, e trouxe, para os apreciadores da Poesia, um estilo novo e diferente para este Piauí, que ainda não havia conhecido o verdadeiro sentido da poesia moderna. Não porque todos sejamos ignorantes no assunto, mas porque as classes que nos deviam orientar no caminho da moderna literatura divorciam-se da juventude, e deixam-na à mercê de alienações. Chico Miguel é diferente: - intrépido e audacioso, lutou, venceu, realizou-se”.

           Tempos depois, Cunha e Silva Filho, da nova geração escritores piauienses, professor, tradutor, cronistas e, sobretudo, crítico literário de talento, manifestou-se a respeito da poesia de Moura, especialmente a de Poemas Ou/tonais (1991), conforme ensaio publicado na revista LAVRA-IDEIAS E LETRAS, nº 8, Brasília – DF, 1993:

           “Miguel de Moura é dono de uma poesia contida, sua lira é a antilira naquele sentido da poesia drummondiana. (...) Esse tom drummondiano se vislumbra igualmente em todo aquele  poema da p. 131”:

                                   

chega o tempo de dizer-se

o que não se ouviu.

 

mas as palavras são mistérios

                            nem mais soam

                            como os sinos

                             nos nossos ouvidos

                             sonolentos.

 

chega um tempo de dizer-se o impossível

e o impossível já foi dito.

 

chega um tempo de calar

e a gente inventa uma maneira triste

de dizer numa lingua estranha

um silêncio amordaçado.    

 

Herculano Moraes (1945), nome literário de Herculano Moraes da Silva Filho, nascido em São Raimundo Nonato-PI. Jornalista. poeta, cronista,  romancista, crítico e historiador literário, atividade na qual mais se destacou. Desde a criação do CLIP (em cuja diretoria era o Presidente) até hoje vem movimentando a literatura piauiense como ninguém, com passagens pela política (Vereador de Teresina, 1971-73, e Secretário de Comunicação do Governo do Piauí, na administração Lucídio Portela – 1979/1983). Estreou muito jovem, pela força de um idealismo que, parece, conservará pela vida afora. De palavra fácil, tanto falando quanto ao escrever, especialmente se o assunto é cultura, inscreve-se entre os grandes divulgadores do Piauí e sua gente. Obras:  Murmúrios ao Vento, 1965;  Vozes sem  Eco, 1967;  Meus Poemas Teus, 1969.  A partir de Território Bendito, 1973, sua poesia ganha mais técnica como demonstra em Seca, Enchente e Solidão, 1977, e  prossegue em Pregão, 1978, e tantos outros. Obras de crítica e história, onde mais se destacou:  Chão de Poetas,  1974;  A Nova Literatura Piauiense, 1975;  Visão Histórica da Literatura Piauiense, 1976. Nos diversos trabalhos escritos e publicados nessa área, destaque-se o  memorial Círculo Literário Piauiense – 40 Anos de Resistância, 2007. E, na área da ficção, o romance Fronteiras da Liberdade, 1981, obra muito bem elaborada, cuja leitura acende viva emoção.  Na sua lírica amorosa e simples destacam-se a terra, as lendas, os costumes e vivências com «surpresas e encantos, denúncias e sustos», como diria Caio Porfírio Carneiro.  Herculano Moraes difere do habitual, seus textos expressam mensagens com clareza e objetividade, e vêm sempre temperados com tintas que denotam o artista da palavra.

                        

                          Tatuagem

 

Ficou em mim este cheiro de tempo

de esterco de mugido de fumaça

 

Ficou em mim este jeito acanhado

 

Ficou em mim esta saudade

esta calmaria

 

Ficou em mim esa vontade

de expulsar a aparente

calma

 

Ficou em mim este cheiro de lembrança

- árvores  frutos bois moendamiga

 

 

 moendo-me a fadiga.

 

        Auto-retrato

 

Ninguém arrancou de mim

Este desprezo

Ninguém plantou em mim

Uma esperança

 

Ninguém quis ver em mim

Este prodígio

De conviver com a morte

 

Filho do gozo agrário

Gerei da terra

E tenho cheiro

De esterco e de mugido

 

Filho do trovão

Nasci da exegese indecifrável

Do anti-amor

 

Rompi víscera

Comi placentas

E retornei

Num mar de amargo

Sangue

 

Cheguei à lua opaca

No mistério da expulsão

E ingressei no mundo

Sem pessoal decisão

 

Os lábios acoplados

No botão rubro de leite

As mãos agarradas

Nas bordas do desamor

 

Várias luas naveguei

De tempo escasso

Vários mundos percorri

Sem pernas braços

 

Várias bocas procurei

- náufrago insensato

Várias mãos busquei

Como um perdido

 

Ninguém quis ver em mim

Este prodígio

De conviver com

A morte.

                      

Osvaldo Lemos (1945), nascido em Piracuruca, estuda em escolas públicas, depois na antiga Escola Industrial de Teresina, (atual CEFET) e, por esforço próprio, torna-se jornalista de profissão e historiador por gosto e paixão pela pesquisa. Conseguiu publicar alguns trabalhos, todos de ótima qualidade, mais tarde. Obra: Petrônio Portela, Depoimentos à História Política Brasileira, em 1993, Félix Pacheco – Vida e Obra e Aspectos  da Força  Polícia Piauiense no Governo Zacarias de Gois, Teresina, 1999.  Na diretoria do CLIP era o Vice-Presidente.

 

Esdras do Nascimento (1934) nasceu em Teresina - PI. Contista e romancista, ensaísta, jornalista, funcionário do Banco do Brasil. Graduou-se em Letras, Filosofia e Jornalismo. Passou a infância e adolescência entre Teresina e  Fortaleza. Fixou-se finalmente, no Rio de Janeiro. Mas trabalhou em várias capitais do Brasil e morou nos Estados Unidos.  Seus primeiros livros possuem marcas da linguagem e dos costumes do Nordeste: Vinte Histórias Curtas, 1960, obra coletiva, e o romance Solidão em Família, 1963, por exemplo. Depois publica Convite ao Desespero, 1964;  Tiro na Memória, 1965; Engenharia do Casamento, 1968; Paixão bem Temperada, 1970; Quatro num Fusca, 1974; Variante Gotemburgo, 1978; O Ventre da Baleia, 1980; Aventuras do Capitão Simplício, 1982;  Jogos da Madrugada, 1983, entre outros. Sua obra traz a marca do seu tempo, a crítica aos falsos valores da burguesia e da classe média urbana, na grandes cidades.  Participou de Piauí: Terra, História e Literatura, Editora do Escritor, São Paulo, 1980, antologia organizada por Francisco Miguel de Moura. Eis o início de Paixão bem Temperada:

     

Meia-noite e meia.

Roberto de Aquino alisa os cabelos arrepiados dos braços, puxa o lençol para o peito, vira-se de bruços, estremece com o ventinho frio que entra pela fresta da janela. 

Há quase dois anos em Porto Alegre, ainda não se acostumou, não sabe como essa gente pode gostar do inverno. Todas as noites, o mesmo drama. Detesta cobertores pesados em cima do corpo, enrola-se de má vontade no edredom, mexe-se de um lado para outro, cochila, joga dormindo o lençol no chão, acorda sobressaltado daí a pouco, com um frio terrível nas costas.

Começa a berber vinho na hora do jantar. Vai depois de bar em bar. Duas,  três garrafas.Aguenta bem a primeira. Na segunda, os ouvidos zunem,pisca-piscam os letreiros da Rua da Praia. Despois da terceira, mal sentindo a calçada embaixo dos pés, volta à pensão, entra vestido em casa, às vezes nem ao menos tira os sapatos. Pela manhã, sente dores no corpo inteiro, jura que nunca mais dormirá vestido.

Preciso arranjar um aquecedor elétrico. Não é tão caro assim, eu já podia ter comprado um, mas fui adiando, adiando... No fim do mês...

- Vais dormir aqui? – pergunta Gildinha.

- Nem sei. Estou com uma preguiça...

- Se quiseres, podes ficar. Quando está frio como hoje os fregueses somem, dona Zilma não se importa se tu ficares.

- Estou doido por um cafezinho.

- Cafezinho não tem, mas chá eu arranjo. – Entreabre a porta do quarto: - Mariozinho!

A voz em falsete responde:

- Quê que tu queres, benzinho?

- Chá. Podes fazer pra nós?

A mulher tranca a porta, volta aos lençois, abraça Roberto de Aquino:

- Estás gelado, meu amor. Nunca vi ninguém sentir tanto frio...

Ele bota o cinzeiro em cima do peito, acende um cigarro, entrega-o à mulher, apanha outro. “Nunca vi ninguém sentir tanato frio...” Curioso. Quando vim para Porto Alegre, eu  não era friorento.Passei bem o primeiro inverno, ria muito das luvas, cachecois e mantas do pessoal lá da Companhia, só de manhã sofria um pouco, no começo do expediente, quando as pontas dos dedos batiam no teclado gelado da máquina de escrever. Mas logo depois eu me sentia bem, trabalhava com disposição, chegava a tirar o paletó. O pessoal dizia que era fita, troçava. Mas de fato eu não sentia frio. E agora...

Batem na porta, Gildinha avisa:

- Pode entrar. Está só encostada.

Calças claras coladas ao corpo, suéter escura de gola alta, lenço verde-garrafa no pescoço, Mariozinho põe o bule na mesa de cabeceira, desvira as xícaras, serve o açúcar, com trejeitos, e desfaz o embrulhinho.

- O que é isso?

- Biscoito. Chá com biscoito. Legalzinho, hein! E depois... Olhem lá hein! Quero um amor bem caprichadinho, em minha homenagem. Tá?

Roberto de Aquino não tolerava veado, fecha a cara, Mariozinho vai embora.

 

Castro Aguiar (1940) é o nome literário de Joaquim Antônio Castro Aguiar, nascido em Teresina. Embora sócio, pouco participou das ações do CLIP. Mas os clipianos tomaram conhecimento de sua obra e discutiram-na. Viveram o mesmo tempo, os mesmos problemas sociais e as mesmas ânsias estéticas. Livros: Marcos da Angústia de Marcos, 1960, Adolescentes de Rua, 1962, e Caminho de Perdição, 1965. Tem inédito Poemas do meu Silêncio. Inteligência brilhante, formou-se em Direito, fez mestrado e doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Depois foi assistente da Procuradoria Judiciária do DER-PI, diretor-presidente e diretor comercial da Companhia Telefônica de Teresina, professor na PUC-RJ, coordenador de cursos sobre administração municipal. É Juiz Federal no Rio e professor de Direito Administrativo. Tem publicado várias obras jurídicas. E ficou morando definitivamente no Rio de Janeiro. Fontes Ibiapina, já famoso e em atividade nos anos 1960, dá o tom de sua escrita, logo na estreia: “Focalizando frontalmente  o menino-problema, com senso de arguto observador e capacidade segura de criar e desenvolver casos, encarando com seriedade da motivação à objetividade, Castro Aguiar traz à luz um romance bem sentido, bem vivido e bem realizado. Moldado em temas por demais complexos, plasmado e desenvolvido em estilo polido, uniforme e firme, Adolescentes de Rua bem revela a capacidade intelectual de um ficcionista novo e que já nasceu maduro. Em Caminho de Perdição, descortina-se a mesma visão ficcional da sua obra de estreia, com os acréscimos da experiência:

                             

                              Capítulo 7

 

Era noite. Ia saindo, quando o Borba me atalhou com uma pergunta:

- Aonde vai?

- Andar.

- Por onde?

- Sem rumo.

- Posso acompanhar-te?

- Se quiser.

De mim mesmo, daria resposta negativa. Preferiria sair sozinho. Não que a presença do Borba me fosse incômoda. Em absoluto. Até gostava de sua companhia. Mas o silêncio talvez fosse o meu melhor sedativo. Ademais, Borba iria tentar afastar-me das recordações de Sandra e eu tinha medo de esquecê-la, de arrefecer o amor que lhe devotava, porque ainda não havia concebido a ideia de que ela não voltaria, nunca mais, a mim, que tanto a esperava.

Saímos, eu e o Borba. Sentamos num banco da praça Pedro II, os olhos espetados no voltear das moças. Borba falava:

- Todos nós já fomos vítimas, de certo modo, de uma decepção amorosa, uma certa frustração sentimental. Isso é comum, portanto. Aconteceu comigo e com você. Acontecerá com muitos outros também, porque os homens são os mesmos, onde quer que estejam. Não nego que é difícil, às vezes, superar essas crises, porque, quase sempre, elas nos tomam de surpresa. Mas, vamos ser francos, beber, por isso, só pode traduzir falta de personalidade, de espírito crítico, de autodomínio.

Aquelas palavras do Borba me açoitavam como chicote. Não me adiantariam conselhos. Estava farto de ouvi-los. Queria era beber. Beber muito. Isso, sim.

Súbito, as moças começaram a retirar-se, em grupos. A praça foi ficando vazia. Eram vinte e uma horas, na certeza. Porque as moças costumavam sair da praça exatamente às nove horas da noite.

- Vamos?

- Não.

- Que é que tu vais fazer aqui, sozinho?

- Nada, Borba. Não irei fazer nada. Mas quero ficar, ora bolas!

E, levantando-me com ódio:

- Deixa-me em paz, por favor. Irei  girar mundo. Não suporto a prisão daquelas quatro paredes do nosso quarto. Podes ir. Irei ao cabaré. Preciso abafar minha mágoa na cama de uma prostituta. Sei que tu tens razão, és meu amigo. Mas o meu desgosto embruteceu meus sentimentos. Estou mudado. Sou outro.

E, percebendo minha grosseria, amenizei:

- Perdoa-me, se fui áspero, rude. Estou nervoso. O ódio materializa os homens. Ultimamente estou ficando assim...

 

Magalhães da Costa (1937-2002), nome literário de José Magalhães da Costa, contista, crítico literário e poeta. Magistrado, chegou a Desembargador. Nascido em Piracuruca, formado em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Já em Fortaleza praticava a literatura de iniciante, chegando a ganhar concursos de contos de nível nacional. De volta à terra, organiza e edita o primeiro suplemento litérário do Piauí, no jornal “O Dia”. Já são excelentes seus contos publicados no Almanaque da Parnaíba, na decada de 1960, quando ganhou concursos promovidos por revistas do Sul. Só em 1970 estréia em livro. Casos Contados tem cheiro de terra e influência de Fontes Ibiapina. Em 1972, com No Mesmo Trilho, não obstante o nome,  já se mostra senhor do instrumento e da direção que tomara, tornando-se um dos nossos melhores contistas, na linha do realismo regionalista, em feição universalizante. Estilo coloquial, às vezes bem humorado, às vezes sério e contundente, a história escorre com naturalidade, graças a seu trabalho rigoroso de escolha e precisão no vocabulário e no entrecho. «Exemplar literatura, farta de significação humana», como frisou Assis Brasil, ao prefaciar a seleção de contos Casos Contados e Outros Contos, de l996.  Outras obras: Estação das Manobras, 1985, participando da antologia Poesia Teresinense hoje, 1988. Foi o primeiro presidente da União Brasileira de Escritores do Piauí (UBE-PI) .

                    

                   Ladrão de melancias

 

- Um dia eu pego o ladrão.

- Que ladrão, tio Pedro?

- O ladrão de melancias. Fiz uma roça. Enchi de sementes, nasceram bonito. Deu umas chuvinhas finas, aí completou. Enramou que uma beleza – um lastro parecia um lençol. Vingou, que ficou assim de melanciazinhas novas. Onde a gente pisava...

- E o ladrão comendo...

- Não deixa nem as bichinhas incharem direito. Se abanca. Come até o branco. Engole os caroços. Acaba, esconde as cascas. Mas um dia eu dou de mão nele.

- Como, tio Pedro?

- Pegando. Arranjo um aparelho de injeção, aplico uma boa dose de tártaro no fundo de cada vinga – em todas elas – que o cabra nem nota o furinho da agulha, pensá tá que foi picada de inseto – e é aí, e é aí.

- Aí, como, tio Pedro?

- Comeu, vomita até os bofes. Não quer mais. Enquanto se lembrar.

- E como o senhor vai saber?

- Como? Ora. Já dei fé que você é mesmo criança. A notícia logo se espalha. Fulano comeu frito e ofendeu. Frito não tem, com a carne do preço que está. Caboclo não come mais. Então, está pego. Vou lá, amarro o safado, ferro com um L na testa, peio, e toco ele pra rua. Entrego lá – ‘tá aqui, seu Delegado, o ladrão, faça dele o que quiser’ – e volto pra casa pelo mesmo caminho. Aí armo o tucum, me deito, e vou fumar o meu pé-duro bem sossegado, livre de praga de ladrão.

         

Geraldo Borges (1941) nasceu em Matões - MA. Talentoso contista e cronista, participou da antologia Piauí: Terra, História e Literatura, 1980. Na sua modéstia, reluta em reunir em livro os contos que publicou nos jornais e revistas, numa atitude que lembra Graciliano Ramos, a maioria repassados de ternura e compreensão da vida e da condição humana. Entretanto, em 1989 sai a plaqueta Tiro de Misericórdia, uma pequena mostra: quatro histórias. Em parceria com Manoel Domingos, publicou o estudo histórico-sociológico Seca  Seculorum, Flagelo e Mito na Economia Rural Piauiense, 1983. Crônicas saborosas de sua memória e da cidade Teresina estão em Província Submersa, Editora Caetés, Rio, 2011. Tem um romance inédito, Encruzilhada, num estilo simples e às vezes mordaz, de muita importância para o levantamento do clima psico-social dos anos 1964-1968 e dos anos seguintes enquanto se prolongou a Ditadura Militar, justamente os do nascimento, paixão e morte do CLIP morte aparente, pois seus reflexos continuaram.

Está aí, na íntegra, A dura realidade da  lenda, conto que o autor publicou na revista Cirandinha 9 –Nov. 1983:

 

“Façamos de conta que eu e você pertencemos à família do mártir  Gregório.Verdade! Nada mais simples. Não sei o seu sobrenome. Mas pelo fato d’ele ter sido batizado pela Igreja  Católica Romana, presumo o nosso grau de parentesco. A única diferença agora é que ele é santo.E eu não. Nem você também:

De qualquer maneira estamos de parabéns! Existe um santo em nossa família. Na família piauiense.Aleluia. E este estado ao deus-dará precisa de muitos milagres. Pena que sempre seja um santo de casa...

Ontem, dia de finados, sonhei com o motorista Gregório e a criança que ele matou. Por razão que desconheço, o menino atropelado era filho dele. E ambos estavam lendo uma carta endereçada do inferno pelo tenente coronel Florentino Cardoso, o responsável pela morte do mártir Gregório, pai da criança vitimada no acidente.

Eis, mais ou menos, o conteúdo da carta:

- Por que não te meteram na cadeia, não te julgaram, Gregório?  pergunta um popular.

- Não sei. O tenente Florentino era muito poderoso. Não ouvia ninguém.

- E o governador, a polícia, o juiz, os deputados, o povo, por que não reagiram?

-  A época era de repressão. O povo tinha medo de falar. O governador estava preocupado com a inauguração do Palácio.

- E o teu patrão, o coronel Gervásio Costa?

- Patrão é patrão. E também coronel.

- Se eu tivesse vivo teria falado, chorado, implorado. Gregório não teve culpa. (Filho de Florentino).

- Quer dizer, então, meu filho, que você teria me perdoado?

Sim, São Gregório. O senhor é um santo. O povo sabe disso.

- Ele é um assassino. Matou meu filho. Deveria morrer mil vezes...

- O que é isto, coronel?!

- Respeite. Eu sou teu pai.

- Eu não sou mais seu filho.

- Conversa, menino. Agora você está ao lado deles. Se não tivesse morrido tão cedo, iria entender mais tarde.

- O coronel cometeu um grande erro, um desrespeito ao povo.

- Povo, coisa nenhuma, seu moleque! Era um problema meu. Resolvi e pronto.

- Vamos parar de discutir. Fechem o pano. Eu vou lavar as mãos, disse o governador.

O sonho quase vira pesadelo.

Nisso me lembrei do fato real. Teresina, 1927. Outubro. Margem do rio Poty. O quadro era terrificante.

“Água, água, por amor de Deus. Minha garganta está em brasa.”

“Nada disso. Que este miserável torre até morrer.”

“Água, água, por amor de Deus...”

Sol e suor. O corpo do mártir Gregório amarrado num tronco, como escravo, torrando debaixo do céu. O povo perplexo olhando, parado, inerme, sem nada fazer... A notícia correndo a cidade inteira. O rio Poty fluindo. A sede. A família. Os parentes. Absurdo!

Já no cemitério São José. A lápide da sepultura vive sempre cheia de garrafas d’água e velas acesas, colocadas ali, por devotos fieis. Pagadores de promessa. Ninguém sabe. Mas sabe lá quantas doenças, mazelas, desmantelos foram aliviados por este santo. Ninguém sabe. O povo é quem sabe. Agora temos um santo na família. Na certa vai para o roteiro turístico da cidade.

Entre as homenagens que São Gregório já recebeu, até agora, exceto a devoção pura e simples do povo, temos uma capela edificada pelo município no local do crime, onde Gregório morreu de sede.  E um boteco defronte à capela. Reza e cachaça: dois fortes espíritos.

Mas retornemos ao sonho, porque é dura a realidade... O melhor mesmo é saber que Florentino Cardoso está no inferno, sofrendo de acordo com o catecismo. E o mártir Gregório e a criança vivem felizes no céu, interferindo pelos deserdados, aqui em baixo, neste vale de lágrimas. Quem sabe um dia não nos ajudará nestes momentos de crise cada vez maior...

O pior é que, além, mais tarde, teremos de dar conta de nossa omissão. Quando nos perguntarem:

- Por que vocês, que são tantos, deixaram matar o homem?

Talvez em coro, dentro da capela, ou na porta do boteco, responderão:

- Seremos, por acaso, a guarda de nossos irmãos?!...

                                                             

Gregório de Moraes (1938) nasceu em Teresina, PI. Jornalista, contista, cronista, poeta e romancista. Formado em Letras pela Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro. Estreou na poesia, com Os Índios, os Índios, 1968, no Rio, onde morava. Em 1970, ainda no Rio, publica Auroras Perdidas. É de 1975  Praialuz (poemas) e no mesmo ano lança Sol dos Aflitos, contos, onde se firmaria, passando para a experimentação no romance, com Cão na Noite Morta, 1980.  Enquanto no Rio, era ponte literária para os de sua geração, na província,  com  notícias e livros atualizadores que enviava  ou trazia. Sua poesia é ligada à terra e, no fundo, romântica. Na prosa, entrega-se à corrente contemporânea da busca do melhor e mais atualizado discurso literário, aprofundando-se nos desvios humanos, pela negação, na busca sempre de sua positividade.  Aqui, o final do conto  Ponta de faca

 

‘Acudam, que seu Belarmino vai matá o Vicente’

Saltou o batente. A explosão. Dava pra ouvir o mato se torcendo com a correria dos porcos, dos fundos da casa. O clarão. Os olhos de Belarmino cheios dos olhos da moça. O cheiro de pólvora. E aqueles braços, feito guindastes, sujigando o homem deitado no chão. Cheiro de chão. Cachaça e pólvora. “Segura o homem”.  Bilau de novo. Não chegara a atirar no rapaz. Do batente, fora cair no meio da caporreira. E o tiro acidental. Só o susto. E o Vicente no terreiro. Agora do lado de cá. Nada de correr. “Quem corre uma vez, vai correr sempre”. Nem pelo bem de sua mãe foi pra casa. E era o que tinha pedido o tio. E todo mundo mais. Quando passasse a cachaça, Belarmino não ia fazer nada. Falavam.  E não saiu. Plantado no meio do terreiro. Árvore solitaria na tempestade do mundo. Linheira. Onde os relâmpagos alumiam, mas o corisco não toca. Árvore mediana, enraizada no chão bruto, frutificando a alegria da mocidade. As duas coisas juntas. O espírito teimoso e a coragem que se aninha nos carcarás da terra estão, também, no espaço das mãos do homem. “Levem o homem”. As vozes atraindo para si os homens aqui de fora. A xingação solta. Braba. Os primeiros choros. O caçulinha acaba acordando. E o resto foi atrás.  Uns três. Além da tosse de outro. Catarrin acalmando as mulheres:”Né nada não, dona Nitinha. Já passou. Calma, povo”. Outra voz: “Passa querosene no moleira dele. No pé do ouvido”. O furdunço. A mulher balançando no quarto a rede mijada do caçulinha. As rodas formadas. Cada um na sua versão. Cada qual mais verdadeira. Catarrin correndo, ajudando, pela sala. Pisa o pé do Joca Tapuia. Palavrão pra valer.”Disculpe, seu Tapuia”. “Diabo”. Pensa o negrão. “Depois que inventaram essa tal de disculpa, a gente num briga mais”.

Tudo serenado. Sentado em cima dos cocos de babçu, que a mulher estaria quebrando no dia seguinte, Belarmino entregara os pontos. Mansinho. Murcho. Coçando a cabeça. Os olhos assuntando as coisas. Agitada só a fungação. Mesmo depois do café, quase à força.

E dormiram no ponto outra vez.

Dependurado num prego, ali quase pertinho dele, o cacete de goiabeira. Rajado. Não era dos que usava no Mearim. Mas tinha sido também sapecado no fogo. Pra retirar a casca. E não dar bicho. Até o buraco tinha feito. Um pedaço de vaqueta, amarrado pelas pontas, fazia assim de cordão de segurar. E fez o salto. Parecia que a mão ia abarcar a estaca. E segurou. Por cima dos fogoes. Riscou o chão no rumo da frente. Ganhouo terreiro. Ninguém conseguiu mais encostar. Belarmino e sua arma de fé. Medida. De cotovelo a cotovelo. E quando a cacetada ia descendo pra cabeça do Vicente, parece que o homem estava abrindo o mundo. As lamparinas do lado de fora. Um monte. Em cada mão, uma alumiando a briga. E a sombra dos meninos, acordados, entre as pernas dos adultos.“Vai morrê. Vou ti matá, zambêta”. Vicente horizontal. Esperem: perpendicular. Não, de banda. Rolando. Pulando feito sapo. O pau comendo. Gato maracajá. Não, é o Vicente. Rolando, saltando.  Belarmino na xingação, baixando a ripa. O ódio cresceu em suas mãos. Prolongou-se na arma. Grita rouco. Ninguém compreende nada. Ou apenas uma coisa. Vicente vai morrer. Se cansar, vai morrer. Não tem Cristo que dê jeito. Uma cacetada destas, se acertar, não levanta nem  Zebu. É tirikeda. Parecia uma cobra esticada. Procurou-lhe o queixo. Veio vindo. Outra explosão. Vicente no fundo da piscina, com a mão na loca, pegando peixe pelas guelras. Piscina natural no leito do riacho da Vermelha, em frente à casa do engenho. As paredes empedradas. Parecia uma raquete. Muito cheia. Água pelas beiras. Vicente mergulando o corpo. As mãos sobre as locas, catando peixe. Um peixe na mão. A embira da calça vem acompanhando. Está rasgada e rota. Outro mergulho. O cofo engordando com os peixes para o jantar. Tibungo! Tibungo de novo. Lá pro meião. A claridade explodindo contra os olhos. A luz do sol, fora da piscina.  Não. A luz da lamparina alumiando a morte caminhando para seu rosto. Outro mergulho. Na terra. Passou raspando. E agora? A mão na arma. Sua faca. Brilhou contra a luz, fora da bainha. Gingou. Rolou como tora  de buriti, qundo a gente desarruma um monte. E pisa em cima.  Os dentes e as gengivas de Vicente pareciam rir no brilho da faca. Sua mão procurou a loca. Não, o rumo. Trocou de posição. Fez que ia dar com esta e deu com a outra. E abriu um buraco perto do ombro de Belarmino. A fúria. O  valente do Mearim, sujo de sangue. A luz da lamparino se escondendo nos gravetos, no chão. Ela descobriu. Um pássaro de morte. Feita por algum ferreiro das bandas do Juazeiro do Ceará. Deve ter sentido o cheiro da carne, como por detrás, a força de um rio empurando a mão de Vicente. E penetrou. Entre as costelas, na altura do peito, atravessou um mundo de coisas e voltou trazendo, do outro lado, cheiro de terra. Uns grãozinhos de nada, misturados com sangue. Como a voz de Belarmino, miudinha,assoprada, como a penúltima lamparina, do canto da casa, também assoprada pela sua esposa, procurando avivar a chama. Uma voizinha de nada:“Vicentemematô”.

As luzes arrastaram para dentro, sem o barulho dos tambores, o corpo do quitandeiro. E as sombras atraíram para si as passadas de Vicente.

 

          Alexandre Carvalho (1943) nasceu em Teresina, onde reside. Jornalista, professor, radialista, prosador e poeta. É um dos colaboradores da revista Cirandinha, anos 1970. Estudou  no Ginásio Leão XIII e no Liceu Piauiense, é formado em Língua Portuguesa pela UESPI e Letras (Espanhol) pelo INITINS.  Trabalhou na Rádio Clube, na Pioneira, na Difusora, além da FM “O Dia”, nesta Capital,  e na TV Cocais,  Maranhão, passando plos jornais  Folha Caxiense, Maranhão, e “O Dia” , no Piauí. Profesor da Escola Técnica Caxiense, em Caxias – MA,  e no SENAC, em Teresina. Nos anos 1960, ainda estudante, toma parte ativa nas lutas da classe. Depois engaja-se nos movimentos musicais, participando da formação do conjunto  Os Brasinhas, e depois fundando outro, Os Metralhas os dois primeiros conjuntos musicais criados no Piauí.. No seu livro O Sonho não Acabou – a história do maior fenômeno musical da Jovem Guarda no Piauí, Teresina, 2002, o autor mostra o clima de insatisfação e de revolução  da época: “Início da década de 60, a censura havia castrado todo o poder criativo da música popular brasileira. A MPB se resumia em poucas composições de forró ingênuo e alguns sambas elaborados seriam sumariamente amputados. Apesar de tudo já havia João Gilberto, com suas inovações no ‘samba quadrado’, que deu origem ao ritmo gostoso da Bossa Nova. Com ele convivia um círculo fechado da classe média do Rio de Janeiro (...) Na Bahia, ensaiavam-se os primeiros passos do Tropicalismo, mas este movimento não havia tomado conta do Brasil. No mundo lá fora ainda se tocavam as baladas de Elvis, e estourava aos quatro cantos da Terra o som dos Beatles e Rolling Stones. Foi por aí que tudo começou”.

          A música letrificada é irmã da poesia. A convivência de Alexandre Cavalho com a música cedo o levou para a construção de poemas, que  reuniu no livro Meus Poemas Teus, 1990 e guarda outro inédito denominado Orquideas e Cogumelos. Em prosa, publicou também o romance Fogoió da Água Doce, 2005.        

                                       

                                 O rio e eu     

 

Deslizante rio de minha vida

Vida convulsiva de meu rio

Reboliço intenso de minhas dúvidas

Borbulhante inconsciência do hoje

Devastadora torrente do meu ontem

 

Tu vives

a mergulhar silente na insensatez dos mares

Eu vivo

a soluçar desgosto no repassar dos   males

 

Na calma aparente de teus braços

escondem  mistérios de vida e morte

pois corres aos povos entre laços

que  das águas  dependem a sorte

 

Caminheiro de água clara e poética

Manancial lírico do “ amarantino”

Inebriante estrada em sol a pino

entre palmeiras de pureza estética

 

Teu mundo

deslizante fanal de longos idos

no murmurar solene dos gemidos

Meu mundo

um viajor pensante e sem destino

a procura talvez de um novo hino

 

Acaricia com frescor minha alma ardente

no seguimento de teu curso de paixões

Aplaca a fúria que letargia a mente

pra não sair em chamas a queimar padrões

 

Tu que levas ligeiro o passado pelos anos

Embarca meus idos no dorso do tempo

Enterra meu ontem no eterno dos oceanos

 

Humberto Guimarães (1945), nasceu em Ribeiro Gonçalves – PI.        Médico, cientista, conferencista e professor. Romancista, crítico literário e poeta. Membro da Academia Piauiense de Letras. Obras: Essências em Conflito,  1981;  Nas Pegadas do Rio, romance,  1983; Caso  Singular e Juvenílias, 1984;  A Voluntária da Pátria, 1992, romance; O Mundo é de Valdevino Sandeu, romance, 1994;  Juvenílias, poesias, 1984; Abyssus, ensaios, 1999; Um Certo Érico Veríssimo (séries I e II), crítica, 1990 e 1992; Para uma Psiquiatria Piauiense – Pesquisa Histórica, 1994, entre outras.  Foi incluído na coletânea Crônicas de Sempre, 1995, organizadas por Adrião Neto. Uma página de A Voluntária da Patria é suficiente para sentir seu estilo moderno sem desprezar a tradição.

 

- Duma coisa, filha, pode ficar certa: Feitosa não leva desaforo pra casa não. Se esses campos falassem tinham muita coisa pra contar de sangueira e morte de cabra ruím que se meteu a querer pisar  toitiço dum Feitosa.

- Eu sei, pai. Mas os tempos são outros, a gente tem que acalmar; e mesmo nós não somos ricos nem temos patente como os de antigamente. Esses campos todos que foram dos Feitosa já têm outros donos... Nós aqui em Brejo Seco – o senhor viúvo já idoso, sem ter dinheiro pra comprar negro, vive capinando a rocinha, cuidando desses bodes, umas duas garrotinhas... A gente tem que sair desse buraco, pai.  Eu não suporto mais isso aqui! A gente não pode ficar amarrada num passado que nem conhece direito. Eu quero acompanhar os tempos, pai.

- Deixa de conversa besta, menina. Tu saindo aí mesmo é que eu vou ficar no ora-e-veja. Vai botar a janta e num fala mais nisso não, tá ouvindo!?

Jovita engoliu o protesto, mas este ficou-lhe atravessado na garganta não lhe permitindo engolir a comida, tão entalada ficara. Ela era assim: quando queria uma coisa ficava tiririca se a contrariavam. Sabia que era próprio da raça – os Feitosa sempre foram de pavio curto, orgulhosos. Eram tão cheios de si que nem permitiam que os filhos casassem fora da família.

O velho também sabia do gênio da filha que tinha; a menina não puxara nada à finada, que, embora prima do marido, tinha o temperamento pacífico dos Alves – a quem perdera fazia quatro anos; a pobrezinha fora levada pelo cólera-morbo. Tinha certeza que Jovita não desistiria daquela idéia de ir embora pro Piauí. A coitada até certo ponto tinha razão: vivia ali sem mãe, metida com aqueles cabras da peste, pastora de bodes acompanhada só de seus dois irmaozinhos, vendo um dia atrás do outro sem novidade. Era danado mesmo...  Na vila de Jaicós o irmão Rogério não tinha fortuna mas, pelo menos, era professor de música, tinha bom conceito, poderia encaminhar a menina nessa ilustração e até mesmo arrumar um bom casamento com gente aparentada... Ali em Brejo Seco o melhor que poderia conseguir era algum vaqueiro esfomeado que de seu nem um pilungo possuía.

Pedro Feitosa comeu o jantar de “marizabel” com carne assada – a famosa carne-do-ceará que se comprava aos mercados na quitanda – fazendo essas considerações lá com seus botões. Nada falará à filhaque, arreliada, estava lá pra cozinha.

Passou a noite.

Dia seguinte cedinho, Pedro Feitosa, metido nas perneiras velhas e no jibão remendado, tomava a coalhada que Jovita trouxera na panela de barro. A danada nem lhe tomara a bênção. Na certa tava enfezada lá na beira do fogão, roendo as unhas. Chamou a filha e, como se nada tivesse conversado a respeito do assunto, foi-lhe dizendo, quando ela se aproximava com a cara emproada:

- Pois é, menina. Precisamos conversar. Senta aí nessa ponta de banco – falava com a cabeça baixa, como se estivesse conversando com o prato. Tô com o cavalo selado, vou dar mais uma volta no campo pra ver se acho a garrota Estrela; se não achar, tenho quase certeza  que o patife do Genaro roubou a rez. Aí ele vai se ter comigo; vai saber o que tirar gosto com um Feitosa. Já tenho o sangue mais assentado do que os primeiros, mas sei defender o que é meu, tá ouvindo? – passa a mão na boca, fica de pé e olha para a filha: - Eu tive matutando esta noite... Na semana que vem ocompadre Joaquim sai com uma tropa carregada de couro pra negociar nos Jaicós. Se for do teu agrado, tô pensando em te mandar pra casa do teu tio Rogério. Tu parece que leva gosto por essas finuras da vila. Como é: quer ir?

 

   Francisco Venceslau dos Santos (1940) nasceu no Diogo, data Jenipaeiro, hoje Francisco Santos-PI. Mora no Rio, onde é professor universitário aposentado (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e Assessor e Consultor de várias entidades, entre as quais a própria UERJ, a FAPESP e o MINC.  Foi editor na juventude e voltou à atividade, depois de aposentado, com a Editora Caetés, onde edita revistas e livros. Poeta e crítico literário de alta potência. Obras: Dessertões, 1977; Autoritarismo & Solidão, 1990;  Quarup: Um Romance de Tese, 1999,   entre muitas outras. Editor  da revista Prisma, onde aparecem várias colaboraões suas.  Grande poeta bisexto.  A palavra é sua substância, desde que fugiu da terra de origem. Seus versos vêm da inteligência, com sensibiliade e suor. É só conferir.

 

                          As águas e os rios

 

na margens por onde anda não carrega com ele

braços de parnaybas, não transporta riachos e rios

 

é viajante entre táxis, ruas e shoppings

- ryos sem margens literárias de areia e sonho

 

navega sobre estes rios que só possuem

aspas de águas, vírgulas de mágoas entre

 

buritizeiros, sobre os brejos sem nome

onde os riachos começam sobre todas

 

as águas, sobre um rio perdido onde

os anuns, jacus, jaçanãs bebem a água da

 

cacimba, navega no vago mar

donde as canoas silenciosas e negras

 

se partem quando é na areia manhã,

a cobra-grande e o peixe-boi fugiram.

 

entre porteiras e cancelas além dos riachos de tv

tange a boiada de signos no areal da city

 

neste rio não há diários de náufragos,

roteiros de barcos, bússulas e astrolábios.

 

José Ribeiro e Silva (1934), nasceu  em Cascavel – CE, reside no Piauí há quase meio século. Formado em Direito pela Universidade Federal do Piaui. Exerceu cargos na administração pública do estado. Poeta, vem do Movimento de Renovação Cultural, do Prof. Santana, embora seja avesso à  participação da vida intelectual. Não conhecido como merece. Obras: Colheita Mística, 1970;  Garimpando Sois, 1975; Um Grito na Escuridão, 1977; Meus Poemas Prediletos,  1980;  Lanças e Punhais,1988, entre outros. Para Herculano Moraes, “a poesia de José Ribeiro e Silva, em determinados momentos, conduz a Kafka, T. S. Eliot e Fernando Pessoa”.

                                    

                                     Espirais de fumaça

 

Madrugada etérea. Frio n’alma. Visões.

Ruas onde estrelas ávidas por fulgir

- Com seus olhos de fogo –

Esculpiram no ébano do asfalto

Silhuetas nuas de instantes furtivos

Como os das vagas ilusões roubadas de mim.

 

Risos no salão grená. Espirais de fumaça

A taça e o vinho em batom agfogados

- Na loucura dos beijos –

E os amantes da noite bacante logo se evaporam

Como ébrios fantasmas

Na passarela de sombras das auroras perdidas.

 

Altevir Alencar (1934) nasceu em Alto Longá, PI. Advogado, cronista e poeta. Membro da Academia Piauiense de Letras. Como poeta, bastariam estes versos, para ter um lugar na história:

          

            Meu velho Parnaíba, as tuas águas

             São lágrimas de Deus correndo soltas;

             Tu tens, amigo, em tuas ondas revoltas

            A tristeza sem fim das minhas mágoas!...

 

             Meu velho Parnaíba, que ironia:

             Volto a te ver depois de tantos anos,

             Envelhecido pelos desenganos,

             Que quando te deixei não possuía!

 

              Pela última vez digo-te adeus...

              E partirei, porque no meu castigo

              Vive sempre a jorrar, meu velho amigo,

              Um mar de prantos, pelos olhos meus.

 

Entretanto, Altevir Alencar andou meio mundo. Prefeito de uma  cidade de  Mato  Grosso do Sul, foi eleito membro da Academia de Letras daquele estado e voltou para a terra natal, contrariando o que seu poema diz. Publicou vários livros:  Eterno Crepúsculo, 1961;  Poemas da Solidão, 1967; Poemas para Quem Sabe Amar, 1968; Dentro de Mim, 1970 e muitos outros. Ótimo sonetista. Portanto, veja-se este, em alexandrinos:

 

               Último abraço

                   

Ainda sinto o teu corpo do meu corpo ao lado.

Nos lábios a volúpia ardente do teu beijo.

No quarto em solidão desnuda ainda te vejo

A olhar-me com o olhar  nervoso e apaixonado.

 

Partiste, e ainda sinto a ânsia e o latejo

Daquele último abraço inquieto e demorado.

Ficam pelo ar parado o intenso rumorejo

E a imagem pura e pecadora do pecado.

 

Não posso mais viver sem ter-te nos meus braços.

Quando longe tu estás minh’alma se alvoroça

Julgando ouvir no quarto o ruído dos teus passos.

 

Pelo ar ficam também  as coisas que tu dizes.

E eu tenho a impressão  que a minha carne moça

Na tua carne moça até criou raízes.

                                

Antônio Carlos Fernandes da Silva (1945) nasceu em São João dos Patos – MA, onde fez estudos primários, continuando em Floriano-PI e depois em Teresina, até graduar-se em Literatura, na Universidade Federal do Piauí. Funcionário do Banco do Brasil, trabalhou vários anos em Teresina, até aposentar-se. Mora em São Luís – MA, onde é professor da rede estadual de ensino. Obras: Pétalas Negras, 1967:  Noite Eterna, 1968 (com apressivo apoio do CLIP – Círculo Literário Piauiense);  O Currupião Esperto, 2005, e Vira, Vira,Vira-lata, 2008, os dois últimos de prosa, na área infanto-juvenil.

                               

                        O apito da usina

 

O apito longo da usina de arroz

rasga, forte, a manhão rescém-nascida,

estremecendo a rede remendada

do empregado surrado pela vida.

 

Correm dos bairros homens bem dispostos

e começam, humildes, outra vez,

luta perene pelo fim do mês.

 

O fim-do-mês custoso só lhes dura

duas semanas... somente duas semanas

de festa, sem banquete, sem fartura.

 

Meio-dia, as crianças na calçada,

nadando em pranto seus ingênuos ais,

já famintas aguardam pelo almoço,

mas o pai, já cansado, não lhes traz.

 

O olhar penalizado da esposa

e as lágrimas das filhas pequeninas

pesam-lhe mais que os fardos de arroz,

cortam-lhe mais que o apito da usina.

 

Melquisedeque Viana (1941), nascido em Vargem Grande – MA, reside em Teresina há muitos anos. Poeta, cordelista, contista e ensaísta. Formação escolar toda em Teresina, do primário ao superior. Formado em Direito e em Contabilidade, professor universitário. Foi bancário (Banco do Brasil), depois Fiscal de Rendas do Esado e Procurador do INSS. Membro do Conselho Estadual de Cultura e da Academia de Letras do Vale do Longá.  Obras: Avante Timonenses, hexasílabos, 1982; Vozes do Eu, sonetos, 1989; Raízes do Passado, sonetos, 1991; Cordéis de Prata, hexassílabos, 1990; Simbiose de Ilusões, poemas livres, 1998; Refúgio das Sombras, poemas livres, 1998; As Reverências do Tempo, poemas livres, 2000; Espelhos do Ocaso, poemas livres, 2000; e Contos e Recontos, 1992, entre outras de caráter biográfico, filosófico e também didáticos. O poema  Soneto, sino e sinuca  é representativo de sua poesia renovada, com raízes no cordel:                     

 

Soneto,sino e sinuca

Só usa quem sabe usar,

o sino toca quem sabe 

na hora de badalar,

sinuca joga quem pode

na caçapa encaçapar,

pois é preciso, com arte,

o taco saber tacar.

 

O soneto é do poeta

talvez o mor instrumento  

de expressar com grande apuro

as vozes do pensamento,

buscando sua mensagem  

até no sopro do vento,

mas pintando suas estrofes 

com as tintas do sentimento.

 

Rita de Cássia Amorim Andrade (1939), romancista, nasceu em Simplício Mendes-Pi, onde viveu a infância, vindo residir em Teresina na adolescência e depos mudando-se para o Rio. Mas voltou para o Piauí, onde continua escrevendo e publicando. Obras: Karen, Corpo e Alma, 2002; Clarissa, um Obscuro Amor, 2007. Anteriormente já havia escrito e publicado  um ensaio sobre O.G. Rego de Carvalho. Eis um trecho de sua ficção:

 

Já era noite e Henrique agustiado andava pelo apartamento. Sentia-se febril. A cabeça latejava. Bolhas de suor frio salpicavam pela testa e forçavam-no a limpá-las a cada instante. O lenço ensopado, amarrotado pela compressão dos dedos, já não lhe tinha a utilidade necessária. Pesava-lhe o tormento infligido vida a fora. Assim era o seu destino, o destino de todos os homens que ousassem quebrar as amarras da lei da vida e da lei de Deus.Estava intrigado de como Clarissa não o reconhecera. Teria mudado tanto, a ponto de não despertar qualquer suspeita? Era verdade que muitos anos haviam se passado. Refletiu na felicidade a acercar-lhe e, ironicamente, o abismo que a negaria. Via-se mergulhado no dilema da aproximação que lhe daria a oportunidade da conquista, concomitante, o perigo de ser identificado pelas características inerentes a si próprio.

Pensou em ligar para a mãe. Deteve-se por alguns instantes na dúvida se seria justo fazê-la compartilhar o pesar; tantas vezes ela lhe a esquecer o passado! Precisava meditar um pouco mais. Sentia-se constrangido a pedir ajuda àquela que, durante toda a vida, fora a companheira nas viscissitudes, a fonte de onde pôde sugar a força da sobrevivência entre as quatro paredes de uma minúscula cela superlotada. A tudo suportara em nome da mãe. Sobrevivera  graças a ela. Cada espancamento, cada trabalho forçado, cada dejeto a limpar, como a limpar a si próprio, como a arrancar da pele a mancha do pecado. Pensara estar limpo, purificado.  Sua mãe o dissera. Chorou na alma, em profundo silêncio.

Ao longo dos anos, sua meta era dar novo rumo à vida, mas era difícil saber aonde ir. Tentara refazer a vida ao lado de outra mulher, com um casamento que já nascia fracassado. Só lhe restava manter a esperança de melhores dias. A antiga paixão tão nefasta fora se diluindo, deixando um vago sentimento de culpa.

Contudo, quando observara Clarissa na sala de convenções de um hotel em Fortaleza, acompanhada de outros médicos, ela era para Henrique apenas uma aparição. Viera e se fora, sem contato, sem elo, uma sombra do passado a alertar-lhe da impossibilidade do esquecimento.Agora, estiveram frente a frente, olhando-se  nos olhos, interagindo-se de forma ainda bastante obscura, mas prenunciar um enlace de destinos..

Pôs-se a longas reflexões sobre os reveses da vida. E, assim como num pesadelo, dirigiu-se ao telefone. Os colegas já  haviam se  recolhido. A sala vazia aumentava-lhe a angústia. Ao ouvir a vozda mãe do outro lado da linha, arrependeu-se de ter que incomodá-la, mas era tarde demais, a doce e alegre voz lhe abençoava. Por um instante emudeceu-se e ela pôde perceber que algo de anormal estaria acontecendo:

- Filho, estava exatamente pensando em você – disse carinhosamente. – Mas..., você só costuma ligar nos finais de semana. Aconteceu alguma coisa?

- Você se lembra de Clarissa, mãe? Eu a encontrei, hoje – fez uma pausa e depois prosseguiu: - Fomos apresentados e ela não me reconheceu.

 

Pedro Celestino, nome literário de Pedro Celestino de Barros (1918), funcionário público federal e professor do ensino médio, cronista e contista, recebeu vários prêmios literários, publicou Sinais de Seca, 1964, tendo tido outras edições. Segundo Geraldo de Almeida Borges, “o livro de Pedro Celestino é um marco na literatura piauiense, a partir dele começa o conto urbano no Piauí”. Suas crônicas ficaram esparsas pelos jornais.  Participou da antologia Piauí: Terra, História e Literatura, Editora do Escrior, São Paulo, 1980.

O texto a seguir é a crônica Dez reis, publicada na antologia Crônicas de Sempre, organizada por AdriãoNeto, publicada pela Fundação Cultural  Mons. Chaves, Teresina, 1995:

 

Quando Cassiano Ricardo, cabisbaixo, deixava a bodega do compadre e rumava para casa, ia pensando em como o compadre, sabendo de sua calamitosa situação financeira, não tinha coragem de dispensar aqueles miseráveis dez reis que restavam de um débito já há vários anos, se a situação dele era tão boa e seus negócios cada dia cresciam e se avolumavam. Sempre vinha com aquela lembrança que, de tão repetida, já causava náuseas ao bom e pacado Ricardo.

Mas, era Ricardo dara as costas, Quintiliano dizia à sua mulher:”Não adianta, o compadre há de me pagar. – Não posso dispensar. – Veja que o homem está alegre, conversando, cuspindo por entre os dentes, mas quando relembro a continha velha, ele se entristece, fica naquele estado de acabrunhamento. – Que homenzinho duro!...”

Merenciana ouvia aquilo calada. E, de si para si, dizia:

- Pobre compadre! Tantos filhos sem poder criá-los. – Mas que há de se fazer? Deus quer assim, assim seja.

Até que Cassiano não  era homem que não gostasse de trabalhar.Dava duro. De sol a sol.  A questão é que ele já tinha como paga aquela quantia insignificante. Pois quando compadre Quintiliano chegava ali, trazendo apenas ‘”a coragem e a cara”, quem o acolheu foi Cassiano. Hoje Quintiliano estava rico. Era dono de faixas de terreno, contendo imenso carnaubal e grande parte de coco babaçu, que por gosto se podia ver. Um verdadeiro colosso!- diziam os que por ali passavam.

Quintiliano era homem que possuía tinho para negócio. Sovina como ninguém. Apertando o cinto e usando de sua esperteza,conseguiu ganhar dinheiro. Fazer fortuna. De pé rapado que era passou a ricaço da  terra. Era senhor e proprietário, possuindo boa bodega. Era considerado no lugar.

Quando tinha qualquer serviço, como a pega de um boi brabo, derruba e queima de bom roçado, era Cassiano que tomava a frente. Contratava cabra e comandava serviço, quase nada recebendo, pois tinha muita consideração ao compadre.Podia mesmo dizer-se que Quintiliano estava rico graças a Cassiano. E, por isso, Cassiano Ricardo levava em capricho não pagar os dez reis de que era devedor. Assim, um dia,  astuciou o seguinte: fingir-se de doente e simular uma morte, pois só assim o compadre sovina dispensaria os miseráveis dez reis. Deixou o cabelo e a barba crescerem. Não se alimentava nem tomava banho. Com quinze dias, o astucioso Cassiano parecia um defunto. Fedendo a bodum,sentado à soleira da porta, cofiando a barba e com os olhos compridos enfiados ao longo da estrada, o simulacro da morte na cabeça, chamou a mulher e disse:

- Vá à casa do compadre e diga-lhe que eu estou muito doente e que, por isso, necessito do perdão daquela dívida. Sei que não escapo e quero morrer em paz.

Maricota, senhora do truque do marido,rumou à casa do compadre e transmitiu-lhe o recado tal e qual ouvira do marido.

Quintiliano, não conhecendo o bem que o dinheiro proporciona a quem não o possui, que é o de não ser obrigado a pensar nele, arregalou os olhos e suspirou dizendo:

- Qual, comadre, o compadre não morre não. E,se ele morrer,  não se preocupe. – Quando você puder, me paga!

Maricota insistiu, mas foi debalde. O compadre voltava com a mesma conversa.

Então, Cassiano mandou preparar o caixão e fez-se de morto.

A mulher, chorando, fungando e assoando o nariz, pôs o caixão no meio da casa, entre quatro velas de sebo, postas em boca de garrafa, e mandou avisar ao compadre que acabara de perde o marido. Que tivesse compaixão, que passava a ser órfã. Que dispensasse os dez reis...

Quase Quintiliano dava crença a tal recado. Mas, como era da família de São Tomé – só acreditava vendo -  pôs-se de sobreaviso para o desfecho do caso.

Naquela época, velavam-se os mortos nos templos. E, assim, o caixão do “ morto-vivo”  foi posto em a nave da igreja.

Altas horas, chegaram três indivíduos, que eram o terror daquelas paragens, dados os roubos e assassinatos que cometiam. Só seus nomes metiam medo. Tempestade, Trovoada e Relâmpago. Começaram a contar suas façanhas e dividir o produto do roubo, quando Trovoada disse: tenho um espadim de ouro que vale dinheiro e não se pode usar. Que se faz?

- Joga nágua.

- Não, disse Relâmpago. – Introduz nos quartos desse defunto!

Ao que o “morto-vivo” respondeu: Em meus quartos não!

E os ladrões dispararam, deixando todo o produto do roubo.

Cassiano levanta-se e começa a juntar a dinheirama, quando sente alguém bater-lhe às costas,dizendo:

- Compadre, paga meus dez reis!...

 

Francisco das Chagas Val (1943), autor que assina seus trabalhos apenas como Chagas Val, nasceu em Buriti dos Lopes – PI. Poeta, contista e professor. Mora em São Luís –MA, há muito tempo, onde tem publicado suas obras. Participou da antologia A Poesia Maranhense no Século XX, Editora Imago, RJ, 1994, organizada por Assis Brasil.  Seu nome e biografia está no livro Maranhão Balanço Cultural, 1974. Participou também das antologias Antroponáutica e  Hora de Guarnicê.  Publicou vários livros: Chão de Pedras, Chão Eterno, Mundo Menino, Teoria do Naufrágio e Anatomia do Escasso Cotidiano, este prefaciado pelo poeta Nauro Machado. Segundo Alberico Carneiro,  Chagas Val é um poeta de dicção personalíssima, no Maranhão e quiçá no Brasil, garimpando os verdes campos da memória onde pastam os cavalos alados do sonho”. Sabe-se que vive recluso, isolado da sociedade dos mortos, pois só os poetas são vivos espiritualmente.  De seu Anatomia..., Francisco Miguel de Moura, em artigo do jornal Diário do Povo, de 02.05.1999, apresenta o seguinte poema:

 

Brancura de água mal se nota que existe

que branco é o espaço escrito em nuvem

ou uma garça pintando imóvel a paisagem.

 

Um peixe em movimento é branco e limpo

e ele se banha ao luar de suas escamas

quando nada na brancura de uma lâmina

ou de uma fina linha em branco silêncio.

 

Heitor Castelo Branco Filho (1929), nasceu em Teresina. Biógrafo, cronista, contista e romancista. Engenheiro civil, foi diretor do Departamento Estadual de Estradas de Rodagem, superintentende da Estada de Ferro Central do Brasil e do Departamento Nacional de Portos e Vias Navegáveis. Publicou várias monografias técnicas, entre as quais registre-se a mais importante para o desenvolvimento do Piauí: Rio Parnaíba – Providências Suplementares à Construção do Porto de Luís Correira, 1989, Outas obras: Heitor Castelo Branco, Perfil de um  Republicano, 1990;  Paz e Guerra na Terra dos Carnaubais e Vis Comica, ambas de 1992;  e o romance O Marisqueiros do Amazonas, 1993, que é um bom romance de aventuras.  Membro da Academia Piauiense de Letras.

 

Murilo Moreira Veras (1933), nasceu em Parnaíba – PI. Funcionário do Banco do  Brasil cedido ao Banco Central. Advogado, professor, escritor, poeta, editor e produtor cultural. Estudos em São Luís - MA e depois em Recife-PE. Vivendo em Brasília, fundou o  Círculo Literário de Brasília embriaão do que viria a ser a Academia de Letras de Brasília, da qual foi presidente. Juntamente com sua esposa, poetisa Wilma Muniz Veras, fundou e editou a revista Lavra – Idéias & Letras, de grande circulação, inclusive internacional. Estreou em livro Ventos Vertentes, Brasília,  1980;  em seguida publicou Madrugada Lírica, 1989. Sobre este,  opinou A. Tito Filho: “Poesia de natureza cósmica, social, concebida de fortes ritmos e consagradora musicalidade, projetanto-se a poderosa inteligência de Murilo Moreira Veras, um piauiense de rica grandeza para, por intermédio do verso severo e brilhante, emocionar a gente”. Tem ainda participação na Coletânea do Círculo  Literário de Brasília, 1981; na Coletânea do GLAN, 1983; e na de Poetas Brasileiros de Hoje, 1984.  Referências a seu nome e suas obras são encontradas no Dicionário da Intelectualidade Maranhense, 1990; no Dicionário de Poetas Contemporâneos, 1989; e na Enciclopédia de Literatura  Brasileira, 1990.

 

Pedro Marques Barbosa (1930), nasceu em  Crateús – CE. Morou muito tempo  em Teresina, onde era carteiro e desempenhou as funções de  Gerente de Operações Postais. Esteve preso em 1964. Crítico literário, contista e cronista, publicava nos jornais. Tem um livro de contos. Participou de Piauí: Terra, História e Literatura, 1980, organizado e editado por Francisco Miguel de Moura. É redator-chefe do jornal Diário d’Equipe, em Cuiabá – MT, onde reside.

 

Nerina Castelo Branco (1935), professora universitária, poetisa, cronista e contista. Obras: Poesias Modernas I e II (1964 e 1965);  Cruviana, 1979 (contos); Outros Poemas, 1981; e  Alem do Silêncio, 1994. Foi a primeira mulher piauiense a escrever, em versos soltos, tecnicamente à moda moderna.

 

 

                            FALECIDOS

 

Olympio Costa (1925 – 2005), nome completo Olympio Vaz da Costa Neto,  nasceu em Teresina, Piauí,, e faleceu nesta Capital. Advogado rábula e jornalista. Vocacionado para a literatura, mas nenhum disposição para publicar seus trabalhos por conta própria.  Alma de poeta. Quem, vivendo em Teresina dos anos 1950/1960, não o viu andando pelas ruas, sempre de cabeça erguida, de terno e barba, fumando seu cachimbo, lembrando  uma daquelas personalidades clássicas da literatura, um Eça de Queiroz, um Ramalho Ortigão, ou um dos seus personagens?  O crítico literário e cronista Miguel de Matos fez esse depoimento a respeito de Olympio: “Conhece, como ninguém, por ser um viajor irrequieto e constante, quase todo o Brasil. Já distendeu os olhos sobre a vastidão das savanas gaúchas, aqui e alhures uma casa atestando a vivência do homem. Os cafezais paulistas não lhe são mistério, nem os pinheirais do Paraná. Da Amazônia misteriosa, em cujas florestas caminhou  a fio, trouxe nos seus embornais (...) versos que traduzem, com incrível força criadora,  os segredos eternos do Inferno Verde”.  Mas não só versos. Em 1967, quando Geraldo Borges e Francisco Miguel de Moura entrevistaram-no para o jornal O CLIP, ele mostrou-lhes vários poemas inéditos e um romance denominado Pigoitas Bravias, também inédito, que fora escrito numa dessas suas estadias fora do Piauí, com estilo ao jeito regional, muitas palavras e expressões interessantes, bem escrito e com boa dialogação (considerado como uma saga dos cassacos). Obra que nunca foi publicada, deve estar por aí, na mão de um editor ou com a própria família. Por essa participação, sempre foi considerado como afinado com o movimento clipiano, não obstante a sua idade. Mas deixou poemas publicados na Antologia Poética Piauiense, Artenova, Rio, 1974, e na Antologia de Sonetos Piauienses, organizada por Félix Aires, Teresina, 1973.  Dois poemas antológicos são a seguir mostrados

 

                              Judas e Cristo

 

Retumba em tudo sepulcral silêncio,

Como na campa em que repousa exangue

Heroi infausto de batalha inglória...

 

No ceu,

As nuvens

Vagando,

São negras.

 

Mas, de repente, o vento insano ruge,

A terra treme como em cataclismo,

Fulgura o raio, luzem mil clarões.

 

Ao longe,

            Remorsos

De um homem

Que chora.

 

Dos agudos punhais, na consciência,

Sangram feridas, como dos espinhos

Sangrou o Cristo, num Calvário fero.

 

Num galho

Mais forte,

Um laço

Carrasco.

 

...dependurado se estremece um vulto;

Súbito cessam movimento e augústia:

É tudo calma, é tudo luz na terra!...

  

 

                               Mensagem noturna

                                       

                                                   Para Inezita

 

Ouve, ó noite de estrelas cintilantes

E rica de saudades, noite quente,

Escuta a verso tão sentido, ardente,

D’ amor infindo para dois amantes.

 

Recebe, ó noite, d’astros fulgurantes,

O viajor que vem d’andança ingente

A palmilhar a via transluzente

D’amor infindo para dois amantes.

 

    Guia-lhe os passospor entre a paisagem,

   Ilumina-lhe, ó noite, esta viagem,

Com tuas luzes claras e brilantes:

 

 

Em que ele, andando pelo campo etéreo,

Veja as mil nuvens de negror cinéreo,

Com amor infindo para dois amantes.

 

Cid T. Abreu (1937 - 2004) nasceu em Caxias-MA. Depois dos estudos primários, muda-se para Belo Horizonte-MG, onde morrou muitos anos e formou-se em Filosofia. Poeta de grande consciência artística e boa cultura universitária. Voltando para o Piauí, vai lecionar na Univerdade Federal. Estreou em poesia, com Poemas I, 1961. Outras Obras: Terra Terrão, 1985, Moenda Poesias, 1986, e Ulisses & Outros Motivos, 1995 (com prefácio de Francisco Miguel de Moura). Escreveu crônias no Diário do Povo. É ligado também à poesia popular, em cujo gênero produziu  Caxias e Balaiada, com grande performance.

 

                  Como seria bom

 

como seria bom

se eu rolasse a vida

com a esperteza dos meninos

que rolavam a bola

pelo bariri

                e o placar

                me fosse favorável

                no apito final

 

aprendi a contar

pelos urubus

que escureciam a tarde

para o pernoite

e algumas vezes errava

pelo retardatário

que se distraía

num fato de boi

 

os peitos das lavadeiras

eram bem maiores

que a lage

onde batiam roupa

só minha infância

entendia esse contraste.

 

         Momento

 

seria bem mais fácial

em teus cabelos

o desfilar de rosas

 

cresceriam envergonhadas

no despudor do negro

ou pelo brilho do

brinco

onde finco

meus olhos

balançando em teu sorriso.

 

Jamerson Lemos (1945-2008), nasceu em poeta forte, várias vezes premiado, tem uma dicção muito aproximada da poesia-práxis, mas é originalíssimo, sem descuidar do acento existencial.  Obras: estreia com Superfície do Vento, 1969, depois publica Sábado Árido, 1985, e Nos Subúrbios do Ócio, 1996. Participou de várias antologias, inclusive de A Poesia Piauiense no Séc.XX, org. por Assis Brasil.  Deixou muitos inéditos, entre os quais Istmo Soledad (prefácio de  Francisco Miguel de Moura). Premiado em vários concursos de poesia promovidos pela Fundação Cultural do Piauí e pela Fundação Cultural Monsenho Chaves.

 

Depois do deserto

 

Maripositas brincam da luz

pepitas vivas no Ar

não cansam de voar

em xis e em cruz

 

meu peito vive a bailar

assim me conduz

Mariposa me reluz

à Luz do Luar

 

sigo por essa Rua

de Alma nua

nem sei pronde vou

 

tenho pouco de oiro

trago-a cravada no coiro

antes do Vôo                   

 

          Charada

 

Uma pessoa não é só uma

São duas três pessoas

Enigma incógnita bruma

Noite misteriosa voas

 

Tranqüilidade noturna das lagoas

Cabeça como sino soas

Diz-me que alma é verruma

Quantos somos em suma?

 

Vida é viagem

Viajar e margear

Floresta deserto penhas miragem

 

Corpo uma bagagem

Flor a florar

                   Passagem.

 

Josias Carneiro da Silva (1929 - l992), professor, ficcionista e historiador de talento. Suas obras mais importantes: Simplício, Simplição da Parnaíba, 1978, romance,  e Abelheiras, 1991, história.  Folclorista e genealogista, em cujas áreas pesquisou e deixou várias obras.            

 

                    

 

                         TEATRO

 

José Gomes Campos (1925 -  ?) nasceu em Regeneração – PI. Professor  (Escola Técnica Federal e Universidade Federal do Piauí), fez o Seminário Maior, em Belo Horizonte-MG, onde participou de um grupo de teatro e escreveu algumas peças. Teatrólogo e ator. Formado em Filosofia e em Pedagogia para Administração Escolar. Sua atividade teatral começou nos idos de 1954, quando organizou e dirigiu o Grupo de Teatro da União dos Moços Católicos, em Teresina.  Depois, com outros, fundou o Teatro Estudantil Teresinense, onde atuou e encenou peças de sua autoria.  Ator na peça Barco sem Pescador, de Alejandro Casona, inaugurando o Teatro de Arena. Obras: O Bumba-Meu-Boi; A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água; Zabelinha, Zabelão; O Cabeça  de Cuia;  e Auto de Lampião no Além, que foi publicado em livro, pela Fundação Cultural Mons. Chaves, em 1994. Participou do livro A Nova Dramaturgia Piauiense (1989).  Na arte do teatro, não obstante sua idade, é um artista dos anos 1960, pois a estreia do Auto de Lampião... , sua peça mais conhecida e famosa, ocorreu no palco do Colégio Diocesano, em 1967, no quenta da Revolução dos Militares, sendo ele levado à cena em 1968, 1975, 1982, além de outras apresentações em Teresina, Recife, Fortaleza, Salvador e Rio de Janeiro. Traduzido para o espanhol, foi representado nos Estados Unidos (Universidades do Colorado e de Kansas).

 

               Texto do Auto de Lampião no Além:

 

                             Quadro

 

‘(Gabinete de Lúcifer, no inferno. Material sugerido: Um estrado, com o trono de Lúcifer, uma balança com um prato mais baixo que o outro, uma garrafa de cachaça com o copo, um leque de cartas de baralho sobre um pedestal, no qual se lê a inscrição “INSISTA, PERSISTA, NÃO DESISTA”, uma grande corrente, lembrando a escravidão. A iniciar a peça encontram-se em cena apenas o trono de Lúcifer sobre o estrado e a mesa secretária. Um coro atrás dos bastidores inicia a peça. Canta toada de cordel, a estrofe abaixo):

 

Bem perto aqui do inferno

Vive um mal assombrado

Um bando de esqueletos

Num barulho achocalhado

São cabras de Lampião

Que se vão lá pro sertão

Do inferno escorraçados.

 

O que agora se vai ver

Espanta toda a plateia

Pois se preparem os fracos

Vão ter muita diareia

Uma cena do inferno

Lampião briga com cão

Muito grito, horror e peia.

 

Lampião, o cangaceiro

Expulso dos celestiais

Vem aqui para o inferno

Pedir asilo aos maiorais

Temos muita guerra à vista

Mistério e assombração

Muita morte e algo mais.

 

(Entram os repórteres. Vem trazendo os objetos do cenário. À medida que os

Arrumam no palco, cantam).

 

                                  1º repórter

                        (Trazendo a corrernte)

 

O trabalhador de hoje

É um pobre espoliado

O capitalista bochudo

Faz dele um diabo lascado

Só pensa nos lucros fartos

Às custas do pobre enganado.

         (...)

 

          2º repórter

             (Trazendo a garrafa e o copo de cachaça)

 

O pobre e o rico se agarram

Sem vergonha nem temores

A danada da cachaça

De todas as marcas e cores

No alambique do inferno

Se enriquecem os vendedores.

              (,,,)

 

         3º repórter

(Trazendo o símbolo do jogo)

 

O jogo é pra toda gente

Um foco de perdição

Não ajuda, engana e mente

Nunca vi tanta ilusão

Mas só o pobre lascado

Se arrasa no furacão.

               (...)

 

Após o coro e a saída do 3º repórter, desce sobre a cena um pesado silêncio, entrecortado, logo após, por cantos de grilo, coaxar de sapos e rãs)

                       

                       Cão Gasolina

(Entra, assenta-se á secretária,liga o rádio e anota o noticiário. Os ruídos vão diminuindo até desapareceram. Ouve-se um toque de caixa. Gasolina levanta-se. Entra Lúcifer e toma assento no trono).

 

                                 Cão Gasolina

                           (Com uma exsgerada mesura)

 

- A Lúcifer, detentor das riquezas e da prepotência, a saudação do seu humilde e dedicado servo, Cão Gasolina!

 

                                    Lúcifer

 

- Alegro-me vê-lo sempre aplicado ao trabalho,meu caro Gasolina. Não me frustrei por tê-lo nomeado chefe do meu gabinete...  Alguma notícia da Terra?

 

                                  Cão Gasolina

 

- Acabava de registrar o último noticiário. Posso lê-lo?

( N. B. ESTE NOTICIÁRIO DEVE SER ATUALIZADO CONFORME OS GRANDES ACONTECIMENTOS DO MOMENTO. É um trabalho que fica a critério do diretor e artistas. O mesmo deve ser feito com referência a todas as críticas à situação do atualizado).

 

                                      Lúcifer

                               (Lê o noticiário)

 

- SANDITA – A atriz chilena Andina Santiago aterrissou hoje no aeroporto de Hail. Trajava um vestido róseo e calçava um sapato grená, presente de sultão Bendder-Abbas. A célebre estrela, ao descer do avião, deu três espirros.  Seu médico assistente, porém, não deu importância ao acontecido. Assim, a artista está em boa forma para executar o tão esperado  programa que cumprirá naquela cidade.

BRASIL – A revista esportiva PLACAR trouxe as medidas completas do jogador Sócrates. Assim sua coxa mede...

 

                                      Lúcifer

         (Interrompe com uma batida do cetro no estrado)

 

- Basta! Nunca ouvi tanta baboseira! Veja até onde chegou a subcultura dos meios de comunicação da Terra! Leia apenas as notícias que possam interessar à execução dos nossos planos!

 

                                   Cão Gasolina

 

- As belezas internacionais em concurso de misses...

 

                                     Lúcifer

 

- Não! Não!

 

                                    Cão Gasolina

 

- O lindo baile das debutantes, filhas de deputados...

 

                                   Lúcifer

 

- Também, não! Por acaso, Gasolina, você perdeu o censo crítico?

 

                                Cão Gasolina

 

- Vaticano.

 

                                      Lúcifer

 

- Vamos lá, leia!

 

                                    Cão Gasolina

 

- O papa fez um novo apelo aos magnatas e milionários no sentido de se entregarem com espírito de amor e justiça à solução do dramático problema da fome.

 

                                       Lúcifer

                                   (Indignado)

 

- Ideia abertamente antidemocrática a de se viver falando em fome. Redija agora mesmo uma Medida Provisória, ou melhor, redija uma Portaria designando uma comissão de diabos encarregada de convencer o mundo desta mentira: Quem vive espalhando que o povo passa fome é subversivo’.                                

 

                                

 

                        GERAÇÃO MARGINAL

 

O filosofo Arthur Schopenhauer, em A Arte de Escrever (tradução, organização, prefácio e notas de Pedro Süssekind), L&PM Pocket, 2005, Porto Alegre, expressa-se assim: “Cinquenta anos para a historia política são muitos, mas para a história literária pouco representam”. Mais adiante, é animador o pensamento de Schopenhauer, ao afirmar que “...a palavra dos homens é o material mais duradouro. Se um poeta deu corpo à sua sensação passageira com palavras mais apropriadas, aquela sensação vive através de séculos nessas palavras e é despertada novamente em cada leitor receptivo” Assim, deduz-se que, embora haja descontinuidade entre história e literatura, esta, ainda assim, vale a pena. Só que a veleidade de os escritores pensarem que são antecipadores soa sem amparo. As gerações literárias precisam de maturação: é quando deixam seus feitos entregues à crítica e à história. E foi por isto que  a Profª Elizabeth Marinheiro, da Universidade Federal da Paraíba, disparou, numa de suas conferências, que “a versão segundo a qual os autores do agora inauguraram a cartografia cultural transgressora, a nós, nos parece desconhecimento estético”.

Combinando o filósofo com a pedagoga, chegar-se-à  à conclusão de que  as  gerações Meridiano, CLIP e  mimeógrafo são continuidade, a despeito do burburinho e da inquietude, da perplexidade e das viradas da história. Continuidade maior ainda nas duas últimas citadas,  pois singraram as mesmas águas turvas da “Revolução de 1964”, que teve duração de mais de vinte anos – tempo que não pode ser uno: teve começo, meio e fim.

Resta, portanto, a impossibilidade de marcação de datas para cada geração, que diz muito sobre os inegrantes do que sobre seu tempo. No Brasil dos últimos tempos, por comodidade, as décadas têm sido referências pelos anos que as iniciam: 1940, 1950, 1960, 1970. No caso do Piauí, onde tudo começa com bastante atraso, não podem ser consideradas estanques: a geração clipiana praticamente começou no meado dos anos 1960 e seguirá por aí até a morte dos seus representantes/participantes, como a dos marginais ou do mimeógrafos, que vai do meado dos 1970 em diante.

Historicamente, a  geração marginal (ou do mimeógrafo, como queiram) surge no interior do estado e não na capital:  é uma característica. Nos anos 1971/1972, tanto em Picos quanto em Parnaíba, duas publicações eram feitas em  mimeógrafo: Voz do Campus e O Linguinha. Ainda não se falava em livro.

O grupo de Parnaíba, com a liderança e a participação efetiva de Alcenor Candeira, cria raízes e vai constituir o Inovação, dando continuidade ao modo de fazer e aos propósitos críticos da sociedade e da literatura em especial.  O grupo de Picos mostrava a participação de escritores notadamente liderados por Ozildo Barros e Gilson Chagas. Essse renascimento cultural inciado ainda timidamente em Voz do Campus redundaria na criação de vários jornais estudantis e outros, todos vindo a fundir-se no Jornal de Picos e, mais tarde, na criação da revista Mais Foco.

Mas o acontecimento-marco da geração mimeógrafo foi o lançamento do livro Ciranda, em Teresina, no ano de 1976. Cineas Santos, o editor, declara: “Em 1976, convoquei um ex-aluno, excelente poeta, para me ajudar a organizar uma pequena coletânea com poemas de autores contemporâneos. Sem hesitar, o poeta Paulo Machado saiu a campo e, em pouco mais de um mês, me apresentou os originais do que viria a ser o livro Ciranda. Eram textos de Francisco Miguel de Moura, Hardi Filho (os dois mais conhecidos), Dodó Macedo,  Domingos Bezerra, João de Lima e o próprio Paulo”.  A coletânea, com representatividade maior de poetas já característicamente da geração que estava se constituindo (os quatro menos conhecidos) foi lançada num show denominado Cenas Piauienses: o Rio, no “Teatro 4 de Setembro”, em julho de 1976, valendo a aquisição do livro como entrada.

          Ali, de modo mais ou menos orgânico, iniciava-se uma nova geração literária, no Piauí. No começo, só uma pequena parcela publicaria livros individualmente. A produção surgia através do mimeógrafo, em folhas soltas distribuídas nos bares e casa de diversão, nas ruas e praças, daí o nome de geração do mimeógrafo ou marginal.

Anos mais tarde, não obstante se trate de um grupo de pouca homogeneidade, José Pereira Bezerra tentou juntá-los num livro denominado Por que Essa Lâmina nas Palavras, Fundação Cultural Mons. Chaves, Teresina, 1993, embora não tenha feito uma pesquisa exautiva, nem considerado autores já falecidos que, por terem mais ou menos as mesmas características de estilo, deveriam ser evidenciados.

                          

                        AUTORES FALECIDOS

 

Torquato Neto (1944 – 1972), nome literário de Torquato Pereira de Araújo Neto, nasceu em Teresina – PI  e faleceu no Rio de Janeiro.  Foi o autor que mais influenciou os jovens do final dos anos 70 para cá, talvez por sua militância no grupo baiano «tropicalista», ou por causa da morte inesperada, em 9 de novembro, dia de seu aniversário, ou pela atuação na imprensa do Rio, ou a ainda por tudo isto. A divulgação de sua obra póstuma, Os Últimos Dias de Paupéria (Rio, 1973), quase causou uma revolução poética no Brasil. Portanto, só alguns anos após esses acontecimentos  ele  chega e se estabelece junto à moçada do Piauí.  O jornalista, historiador, crítico Kenard Kruel recentemente publicou o volume Torquato Neto (ou A Carne Seca é Servida), 2001,  com introdução, estudos e depoimentos inéditos.

          Dicção nova, original, para iniciar, Cogito representa bem o estilo de uma poética que tentou estabelecer e, se não conseguiu, foi por falta de tempo:

                   

eu sou como eu sou

                    pronome

                    pessoal intransferível

                    do homem que iniciei

                    na medida do impossível

 

                    eu sou como eu sou

                    agora

                    sem grandes segredos dantes

                    sem novos secretos dentes

                    nesta hora

 

                    eu sou como eu sou

                    presente

                    desferrolhado indecente

                    feito um pedaço de mim

                   

                    eu sou como eu sou

                    vidente

                    e vivo tranquilamente

                    todas as horas do fim.    

         

Torquato Neto escreveu pouco e viveu como poeta, foi um dos poetas trágicos da modernidade.  Outros é quem vêm escrevendo sobre ele, juntando seus poemas, artigos e frases. Legiões de “torquatistas”, o incensam e divulgam de norte a sul. Entretanto, sempre há uma voz discordante: o crítico Affonso Romano de Sant’Anna,  em entrevista a Glória Sandes, publicada na página de cultura do jornal O Estado, disse que “ele não deixou obra que comportasse avaliação definitiva”.

Na verdade, não há avaliação definitiva. Mas, sem dúvida, Torquato deixou um nome que cobriu sentimentalmente todo o Brasil, não importa se mais por conta do letrista musical do que do poeta. Portanto, ler Poema do aviso final, de Torquato ajuda na sua reavaliação.

                

            É preciso que haja alguma coisa

             alimentando meu povo:

             uma vontade

             uma certeza

             uma qualquer esperança.

             É preciso que alguma coisa atraia

             a vida ou a morte

                       ou tudo será posto de lado

             e na procura da vida

             a morte virá na frente

             e abrirá caminho.

             É preciso que haja algum respeito

  ao menos um esboço

  ou a dignidade hmana se afirmará

  a machadadas.

 

Paulo Veras (1953-1983) nasceu em Parnaíba – PI. Foi contista e poeta. Morava em Fortaleza. Tendo falecido ainda moço, mesmo assim conseguiu influenciar a juventude de sua terra. É autor da literatura piauiense pela linguagem e pela gama de assuntos que o interessava e desenvolvia. Estréia no conto com um livro de grande força: Cabeça-de-cuia, 1979. Publica depois Maus Antecedentes, 1981 (de parceria com Leila Míccolis), O Centro da Pedra, 1982, e Os Corações Devem Ser Postos na Lata de Lixo, no ano de sua morte.

Assis  Brasil selecionou o poema Oferenda, entre outros, para sua antologia:

 

          Trago nas mãos

um resto da noite passada

e entre os dedos o suco das estrelas

que como sábias irmãs

me fizeram companhia

                   

                    Faltou tua orelhinha de búzio

onde eu escutava as marés

e retirava o sal amargo

com a língua em arpão

 

Esta memória de hoje

é apenas o retrato morto

de um corpo com impressões digitais

sobre a pele

Uma lembrança

que traz de volta

uma dor antiga

uma ferida que é uma boca

de tão aberta

                    E este peito

está tão cinzento

que chego a pensar

que chove nas vísceras

         

Ramsés Ramos (1962 – 1998), nasceu em Teresina e faleceu em Moscou. Poeta, músico, advogado, jornalista.  Percurso do Verbo, poemas, 1987. Participou de várias obras coletivas, entres as quais Dois Gumes e Dança do Caos. Publicou também um envelope poético: Poesia Lá Dentro. Crítico de literatura e tradutor, incluindo Apollinaire, Baudelaire, Auden, Cummings e Juan Ojeda, entre seus traduzidos. Antes de falecer havia anunciado traduções de Jaroslav Putík (poeta tcheco, inédito em português) e Byron.

 

saudade me botou na parede

- há que chorar

 

mas eu sei que a rede

em que me reparto

é um banquete raro

tanto fino quanto farto

 

saudade triscou no gatilho

- impossível não prantear

 

mas eu sinto que o ato

entre o partir e o ficar

é o fico, não o parto

 

saudade remoçou meus desertos

- hei de carpir

 

mas eu vejo que a lei

de que é feito meu império

pertence à fina grei

do eterno mistério.                                   

 

Wilton Santos (1955 – 2003), nascido em Francisco Santos-PI, professor de Geografia, pesquisador, poeta e compositor de letras para música, foi um verdadeiro idealista. Sua biografia ganha força e sabor de  tragédia, nos tópicos do artigo de Kenard Kruel (jornalista e historiador), publicado no Diário do Povo, em 30-4-2003, abaixo transcritos:

“Manhã de sábado  (dia 19 passado), os urubus no telhado sinalizavam aos vizinhos que a carne seca estava à disposição dos vermes. Arrombada a porta da casa, localizada no Planalto Uruguai, Zona Leste de Teresina, lá estava o poeta morto (não se sabe quando nem a causa – no óbito está que faleceu quinta-feira, 17, de ataque cardíaco – mas o que isso interessa agora?)

Quando me deram esta informação – um soco no estômago – pensei, comigo mesmo, o peta Wilton Santos morreu assim, sem dar satisfação a ninguém, como sempre viveu.(...)

Wilson Santos foi um dos mais geniais e autênticos da  Geração pós-69. Vencedor (1º lugar) no Concurso Torquato Neto de Poesia, promovido pelo C. A. de Letras, da UFPI, 1980, do Concurso de Poesia Falada na Praça e no Concurso Da Costa e Silva de Poesia, estes últmos promovidos pela Secretaria de Estado da Cultura, em 1981 e 1982, respectivamente.

Wilton Santos é autor  de diversos poemas desconcertantes – ora ácidos, ora líricos, publicados em Cerca de Arame ( 1979), Diadema (1982), Postais da Cidade Verde (1988), Poesia Teresinense Hoje (1988), Mosaico (1991), Ciclo Vital (1993) e Lente de Contato (1995), entre outros inéditos. Wilson Santos foi um dos mais solidários companheiros que tive na luta pela criação da União Piauiense de Escritores – UNIPES, em combate ao imobilismo das instituições culturais oficiais da época. Embora formado em Geografia pela Universidade Federal do Piauí, Winton Santos ministrava não só aulas de geografia, mas de cultura geral, na rede estadual de ensino. Assim, quem teve o privilégio de vê-lo como professor, com ele muito aprendeu sobre a vida, em todos os sentidos”.

 

                        Sinta na carne

 

É, irmão, não adianta fugir!

A realidade está na cara

 Procure sugar o fato

Coma o feijão e de sobremesa o prato.

 

                   Fato

 

O orvalho na calda da noite cai

Como uma gota de sangue

Denunciando a violência

Neste País.

                             

“Por ter desafinado ‘o coro dos contentes’, em vida, pagou o alto preço de morrer  jovem, só, praticamente anônimo. Mas nunca fez concessão, nem pra morte. Natural de Picos (Jenipapeiro, atual Franciso Santos), Wilton Santos, filho de Simplício Morais Santos e Alzira Maria dos Santos, nasceu no dia 10 de agosto de 1955. Deixou. Deixou, além do pai (era órfão de mãe), 13 irmãos, os filhos Wilkamayo e Mayta e os poucos amigos na saudade”.

                            

                          AUTORES VIVOS

 

São muitos os escritores piauienses que continuam vivos, na liça, especialmente poetas. É, pois, uma geração em aberto. Depois dos consagrados pela vida, obra e crítica, têm vez os autores em consagração, na feliz expressão de Ronaldo Alves Mousinho.

 

Alcenor Candeira Filho (1947),  nasceu em  Parnaíba – PI, onde reside. Advogado, professor, procurador do INSS. Poeta, cronista, crítico, conferencista e historiador literário. Membro da Academia Piauiense de Letras. Sua obra está consolidada. Livros: Sombras entre Ruínas, 1975;  Rosas e Pedras, 1976; A Insônia da Cidade, 1990; No Reino da Poesia, 2001;  Das Formas de Influência na Criação Poética, 1980; Aspectos da Literatura Piauiense, 1993; A Insônia da Cidade, 1991; Literatura Piauiense no Vestibular, 1995; Redação no Vestibular, 1996, Memorial da Cidade Amiga, 1998. O Crime da Praça da Graça, 2008. Antologia Poética, 2004.

Com aguma influência de Drrummond, no início, logo superada, aponta para novos rumos, ou seja, aquele referido por Heloísa Buarque de Holanda: “irônico, ambíguo e com um sentido crítico alegórico mais circunstancial e independente de comprometimentos com um programa preestabelecido.”

Autor que aponta para a geração seguinte, é o primeiro piauiense a publicar livros no mimeógrafo.  Pioneiramente, em 1972, com um grupo de  jovens parnaibanos, funda o jornal “O Linguinha”,  mimeografado, e participa do “Inovação” (1977), também fora do sistema normal de impressão – órgão que fez mais sucesso de venda e de leitores que a imprensa existente no seu tempo. Assim seu conterrâneo Renato Castelo Branco o conceitua: «Hábil cultor da forma, por vezes neoclássico, mas sempre postado diante do mundo como um poeta de hoje.»   Poemas que informam do seu estilo:

 

      Soneto dos quarenta anos

 

Mergulho nos quarenta anos de idade

como um lobo raivoso e descontente.

Que auroras de porvir se agora outroras

do instante estão de fora tão presente!

 

Mergulho nos quarenta anos de idade

absorto no pretérito distante

onde no fluido que reduz o alcance

já não reluzem  mitos como antes.

 

Mergulho nos quarenta anos de idade

certo de que quarenta anos morri

e nessa morte, que é da vida o gosto,

 

mergulho, aos quarenta anos de idade,

                   tostado pelo sol, me protegendo,

de sol a sol, da sombra do sol-posto.

 

                        Composição

           

quando de fixo,

palavra,

livre no livro

penso que podes

e que sobes montanha.

no entretanto,

és mais para plúmbea

que para plúmea.

onde o topo

da montanha?  

 

           Paulo Machado (1956), nasceu em Teresina, onde reside. Poeta, contista, ensaísta e crítico de literatura e arte. Formado em Direito, com especialização em Direito Agrário.  Obras:  Tá Pronto, seu Lobo?, 1978;  e  A Paz do Pântano, 1982.  Poucos livros, mas tem grande e importante participação na imprensa e nos movimentos literários, transparecendo suas preocupações com a sociedade, a política, o meio e o tempo de vivência.  Participou de várias antologias de poemas, a começar de Ciranda, l976, livro autenticador da geração marginal. No gênero conto, Piauí: Terra, História e Literatura, 1980, contou com sua participaçção. Colaborou ainda na revista Cirandinha (1977/84). Editou o jornal Floretim (l984), alternativo que alimentou o crescimento do movimento dos anos 1980. Com Cineas Santos, partcipou do jornal Chapada do Corisco. Fez conferências literárias. No prefacio de seu livro de estreia, disse Cineas Santos:  “Grande parte dos poemas que constituem este livro têm gosto de reportagem de rua: são flashes de uma cidade que se transforma, que desumaniza (perdoem o lugar comum) pela ação (in)consciente dos donos da vida” 

Poeta denso e ao mesmo tempo simples, visto que trata dos temas comuns da vida, trabalhando a linguagem sem prejuízo do entendimento. Paulo Machado espelha bem sua preocupação com o fazer poesia, no poema Esboço e, principalmnte em Poética, do qual esta antologia apresenta uma parte:

 

           fica o ranço das metáforas,

  o outono na velha aquarela.

  no ponto fica

  a lembrança das velas.

   fica o silêncio

   o esboço do poema, os múculos

   rijos à espera do agora.

   fica a certeza de carminhar e

   em linha reta,

   não fugir nunca.

remar contra a corrente,lutar

sem temer os gospes sujos

dos que rastejam, como cães,

roendo os ossos da omissão.

fica a ânsia

de sentir o sangue queimando

nas veias até  o último momento.

fica um principio

    não temos o direito de trair

    a poesia, crucificá-la

    numa sexta-feira de passivismo.

 

                    Nas ruas da minha cidade há lições?

                              (É preciso aprendê-las)

 

          Desfazer o enigma da Rua Grande,

onde os revolucionários depredaram o bonde

e apagram os gestos dos ditadores,

numa rubra manhã de outubro.

 

(A malha da história sendo tecida pelas mãos operárias)

 

Lembra o fantasma de um coronel loquaz

que acrescia cores a suas façanhas

e vadiava pela Rua da Estrela,

atravessando paredes,

sumindo na cinzentura da tarde.

 

Os paralelepípedos da Rua da Glória

Tinham a densidade do sono das tardes de verão.

 

Insisto:

aprender as lições que há nas ruas da minha cidade.

Na Rua Bela, era proibido amar.

(Há tempos proíbem as lições de liberdade no meu País).

 

Na Rua dos Negros, francesas faziam amor

com os filhos dos coroneis.

 

Na Rua Paissandu, havia sol no coração dos amantes.

 

O tempo não apagou o que falavam os operários

da Companhia de Fiação, nos dias cinza da ditadura Vargas.

 

Diziam coisas reais

aprendidas no galope das máquinas

e no silêncio das horas, nas noites insones.

 

Cineas Santos (nome literário de Cineas das Chagas Santos) nasceu em Caracol – PI, em 1948. Professor, poeta e contista. Livreiro, depois editor de  muitos escritores da sua geração, um grande movimentador da cultura e da arte. Criou a Oficina da Palavra, casa onde funciona escola, museu e auditório para atividades culturais. Cineas tem a alma e o corpo daquilo a que se dá o nome, vulgarmente, de ativista cultural. Teve um conto selecionado para a revista Ficção, Rio de Janeiro. Foi classificado em concurso nacional e internacional de poesias. Cofundador e editor do jornal  Chapada do  Corisco (1976-77); idealizador do SALIPI (Salão de Livros do Piauí), que reune anualmente, livreiros, editores, professores, estudantes, autores e leitores, além de outros agentes culturais correlatos; coordenador de  A Cara Alegre do Piauí,  progama itinerante de interiorização da cultura. É autor da letra do Hino de Teresina. Obras: Miudezas em Geral;  Tinha que Acontecer, 1982; ABC da Ecologia; Poesia da Cidade Verde, 1988; Poesia Teresinense Hoje, 1988; Ô de Casa; Queda de Braço e Aviso Prévio Aldeia Grande, 1992; O Menino que Descobriu as Palavras, 1992; e Baião de Todos (livro coletivo), 1996. Segundo Paulo Nunes, “Cineas Santos é um homem representativo da cultura piauiense, em todos os aspectos”. 

                      

                    Nada além

 

 O amor bate à porta

e tudo é festa.

O amor bate a porta

e nada resta.

 

                          A um poema

 

Na página branca, o poema freme

tão vivamente pétala

que posso sentir-lhe o aroma.

Verbo transubstanciado em canto

acalanto de um sonho

sem pressa de desacontecer.

 

Pouco importa o poema:

a página nua recende a ti

e posso respirar-te inteira

doce evanescência...

luminosamente bela

como a claridade da hora.

 

Elmar Cavalho (1956), nasceu em Campo Maior, PI. Poeta singularíssimo, cronista com bastante segurança e realismo, crítico literário sensato e perspicaz. Residiu em Parnaíba, por muitos anos. Membro da Academia Parnaibana de Letras e da Academia Piauiense de Letras. Foi Presidente da UBE-PI. Lutou junto à Assembléia Legislativa, pela obrigatoriedade do estudo da literatura piauiense no curriculo escolar, e a nova Constituição Estadual incluiu a medida num dos seus artigos. Foi editor da revista Cadernos de Teresina. É magistrado. Ecreveu e publicou: Cromos de Campo Maior, 1990; Noturno de Oeiras, 1994; A Rosa dos Ventos Gerais, 1996; Lira dos Cinguent’anos”, 2000.  Tem também um poema longo, denominado Vida in Vitro, de 161  versos, publicado no Informativo do TRE, Ano 5, nº 10, de jan/abr. 1999. Já havia participado das antologias Poemágico/a nova alquimia, 1985,  Poemari(t)imos, 1988, e A Poesia Piauiense no Século XX, 1995. “Não é  poeta intuitivo apenas,  sua poesia se faz através da habilidde artesanal, do suor do ofício”, como disse Cunha e Silva Filho. Eis seu

 

                      Metapoema

 

                          As meadas e as palavras
são labirintos e teias.
Nelas os poetas se elevam;
nelas as moscas se enleiam
e se debatem em vão.
Os
poetas são.
As moscas, não.

 

                         Enigma

 

       entre o som

o sono

o sonho

a sombra e a sobra

                       eu me decomponho

            em escombros

                       em farpas e agulhas

                       escarpas e fagulhas

desfeito enfim

  em fogo de artifício

feito estrelas de mim

                       esfinge autoantropofágica que

                       não se decifrou e que a si

                       mesma se devorou


          Durvalino Couto  Filho
(1953), nasceu em Teresina, onde fez os estudos primário e secundário. Ainda jovem vai estudar jornalismo na Universidade de Brasília. Inteligente e inquieto, faz experiências em teatro e cinema. Voltando para o Piauí, começa a trabalhar como publicitário, desenvolvendo outras atividades paralelamente: letristas, baterista e animador cultural. Nas suas andaças por São Paulo e Fortaleza atuou no teatro e na música. Publica seu único livro, Os Caçadores de Prosódia, 1994, com gosto de inovação.  O rei estava ensimesmado é um poema que dá o acento geral de sua obra, naturalmente influenciada por Faustino e Torquato.

 

O rei estava ensimesmado,

De sua boca nada se ouvir

- nenhuma ordem para hoje,

nenhum enforcamento.

Não foi cobrado o dízimo da noite.

Um escândalo arrebentou na economia

e não foi liberado o pensamento

porque o rei havia-se calado

e o país inteiro adormecia.

 

O enclausurado urrou por entre as grades.

Mil acidentes com os boias-frias.

O bispo ficou celerado, possesso

e o diabo rezou a ordem do dia.

Nna iniciativa privada

forjaram-se falências desastrosas

com a mudez do rei que só ouvia.

 

Mataram cães de estimação

em mansões de beira-rio.

Comunidades se desintegraram,

crianças tornaram-se desafio

e a nudez das mulheres

virou prato do dia.

Adeus, véus de Alexandria!

 

Não houve festas nas periferias

e as mentiras aumentaram em abril.

Até que o rei declarou

num assomo de agonia:

“Nada mudou no Brasil.”

 

Nelson Nunes (1954), advogado, formado pela Universidade Federal da Bahia, mora em Teresina. Poeta, já publicou as seguintes obras: Oper-á-ria, editada pelo autor, em  Salvador, 1978; Árvore de Papel, editado pela Comtemp, Salvador, 1981, e Na Boca do Vulcão, Ed. Floretim, Teresina, 1987, sobre o qual escreveu Paulo Machado: “... o livro reúne poemas escritos em épocas diversas. Mas, no contexto histórico-cultural, representa um considerável esforço individual de atualização estética”. Intermezzo é o poema eleito para esta antologia.

 

Separadas as águas

desfilam as mulheres

as nádegas em pelo

no dorso de belas éguas

 

Apagadas as luzes do semáforo

passam as vacas

os úberes esplêndidos

deleitando os rebentos do tráfego

 

Baixadas as anáguas

suspensas as cópulas

guardam-se os filhos

para a próxima safra

 

Sustadas as mágoas

entoados os cânticos

irmana-se o sangue

de cordeiros e bárbaros

 

Descerradas as pálpebras

a luz sem qualquer obstáculo

cessada a utópica marcha

volta-se ao quotidiano espetáculo

 

Milton Borges (1960) nasceu em Teresina - Piauí. Medico otorrinolaringologista, especialização em medicina do trabalho, realizou cursos de aperfeiçoamento em vária capitais do Brasil e no exterior (EUA). Romancista e contista, sócio fundador da ALEARTES (Associação de Letras e Artes de Simplício Mendes) e da UBE (União Brasialeira de Escritores - PI). Recebeu prêmios literários pela FUNDAC (Fundação Cultural do Piauí), com o prêmio de  “Fontes Ibiapina”, com os  romances Destino sobre Rodas,  2002; e Vale dos Mal Amados, ainda inédito. Participou das antologias   Escritores III, 2003, e  Escritores IV, 2006, ambas da UBE-PI;  de  Coletânes Ilustradas de Escritores I e II, em 2004 e 2005, coordenadas  por Pedro Costa, e do livro Alvorecer, em 2004 e 2005, coordenados pelo esritor José Mndes de Sousa Moura. Colabora na revista De Repente e outras publicações de Teresina. Em parte, seu estilo está no conto a seguir:

 

                            O passeio

 

- Oi, esperando alguém?

A morena entreparou ao lado. Espiara-ade soslaio, desde que abancara. Ou melhor, o pedaço das coxas musculosas, exibindo generosamente de sob a minissaia esticada.

Não conseguia evitar. Por mais que tentasse. O momento não era apropriado. Não estava em clima de flerte, o bar uma válvula de refrigério na mentes prestes a explodir. Sem outra intenção.

Ademais estava acompanhada, ainda que não demonstrasse satisfação na companhia. Parece até que discutiam.

Não notara interesse no olhar dela. Um só lampejo de curiosidade. No entanto estava ali, sorriso acolhedor no canto da boca.

Quem diria!

- Talvez você...

Não perdia o jeito galanteador.

- Se é assim...

Apanhou o copo de uísque em sua mesa, onde estivera bebendo com o rapaz, sído um pouco antes de ela haver se encaminhado ao banheiro, um gesto sequer de despedida. Sentou sem cerimônia na cadeira defronte, uma bolsa volumosa de alça no colo.

Mais gostosa que bonita, não importa, os atributos físicos além das imperfeições fisionômicas.

- O cara da mesa?

Precavido, evitava equívocos.

- Alguém do passado.

Sorriu encantado. Uma agradável compensação para o fiasco do dia?

- Essas coisas acontecem. – Raul, o simplório psicólogo de botequim.

- E você, o que faz sozinho por essas bandas?

- Afogando as mágoas na gelada.

- Mulher?

- Nada disso.

- Uma pena.

Um latejar de curiosidade.

- Por que diz isso?

Foi direta: - Contrário podia ser útil.

- Mesmo?  -  Uma puta? Que decepção – O preço?

- Uma noite de emoção e...

- E...

- Carona até meu carro.

- Sem transporte aqui?

- Depois do que passei, não aceitaria mais nada do ex. Decepção enorme.

Um presente um tanto oferecido. Não seria o primeiro, Raul, uma solução para coraçãoes estraçalhados.

- Onde?

- Num estacionamento do Mocambinho.

- Levo até lá.

- Só isso? – Um travo de decepção na voz.

- Depois do nosso passeio.

Chamou o garçom, pediu a conta. Pagou a cerveja, o uísque pago pelo acompanhante anterior.

O carro junto à calçada do bar, àquela hora de movimento morrediço, na Duque de Caxias.

Um modelo popular de segunda mão, cuja possibilidade de pagamento das próximas prestações (emprego perdido hoje), patinhava no campo das cogitações.

Educado, abriu as portas, indicando a do passageiro para a garota ( o nome? Oh cabeça, esqueceu de perguntar), que entrou acomodando no banco. Em sua vez foi abordado por trás.

- Olá, otário.

O suposto ex-namorado da morena pressionava o cano do revólver em suas costas.

- O quê...?- Um calafrio disparou em sua espinha.

- Precisando carona.

Outro cara se destacou do sombreamento contrário e o empurrou com o parceiro para dentro do carro, surpreendentemente para trás da direção.

Sentaram no banco traseiro.

Foi instigado, um toque de arma na nuca.

- Dirija.

A mão tremia, não conseguindo inserir a chave na ignição.

A morena o auxiliou, gesto delicado,a acertar o contato.

- Calma, nada demais.

Cabeça baixa, não tinha coragem de encarar ninguém.

- A pretensão?

- Nosso passeio.

- Pensei só nós dois.

Os rapazes explodiram em gargalhada.

- Não se achando egoísta? – O primeiro parceiro, aparentemente o líder do grupo. – Problema, dois pobres pedestres?

O motor acionado.

- E agora? – Voz tremida, esperando ansioso a deliberação do assaltante.

- Pegue o retorno, descendo para o Centro.       

 

João Pinto (1951), nasceu em Luzilândia –PI. Escritor,  professor de literatura, mora em Manaus. Começou como poeta e contista, em João Pessoa - PB, colaborando nos jornais e participando de obras coletivas, quando fazia a Faculdade de Letras. Vindo para Teresina, continuou publicando na revista Cirandinha e na revista Ficção,  do Rio Janeiro. Participou da antologia de contos Piauí: Terra, História e Literatura, 1980. É, talvez, o melhor contista de Piauí, com produção regular, depois de Magalhães da Costa. Estilo singularíssimo, trabalha profundamente o discurso literário, por isto estreou muito tarde, com Luzes Esvaídas, 1991; Outras obras: O Ditador da Terra do Sol, 2002; e Contos de uma Aula em Vermelho, Manaus, 2010. Mora no Amazonas. Subindo a Escada  é o conto aqui apresentado.

 

Subo a escada atrás de Marina, em manhã diáfana e o verão nos bogarins da Franca Filho, gente me intimidando no olhar, ando pensativo, tenho vontade de acender cigarro, já na boca, falta fósforo, encaro os transeuntes solícito, muitos deles me negam, talvez não tenha o hábito, me constrange a maneira como me fitam, uma sensação me obriga a esconder, mas ao fazer, deparo com um estranho, aqui, moço, me alegro do seu gesto espontâneo, a mão dele se instala, uma baforada: apaga o palito, desculpe, era o único que havia, sacode a caixinha no asfalto junto com meus desejos liquefeitos, desce a escada momentaneamente, ainda se desculpando, eu páro com o cigarro na boca, imaginando que o sabor das tragadas já era, desço à mão e machuco o cigarro, com a sensação de um craque que perdeu uma grande jogada, lembrando que Marina me vem, às vezes nas fendas do combogó do banheiro, o seu corpo é alcalino e uma ilha de segredos para se contar, penso nela nesse domingo, doido para chegar na sua porta e bater, descer à praia do Beça, e junto dela, me encantar com o mar, suas formas primitivas de vida e a contingência  do verde-escuro, escolho um lugar mais distante, ela estende a toalha, Marina pega um bronze, muitos rapazes suspiram suas ancas e esbarram em mim, o vento e o sol se encapelam,a praia vira um festival de pernas e gritos, há uma alegria em tudo, na caixinha do sorvete ali adiante, nos castelos de areia das crianças, nas embalagens dos descartáveis e no azul clorofórmico do céu, alguém disse que o mar é o começo da gênese humana, subo os degraus esmagando o cigarro, olho para trás, me espanto, lá está o estranho me fitando, o coração se enche de músculo de saudade, coloco na boca outro cigarro, sento no degrau, e espero a insolvência do instante, faltam dois andares para chegar ao apartamento de Marina, o estranho se encosta na escada, sorri, ôi,ôi, cadê o cigarro, devolvi à carteira, ah, fiz suposição, de que, por exemplo, que você tinha sacudido no mato e se aborrecido, não, não, cigarro tá uma nota, você procura alguém,sim, tá difícil, poucas são as pessoas que tão aqui, por causa do Festival, acho, a praia tá assim de gente, quer acender o cigarro, é bom, então suba comigo, a gente acende no meu apartamento, tá legal, entro, deixo as sandálias ao lado da porta, não, por favor, entre com elas, se deixar alguém pode levar, arranjo outra vez nos pés, o apartamento é pequeno, a mobília além de escassa está em desordem e muitas roupas no chao, ouço também o pingo no chuveiro desmantelado,  me convida ao sofá, desculpe, tou aqui mesmo,  observo os mínimos detalhes, uma geladeira pequena e um colchão no chão, sente, por favor, não se acanhe, ela se dirige e abre a janela, e com a claridade, o sol pinta, lá da banda do mar, pulsando pequetes, dando golfada, levanto do sofá,risca outro palito e se achega a mim, outra pancada apaga o fogo, droga, acho isso uma coisa por duas vezes, lembro que nos encontramos na escada, isso é o vento, o vento é uma coisa chata, a gente se abaixa, me acocoro ao lado dela,  lança a chama, o fogo sapeca o xerém do fumo, trago, despejando no rosto dela a chaminé,oh me perdoe, não devia, que nada, e senta ali no assoalho, me apontando o piso, penso que bom ao lado dela, nunca vi pessoa tão descontraída, em poucos minutos já preparou um clima de uma grande amizade, a gente se fareja meio sem jeito, a buscar um espaço ilhado de ternura, meu Deus, o biquini dela é azul, cor dos meus alfarrábios, mas não pergunto se foi proposital, seria demais, aí ofereço, ela apanha o cigarro, fumo por esporte, me diz, e nisso nasce o primeiro contato, aí estão suas pernas depiladas as pirâmides deEgito e sua boca com batom o arco-íres no meu céu de espera, fume mais, instigo o clima, me mostra uns dentes até interessantes fragatas de bandeira oscilando, pergunto que hora se desce, já vexado, não, não, me desculpo, te conheço de algum lugar, ela diz, quem sabe da Faculdade, friso, pensa quando desvia o olhar para a estante, ah isso mesmo, agora recordo,você não sai com Marina, sim, às vezes, vocês namoram, bem não é namoro,  amizade apenas, o apartamento dela fica aqui ao lado, sei, já pintei por aqui diversas vezes, ela está na praia com outro cara, até pediu que comprasse cigarro no fiteiro, oh quem diria, deixo escapar o coração entre os dentes, isso é a vida, ela diz, nisso puxa outro cigarro da minha carteira e pede fósforo, risco o palito, e o fogo sangra na cabecinha e enche as porosidades do seu rosto, as nossas mãos se rçam ocasionalmente, sinto em seus olhos um assustar de vento e uma alma de flores, quando o vento polvilha seus olhos de cinza, oh que azar, vão ficar vermelhos, tire aqui, me aproximo mais, seu hálito me despeja toneladas de angústia, serei eu responsável, me pergunto aflito, sinto também que seus gestos descontrolam, aí toco seu queixo, ela fecha os olhos, o meu coração se precipita entre as fontes calcinadas da primavera, dói em alguma parte, pergunto, apenas um ardido, onde, aqui, me aponta o canto do olho onde vejo uma senzala, limpo seu olho amavelmente, seus braços me circulam, e ganham turbulência gravitacional, o corpo dela se aglutina no meu formando um poente e um santuário de águas tépidas, o biquini  se choca no chão e o vento entra em diagonal, degola as minudências dos artefatos, feche a porta, alguém pode entrar, onde tá a chave, me parece no trinco, levanto e a chave treque na porta.

 

João Bosco da Silva (1944), nasceu em Francisco Santos – PI. Funcionário do Banco do Nordeste, aposentado. Contista, cronista, romancista, poeta, historiador, autor premiado várias vezes. Publicou as seguintes obras: Pensão Cassilda, 1993, e Geralho, 1994, romance e contos respectivamente, ambos pela Fundação Monsenhor Chaves, Teresina, PI. Historiador, publicou Jenipapeiro: A Terra dos Espritados, 2010. Como poeta, é autor da letra do Hino de Francisco Santos – PI  (Lei municipal de 1985) e escreve cordeis e sonetos. Um escritor completo, seguro, consciente. Do livro Geralho, o início do conto Golpe de Misericórdia  exemplifica seu estilo: 

Era de meu pai. O sinal conhecido na orelha esquerda e a marca já quase apagada nas ilhargas identificavam-na como de sua propriedade. Todavia no que se referia ao trato era como se fosse filha.

Nasceu de uma vaca bastante estimada, a Boneca, a qual morreu pouco depois de morrinha. Órfã com tão pouco tempo de vida, a pobre bezerrinha mal conheceu as delícias do amor materno e o sabor do leite quentinho, pelas manhãs frias e tardes serenas.

Seu qubra-jejum passou a ser a mamadeira. Aquilo era bom, porém já não recebia a carícia da língua morna a alisar-lhe o pelo macio. Não obstante a falta daquele amor, agora só vagamente lembrado,sentia-se recompensada pelo alimento e carinho recebidos. Desta maneira, a ausência da mãe foi sendo preenchida. E por não ser ingrata, começou a retribuir os agrados gentis de seu dono.

À hora mística do ocaso, que bom lamber aquelas mãos de sal, após farta refeição de farinha molhada no leite morno, tirado das outras vacas amigas. Era orgulhosa, isso era. Conhecia seu lugar, sua condição de órfã. Não ia sugar tetas que a outros bezerrinhos pertenciam.Tinha pavor de ser considerada intrusa. Daí haverem falhado as várias  tentativas de adoção por outras vacas do curral. Esperava que sobrasse algum leite e seu dono e amigo viesse dar-lho na garrafa verde. Que bom quando ele rascava as unhas duras em suas orelhas pequeninas. Ia degustando a mamada a vagar, saboreando e gozando os carinhos.

Sabia-se miúda e desprotegida, por isso, por isso se entregava àquelas cócegas gostosas de todas as tardes. Que o amigo era pródigo em agrados. Não que fosse a única. Isso não. As demais recebiam sua cota. Mas ela, como carente, era especial.Bem o natava pela palavra a mais, pelo gesto carinhoso. Eram coisas simples, sutilezas que não passavam despercebidas.

Estava crescendo. Percebia uma mudança sorrateira, um não-sei-quê de indefinível, de diferente. Já não era mais criança, aliás bezerrinha. Estava passando de uma fase a outra da vida. Virando adolescente. Que estava crescendo era fato inconteste, embora continuasse mansa, mansinha.

 

José Ribamar Garcia (1946), contista e cronista de boa cepa. A infância e a memória são o pano de fundo para reinvenção, nos primeiros livros. Estreou com Imagens da Cidade Verde, 1981(crônicas). Outras obras:  Cavaleiros da Noite, 1984; Pra Onde Vão os Ciganos, 1990; Ao Lado do Velho Monge, 2003 -  contos; Além das Paredes, 1998, e  Ressonância, 2008 - crônicas; Em Pretoe Branco, 1996; Entardecer, 2007, e Filhos da Mãe Gentil, 2011 – romances. Seu mais novo romance  enquadra-se bem na modernidade: estilo simples, rápido, vibrante e muito crítico em relação às deformidades sociais quotidianas.  O estilo sentido nesta excelente crônica memorialistica, buscada no  livro de estreia, representa a continuidade que se observa em toda a sua obra:

 

                                O bar do picolé

 

Na Praça do Liceu, esquina da Rua Simplicio Mendes com a Desembargador Freitas, havia o bar onde se fazia o melhor picolé da cidade. Tão natural que vinha com resíduo da própria fruta. Diferente daqueles preparados com água e um pozinho colorido, vendidos nas ruas ou no Lindolfo Monteiro em dia de jogo. O cara gritava picolé de tamarindo e, quando se ia ver, era gelo puro. Da fruta mesmo um sabor distante, pra lá de Timon.

A mulher que atendia ao balcão era pequena e magérrima. Tinha feições de índia e, nos olhos, uma tristeza que causava pena. Não ria, nem falava. Recebia o freguês sem um obrigado. E movia-se devagar como se carregasse um fardo de toneladas.

Por essa época, Milton Rodrigues ainda namorava tia Aradi – namoro arrastado, sem fim. Eles costumava aparecer lá em casa duas ou três vezes por semana, sempre depois do jantar, para marcar o ponto.  Os dois colocavam as cadeiras de cipó no corredor que dava para a rua e ficavam sentados, com intervalos de silêncio, como se não tivessem mais nada o que um dizer ao outro. Asseguram que isso é normal em longo relacionamento dessa natureza. Às vezes, ele levava o violão e dedilhava notas desencontradas e trechos de canções românticas, que ela ouvia atenta, com aquele olhar de apaixonada, sonhando com o casamento – que viria oito anos depois. Mas sua presença me agradava, especialmente, quando me mandava buscar picolés, que eu trazia numa vasilha de alumínio, com os dedos das mãos enrijecidos. Valia, pois na distribuição minha cota era maior.

Numa dessas noites, tia Aradi comentou que a mulher do bar estava tuberculosa. Conversa que ouvira no trabalho. A partir dali não se compraram mais picolés. Foi o fim das farras que Milton patrocinava, sem exibição. Havia preconceito contra essa doença. Ai de quem a portasse. Estaria condenado à segregação, ao degredo domiciliar. A família isolava seu doente num cômodo de onde jamais sairia. Ali aguardava a morte, às vezes antecipada pela solidão.

O teresinense nunca foi de medo. Criado entre trovões e coriscos, aprendeu cedo a tocar a vida, com coragem e cabeça empinada. Mas, quando se tratava da tísica, ele pensava duas vezes. Até mais. E exagerava nas precauções.

Tio Olinto assimilou esse hábito. Chegado do Maranhão, entrou em pânico ao saber que a casa que alugara havia sido ocupada por um homem devorado pelos bacilos de Koch. Não houve quem o tranquilizasse. Nem o senhorio afirmando que pintara a casa com cal e a desinfetara com creolina. Desfez o contrato e alugou outra na Rua Riachuelo.

Boato espalha-se mais do que fogo em palha seca de carnaúba. A história da tuberculose na mulher correu e afugentou os fregueses. Chegou o momento em que não havia mais o bar, nem a mulher, nem os picolés.

 

Rubervam Du Nascimento (1954), nasceu em São Luís – MA, migrando para o Piauí muito cedo, dizendo-se mesmo “cidadão teresinense por conta própria”. Poeta, ator e violinista. Formado em Direito, é fiscal do Ministério do Trabalho, em Teresina. É um grande experimentador  da construção poética. Colaborou na revista  Cirandinha e participou da antologia de contos Piauí: Terra História e Literatura, 1980. Seu primeiro livro, A Profissão dos Peixes, 1987, já vem com essa característica, uma estréia das mais animadores, tendo prosseguido e realizado, notável  poesia nos que o seguiram: Grito, Logo Existo, 1992; Sociedade dos Poetas Vivos, 1993;  Marco Lusbel Desce ao Inferno, 1998 e Os Cavalos de Dom Ruffato, 2005. Nesse percurso ganhou dois concuros literários da maior importância: Poesia Editora Blocos, Rio de Janeiro,1998, e Prêmio Nacional Cidade do Recife – PE, em 2005. Veja-se a poética de Rubervam em Poema 4 e  Sobre leis e profetas, em seu depurado estilo:

  

                             Poema 4:

    

palavras secam
na pele dos vivos
poetas saem
em silêncio
deixam notas
debaixo das portas
a arma é a poesia
cilada guardada
no tempo

Sobre leis e profetas

 

cês que testemunham

um tempo em retrocesso

e defendem

um ceu de fantasmas

 

cês que se meterm

pra consertar a manhã

nem bem s’inicia

e se dizem donos

daurora

não importa

se as mãos

tão vazias

 

por favor

façam

pelo

menos

uma

menção

de amor

 

ponham

outra vez

a noite

no caroço de tucumã.

 

Menezes y Moraes (1951) nasceu em Altos, PI. Jornalista, poeta, contista e crítico,  estréia em mimeógrafo, com Laranja Partida ao Meio, 1975, em Teresina. Colaborou na revista  Cirandinha e participou da antologia de contos Piauí: Terra, História e Literatura, 1980.  Exerce atividade bastante proveitosa em favor da literatura, criando suplementos nos jornais e oferecendo espaço aos literatos e artistas. Empolgado com a forma, influenciado por Maiakóvski, seu livro mais importante é A Balada do Ser e do Tempo, 1987, onde se equipara aos grandes poetas do gênero.  Publicou também Pássaro da Terra com Paisagens Humanas, 1982. Também é dado a atividades teatrais, escreveu e dirigiu peças de cunho popular. Atualmente reside em Brasília.  Um exemplo de sua poesia:

 

  Oferenda (sol – estrela)

 

Trago-te esta estrela da tarde

colhida no azul do mais puro céu

E a certeza da vida que se faz sentida

com a argila das mãos

e o barro dos pés

- o sonho concretizado –

Trago-te ainda os metais desses pássaros de ofício

nos tons jorrantes de suas cachoeiras

E a ternura dessa tarde

que escorre macia

entre o cio da paz

e o por de sol dos teus cabelos

         

Rosa Kapila (1953), nome literário de Rosa Maria dos Santos Kapila, nasceu em Teresina, PI. Muito cedo mudou-se para o Rio de Janeiro, onde estudou e onde mora. Contista, romancista e crítica literária. Escritora vocacionada, professora de língua portuguesa, literatura e matérias relacionadas. Doutora  em Literatura Brasileira, professora na Universidade Estácio de Sá, Rio-RJ.  Participações: Piauí: Terra, História e Literatura, 1980 (antologia organizada por Francisco Miguel de Moura); Universitários: Verso & Prosa, Rio, 1980 e de A Cor da Onda por Dentro, Rio, 1981.  Obras: Baião de Dois, 1983;  Pulso de Lamê e  Felizes São os Gatos, as mais conhecidas. Ao todo, são 40 publicações e muitos prêmios literários. Para a mostra do seu fazer literário, foi escolhido um trecho do conto  Da cor daquele ceu

 

São nove horas da noite. Três trens já partiram após sua chegada. Cansada de perguntar as horas passeia em volta das bancas de bolo frito. Um guarda a persegue, pergunta se ela tem documentos. Não está vendo o tamanho de minha bolsa? Diz isso para afastar a presença desconfortante do homem. Guardava o silêncio da barriga, para preencher mais tarde de café com leite.

Procurava manter uma certa tranquilidade, Clotilde.  A estação continuava iluminada e o vai-e-vem de pessoas distraía muito mais do que ela imaginava. Não fazia mal. Tomou sereno, poeira no nariz, meteu o pé na areia e lembrou das tapiocas que a mãe fazia – todas fininhas e transparentes. Morria de tudo, menos de saudade.

- Aceita uma cerveja?

- Só se for no bar mais próximo.

Saiu com o desconhecido. Andando as horas passavam com mais rapidez. A cerveja choca já lhe entorpecia. A mão áspera amaciava sua cintura. Há quanto tempo não tinha um homem? Quando as plantas começassem a chorar, voltava para a estação. A sandália se enchendo de areia. Tinha que guardar alguma coisa para relembrar enquanto estivesse sentada naquele banco duro. Começou a usar um recurso antigo – meteu o pé no sapato do desconhecido e subiu... tranquilamente esfregava.

Primeiro dançaria um bolero no salão fuleiro. A tristeza medonha por nunca ter desfilado num carro aberto de circo, chegava agora. A pista furada prendia seus pés... já não existia mais cimento para ser carregado pela vassoura. Pendia de um lado para o outro.  Sentada, o fêmur latejava.

Saíram. Sentiu desejo e enfiou a cabeça no pescoço do homem. Fixava a cara rapada, mais tarde apostaria em sua transformação.

- Mais cerveja?

- Uma só.

A barra do dia apontando, com dificuldade divulgava os trilhos tortuosos. Junto ao desconhecido se sentia feliz. Entraram numa casa pequena. Clotilde deita na cama. O homem apaga a luz.

São seis horas da manhã. A estação cresce. Passageiros correm com medo de perderam o primeiro trem. Clotilde dobra o chale, coloca-o na bolsa. Senta numa banca de laraja, puxa conversa com  a mulher gorda...

- Vendeu muita laranja?

- Como a coisa tá, quem chupa laranja? Mas dinheiro pra cachaça não falta.

- Se quiser posso ajudar a descascar...

Tira o gosto da cerveja amarga com duas laranjas presenteadas pela banqueira, silenciosamente se afasta, agradecida.

                                  (...)

Manhã distante, casa oculta por um jardim sem flores, só gramado. A janela escancarada dava uma falsa sensação de liberdade e consciência tranquila. A cortina de flores amarelas foi se pregueando aos poucos até fundir-se numa só prega. Claridade! Um tapa num mosquito que quis chupar seu sangue. Um avião que passou deixou fumaça no ar e ela escreveu um nome no ceu. Esfregou as mãos a fim de sentir calor. A sensação de já ter morrido, pagando pecados na Terra. Tão simples pegar na mão de alguém e atravessar a rua correndo. Principalmente quando esse alguém era ele. Calafrio. Aflição incontida em seus gestos. Segurou-a pelas braços para acalmar sua tensionalidade. Carregada de emoções – prática e objetiva apenas para reviver. A preocupação passando, como uma chuva pesada.

Se culpar por quê? Fazia agora a carta que não ia mandar. Depois que ele saiu começou a olhar para o chão – viu lençois e uma barata correndo. Meteu a mão na cabeça e decidiu: vou embora daqui nesta semana ainda. Esta será a última imagem desagradável que recebo de presente desta casa. Se deslocou engatinhando e foi até o banheiro, ficou olhando para sua última mijada. Arrependida por não ter sido cruel. Poderia ter simulado... feito um jogo...  sabe lá o quê. Vomitou. Ficou com ódio de seu vômito porque por mais que engulhasse não conseguia curpi-lo fora, aquele gosto estava lá dentro em suas entranhas.

Desembarcou. Sem terra, sem nome. Uma rua como outra a recebeu. Não sentiu desejo de perguntar onde estava.  Sabia voltar para a estação.      

 

Oston Lustosa (1957), nome literário de Oton Mário José Lustosa Torres, nasceu em Parnaguá, sul do Piauí. Magistrado, contista, romancista, ensaista, orador, autor dos romances Meia-Vida, 1999 e  Vozes da Ribanceira, 2003,  além do livro de crônicas O Pescador de Personagens, 2000.   Foi Juiz de Direito em várias Comarcas do Estado,  hoje em Teresina, onde reside. Membro de várias entidades literárias e culturais, incusive da Academia Piauiense de Letras. O trecho abaixo é do seu romance Vozes da Ribanceira, obra de muita valia, dos seus livros é o  mais comentado e aplaudido pela crítica.

 

Ida e volta pensando na filha do pescador. Cortou, carregou,  subiu a lenha no caminhão. Cheio de força e vontade, machadou  com desenvoltura e sucesso. Deitou por terra caneleiros, decepou angicos, fez piquizeiros em toras curtas.Quando os dois ajudantes lhe perguntaram o porquê da afobação, sorriu, desconversou.

Assar a caieira é o seu projeto. Pagas as despesas do frete do caminhão, terá dinheiro de sobra. Um presente para Ditinha, a filha de Galdino Canoeiro. Por certo, ela não recusaria, não lhe faria tal desfeita. Dançou com ela, teve medo de lhe falar em namoro, noivado, casamento. Sim, quer falar-lhe das três coisas ao mesmo tempo. Tem a seu favor a boa vontade do pai:

- “Tomara a menina se engrace do Zito...” – contaram-lhe na venda de Bisô.

Vai e vem abastecendo a fornalha. A lenha seca de marmeleiro faz línguas de fogo enormes que lambem o madeirame verde, ardendo-se tudo em chamas. Fumaça escura, pesada, estufa aqui e acolá nas paredes ainda frescas. Necessário agir rápido, perigosa a chama vir a furo e lhe estragar o serviço. Fina argamassa de argila, espécie de cola, é utilizada para o fechamento dos furos. O fogo tem de voltar para o suspiro da fornalha e garantir queima por inteiro, sem pretejar.

Estalos, chiados, pipocos... A lenha é toda brasa viva,. Zito, com um gancho de pau, como se fora uma zagaia, enfia pedaços de lenha na boca vermelha da fornalha. Seiva amarela, fervendo, escorre das pontas cruas dos toros de madeira.

No ar, cheiro bom de milho assado, carne assada, torresmo... É o cheiro que exala  dos tijolos queimando. Baro-de-louça, encarnado, forte; sem mistura, sem areia, sem impurezas. Caprichoso o Zito. Mercadoria sua é de primeira. Ensinamento do velho pai, aleijado, a quem o reumatismo anquilosante invalidou. Uma vida quase toda no barro, na lama, na boca da fornalha.Tivesse a saúde, ainda o velho Malaquias era homem para a madrugada no barreiro, a picareta nos pulsos... E o milheiro mole de tijolos receberia o sol das nove horas.  O quebra-jejum no beiço do barranco e o  outro milheiro até o pino das doze. Pendido o sol, cheio o bucho, mais barro, mais corte, mais um milheiro esparramado no terreiro da olaria quando a tocha de fogo fizesse roda para cair no ocaso. Banhava-se no rio, pitava o seu cigarro, ouvia a sua cantoria à porta de casa pela boquinha da noite. Hoje... Um aleijado, as dores comendo-lhe o prazer de viver.

De cócoras, a um canto do barreiro, Zito volta a pensar em Ditinha. O perfume que está no ar é o dela; bafo saído de sua boca pura, dentinhos alvos e sãos. Menima-moça, corpinho bem desenhado, peitos estufando a blusa de malha.  Dançou com ela... Aquelas palavras de Galdino Canoeiro, o pai, na cabeça: “Tomara a menina...”

Três coisas para lhe dizer: namorar, noivar e casar. É homem direito, quer compromisso sério. Trabalhar é a sua diversão. Assina o nome, sabe votar. Lê. Não vai deitar-se com as raparigas. Uma vez só deu dinheiro a Zurica e não gostou da experiência.

Mira as mãos calosas, palmas gretadas, unhas encardidas.Acaricia o peito nu. Quisera ter mãos finas, dedos longos... Como os dedos do hippie. O tipo chegou ao Poti Velho faz pouco tempo. Aboletou um dos cantos do salão do Centro Operário e fabrica aneis, pulseiras, brincos e braceletes. Material brilhoso, amarelão, banhado a ouro talvez. Cigarro nas fuças, cabelos longos, pele vermelha, nariz afilado. De onde veio ninguém sabe.

- “Oferecidas!...”

Pensa nas amigas de Ditinha. Estavam lá as três: Jelita, Cissa e Cleonice. Davam risadas e estiravam os braços para o forasteiro colocar as pulseiras. Com aqueles dedos finos, o marmanjo vai por brincos nas orelhas de Ditinha.

- “Pronto! Vai comprar a menina...”

O cheiro do barro queimando tem agora o perfume da fumaça do cigarro do hippie.

Como será isto de fumar maconha?... O Lico Passarinheiro é fumador. Safado o Lico Passarinheiro. Come todas as moas do lugar. Partindo pra cima de Ditinha, vai o que é homem.

“Meto-lhe a faca no bucho!”

Filete de fumaça estufa da tora verde de caneleiro. Seguem-se o assobio e o pipoco como tiro de revólver. Zito não deixará que o Lico Passarinheiro puxeo revólver. Debaixo do grandalhão, com faca no pé do umbigo:

- “Conheça que vai morrer, filho-da-puta!”

Como quem dá bordoadas de misericórdia no inimigo acobardado, Zito com a lança quebra os dentes da fornalha. As brasas grandes são os dentes do Lico Passarinheiro.

 

Dilson Lages Monteiro (1973), nasceu em Barras, PI, e mora em Teresina. Professor de português e teoria da criação, crítico literário, poeta e romancista. Grande  divulgador da literatura. É uma das melhores surpresas nova literatura piauiense. Sua dicção poética tem matriz na imagem com superposição de metáforas, no uso da metonímia e outos tropos. Vai  reinventando recursos além da retórica tradicional, ao lado das criações linguísticas da modernidade. Estilo forte, com a decisão de quem se entranha na realidade e no sonho para encontrar-se.  Obra poética: Hum–Poemas, 1995;  Colmeia de  Concreto,  1997; Os Olhos do Silêncio,  1999;  O Sabor dos Sentidos, 2001;  A Metáfora em Textos Dissertativos, 2001;  O Morro da Casa Grande, 2009, romance. Do famoso site Jornal de Poesia, de Soares Feitosa, eis  um poema marcante do seu estilo:

 

               O galope das estrelas

 

Meus olhos tocam o campo
onde cavalgamos sonhos.

Ouço o mugido do gado
preservando o encanto da noite
e galopamos na tangente do açude
onde o céu se oferece para contemplação.

A madrugada corre ensandecida.
Minhas mãos alcançam as alturas
e degusto o oásis do sertão
onde cavalgamos sonhos.

William Melo Soares (1953), nasceu  em Alto Longá – PI, mora em Teresina. Poeta lírico, espontâneo.  Adere algumas técnicas que a modernidade conquistou, sem perder a simplicidade - aquela que alcançam os letristas da música popular – aspecto nada estranho a uma boa parte dos poetas piauienses. Obras: Ponta de Rua,1978 (obra coletiva);  Roendo os Ossos do Ofício, Com Licença da Palavra, 1987; Passo a Pássaro (coautoria com Graça Vilhena), 1992. Foi incluído na antologia A Poesia Piauiense no Século XX, 1995, de Assis Brasil, onde se lê, entre outros, o  poema  

 

Assim aceso  

 

eu vivo assim

de corpo e alma

peito aberto

aos meus irmãos.

 

esta canção

eu canto

e digo em viva voz

por mim

por ti

por nós  

e esta chama

acesa assanha

amor dentro de nós.           

 

Socorro Abreu (1967), nasceu  em Teresina.  Romancista e ensaísta,  é formada em Filosofia pela UFPI e em Letras pela UESPI. Em 2001, ganhou o 2º lugar no Concurso de Romance, promovido pelo Governto do Estado/Fundação Cultural do Piauí, com  Raínha sem Reinado, editado em 2005.  Mas estréia foi com o romance Regresso,  Editora Zodíaco, Teresina, 1997, obra que ganhou  elogios do escritor Magalhães da Costa, comparando-a com O.G. Rego de Carvalho. O terceiro romance, ainda  inédito, Destinos em Confronto, está no prelo, numa editora da Suiça. O texto a seguir é início do primeiro capítulo do seu inédito.

 

Já desapareciam os últimos raios do sol quando Berenice saiu da casa de sua irmã Laura, onde passava os dias. Pela manhã auxiliava os três sobrinhos nas tarefas escolares, à tarde ia ao colégio e somente à noite retornava para a casa dos pais. O caminho que separava as duas residências não era longo e ela aproveitava esse tempo que estava longe das atenções dos familiares para coordenar os pensamentos, já que estes a perturbavam tanto ultimamente.

O espetáculo que o sol proporcionava ao entardecer deixava-a angustiada e oprimida, e se lhe perguntassem a razão, não saberia explicar. Não conseguia nem mesmo entender o porquê de tudo aquilo; aliás, como muitos outros porquês que estavam presentes em sua vida e ela não encontrava uma única resposta, sequer, que a satisfizesse ou mesmo que esclarecesse seu pequeno mundo tumultuado.

Durante a pequena caminhada, as imagens da infância se faziam presentes transportando-a para os seus primeiros anos de vida na tentativa de buscar a origem do enredo no qual estava engalfinhada.

Nascera em uma província, lugar pequeno, onde todos sabiam da vida de um, e um sabia da vida de todos. O lugarejo era dividido praticamente entre os parentes, excluindo apenas uns poucos arrendatários, o que formava assim uma só família.

Nessa comunidade se destacava um enorme jequitibá que ficava às margens da rua principal, era tido como árvore símbolo do lugar. Ao longe as palmeiras dos buritizais erguiam-se majestosas contracenando com um azul límpido que era visto quase que constante. As ruas estreitas se faziam notar por toda parte e as casas quase todas respeitavam antigas construções. Os membros mais antigos detinham todas as decisões importantes e bem poucos podiam fugir do que era estabelecido. Foi em meio a essa grande família que a pequena Berenice nasceu, cresceu e se tornou adulta antes mesmo de chegar à adolescência. Era uma criança tímida, calada e reservada no meio de seus cinco irmãos, onde o carinho e a atenção dos pais quase não existiam e eram disputados sutilmente para não demonstrar sinal de fraqueza. Apenas o trabalho era o que todos aprendiam desde pequenos, os sentimentos pareciam não existir, e nem mesmo eram questionados. Pensamentos que denotassem afetividade não passavam por aquelas sete cabeças. E foi assim que Berenice aprendeu que o único sentido dado à vida, era o trabalho e como precisava de muita atenção para assimilar o trabalho doméstico que a mãe explicava uma única vez, Berenice teve que aprender a desenvolver com rapidez a inteligência. Com isso passou a ser observadora e atenciosa.    Aprendia rápido, mas nem por isso recebia algum elogio da mãe. 

Só havia uma coisa que temia: os estranhos. E quando acontecia de alguns aparecerem à sua casa, ela corria a se esconder, para logo depois ser caçada e exibida como se fosse um animal raro para logo depois ser caçada e exibida como se fosse um animal raro em extinção. Ainda conseguia se lembrar da sensação desagradável que sentia quando ficava exposta a olhares penetrantes e avaliadores que lentamente iam despindo-a, enquanto os seus eram baixados por vergonha e pudor. Nunca encontrou uma razão que justificasse porque a olhavam com tanto interesse e constância, mas sabia que não era apenas por seus dotes físicos. E apesar de todo o desconforto a que era submetida, nunca reclamou, permitia que a avaliassem e julgassem em qualificativos que nunca soube quais eram. E foi com esse seu silêncio que muito aprendeu e assim passou a conhecer cada membro dentro da sua enorme família.

Dos inúmeros parentes que tinha, a todos tratava com respeito e obediência e dos muitos a quem chamava tio, nem mesmo sabia o porquê, apenas fora acostumada assim, tornando-se um hábito entre eles. Mas dentre esses, apenas um lhe prendia mais atenção: era seu tio Albena. Com a pouca idade que tinha, não conseguia entender a dimensão desse parentesco, como também não compreendia porque gostava mais dele que dos demais. Não sabia por que ele não frequentava sua casa como os outros irmãos dele faziam; não alcançava o porquê daquela atenção singular e silenciosa que ele parecia lhe dirigir à distância; não sabia o motivo do nome dele ser quase que proibido dentro da sua casa; não conseguia entender por que os pais dela pareciam detestá-lo... E assim eram tantos porquês que a pequena Berenice se perdia sem respostas.

O que sentia em relação ao seu tio Albena, fugia-lhe a razão, mas como que em um pressentimento entendia que era melhor não participar a ninguém, o que não era difícil fazer, já que pouco conversava e poucos lhe dirigiam a palavra e, demais, conhecia também a língua cruel da sua grande família. Quando acontecia de alguém se desviar da rota que eles estabeleciam, a língua agia como um açoite no lombo do infeliz que passava a ser desacreditado para todo o sempre. E assim, eles julgando fazer justiça, atiravam suas vítimas à sarjeta sem uma segunda chance. Ela, não querendo correr esse risco, se fechava cada vez mais com suas dúvidas, sentimentos e interrogações. Era uma criança de forte personalidade, mas vivia ensimesmada.

Das poucas lembranças que tinha da sua infância, as que mais lhe agradavam eram os dias de domingo quando Albena aparecia no povoado, já que durante a semana ele trabalhava na cidade. Não compreendia o que ele fazia, mas sabia que estava ligado à política, o que também ainda não conseguia entender, mas suspeitava ser esse um dos motivos da rivalidade entre seus pais e ele.

 

Marcos Freitas (1963), nascido em Teresina. Poeta e contista. Engenheiro civil, professor univesitário. Membro da Associação Nacional dos Escritores (ANE).  Participou de várias antologias de poemas e contos, ganhou concursos literários na área e também como ensaista. Mora em Brasília. Estreou com A Vida Sente a si Mesma, 2003. O poema Aflorações, que saiu em O Livro na Rua - 44, sem data, bem representa seu fazer poético:

 

fuga de corrente?

quem sabe

meu coração

não tem voltímetro

 

subito?

quem sabe

meu trapézio

não tem lona

 

chuva de maio?

quem sabe

meu querer

não tem ensaio

 

desvario?

quem sabe

   minha calçada

   não tem meio-fio.             

         

          Lara Larissa (1985),cujo nome completo é Lara Larissa de Araújo Lima, nasceu Teresina, PI, mas residiu em várias cidades do interior, em virtude de ser filha de  Juiz de Direito. Desde cedo, no Colégio D. Bosco, onde fez o Fundamental, mostrou grande inclinação para as letras, tendo publicado seu primeiro livro, Primeiros Contos de Lara, em 1994. Entrou para a Universidade aos 16 anos e foi aprovada em dois cursos: Direito e Jornalismo. Em 2004, lança A Terra dos Sonhos Mortos, romance que o médico e crítico literário  Humberto Guimarães, da Academia Piauiense de Letras louvou, apontando a escritora como revelação: O estilo singelo como o de Saint-Exupéry em o “Pequeno Príncipe”, como o de Maurice Druon em “O Menino do Dedo Verde”, como o de Richard Bach em “Fernão Capelo Gaivota” e “Longe é um lugar que não existe”, segue, como esses autores, um fio condutor de idéias positivas, porém bem mais objetivas, saindo do pessoal da auto-ajuda para o social na perspectiva histórica renovável” . Lara Larissa é um fenômeno literário, na prosa, comparado ao de Raquel de Queiroz.       

                    

Outros autores desta geração que marcam presença, com livros individuais e participações coletivas, por isto o seu registro, embora resumidamente:  Carvalho Neto, Élio Ferreira e Zózimo Tavares:

 

Carvalho Neto (1944), nome literário de João Ribeiro Carvalho Neto. Nasceu  em Amarante – PI.  Formado em Odontologia pela Univesidade Federal do Ceará.  Poeta e dentista. Publicou Variantes do Berro, 1978; e Arquitetura do Ser, 1982. Participou da antologia Mão Dupla (poetas do Piauí e Ceará), 1994. Poesia com acento popular e, de certa forma, aproximada do tropicalismo de Torquato Neto.

 

Élio Ferreira de Sousa  (1956), natural de Floriano – PI. Poeta  e professor de Literatura, ensaísta. Segundo Ronaldo Alves Mousinho, “Élio Ferreira joga com as palavras num sigular malabarismo de efeitos polifônicos e cênicos”. Produz pouco, mas com muita criatividade. Seu estilo é singulariza-se quando joga contra as diferenças sociais, sem contudo descuidar-se do lado subjetivo humanizador.  Obras:  Canto sem Viola, 1983; Poemartelo, 1986;  O Contra-Lei, 1994; e  Né Preto, 1988 (em parceria). 

 

Zózimo Tavares (1962), nascido em Novo Oriente – CE. Entretanto  declara que sua cidade afetiva é Água Branca – PI, onde fez seus primeiros estudos e viveu parte da meninice e adolescencia. Jornalista, cronista, poeta da linha popular, filho do repentista João Tavares, cearense de Novo Oriente. Licenciado em Letras e pós-graduado em Comunicação, pela Universidade Federal do Piauí, onde também é professor. Experiência em rádio, jornal e televisão, presidiu o Sindicato dos Jornalistas do Piauí.  Foi correspondente do Correio Braziliense e Secretário de Comunicação de Teresina, em três administrações. Membro da Academia Piauiense de Letras e editor-chefe do Diário do Povo, de Teresina. Obras: Vote Lá que eu Voto Cá, 1986; Pra seu Governo, 1991; Sonetos dos Cantadores, 1996;  Sociedade dos  Poetas Trágicos, 2004, entre muitas outros, a maioria de crônicas humorísticas. 

 

                                             TEATRO

 

Presença destacada, tanto em publicações quanto em apresentações teatrais, são Aci Campelo (1955),  Wellington Sampaio (1959) e Afonso Lima (1954). O três autores publicaram importantes peças no livro A Nova Dramaturgia Piauiense, da Fundação Cultural Monsenhor Chaves, Teresina, 1989. 

 

Aci Campelo (Francisco Aci Gomes Campelo) nasceu em Lagoa da Pedra-MA. Formado em Eucação Artística – Artes Cênicas, membro do Conselho Estadual de Cultura, Diretor do Teatro “4 de Setembro”, entre outros cargos que exerceu. Obra: História do Teatro Piauiense (1858-200), Companhia Editora do Piauí, Teresina, 2001; e Teatro de Aci Campelo, 2004 (contendo Tiradentes - Ópera da Liberdade, Auto da Estrela Guia e Batalha do Jenipapo).  Escreveu muitas outras peças. “Segundo o poeta Chico Castro, Aci é, sem dúvida, o melhor autor teatral piauiense dos anos 70” (l970)

 

Wellington Sampaio (nome completo: Wellington da Silva Sampaio) nasceu  em Teresina.  Ator, diretor, dramaturgo, cronista, funcionário da Fundação Cultural Mons. Chaves. Classificado no V Concurso de Dramaturgia  “Jônatas Batista”, com a peça A Dança do Boi Estrela, publicada em suplemento da revista Presença. Outras obras: A Fábula de um Sonho sem História, 1989; A Vida do Sertanejo; e Chapeuzinho Vermelho em Tempos Espertos e muitas outras. Dirigiu o grupo de teatro Biboca. Participou do livro de crônias org. por Adrião Neto – Crônicas de Sempre, 1995.

 

Afonso Lima (José Afonso de Araújo Lima), natural de Campo Maior –PI, formado em Direito e em História. Publicou Opressão (poemas e outros textos), 1977;  Itararé – a República dos Desvalidos, 1989;  e A Cidade em Chamas (poema trágico de um crime impune), 2010, sobre o qual Aci Campelo escreveu:  “Afonso nos faz sair das trevas e do medo de conhecer nossa história, para podermos descobrir nossa identidade. Meu coração exultou de alegria em ter lido tão belo escrito”.

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ÍNDICE DE TÓPICOS

  SUMÁRIO Prefácio     TEORIA     O que é literatura,  Literatura piauiense,  Literatura e história literária,  Momentos determinantes...