VI
ANTOLOGIA
DA CRÍTICA
Artigos e ensaios
«A história literária e a crítica marcham passo a
passo na interpretação da Literatura. As duas disciplinas não podem existir
separadas, nem muito menos divorciadas e opostas.»
Afrânio
Coutinho
O. G. REGO DE CARVALHO
INTROSPECÇÃO E
POESIA
Vidal de Freitas
Poeta,
critico,, autor do livro “ Contradição”, 1946.
Magistrado e professor, membro da
Academia Piauense
de Letras.
Quando O. G. Rego de Carvalho estreou como
romancistas com Ulisses entre o Amor e a Morte
procurei-o imediatamente para congratular-me, como piauiense e, ainda
mais, como oeirense, com o surgimento de um ficcionista que iria ser, no sentido
mais decisivo, o maior romancista do Piauí, um dos maiores do Brasil.
E assim entendia, frisei-lhe, porque via nele
um subjetivisa, um introspectivo, como tão raramente tem aparecido em nosso
país. Pois que é bem sabido que o grande
tema do romancista é o desajustamento da personalidade ao meio, sendo o seu
ponto de vista antes o da personalidade, que o do meio. Como bem o sugeriu Gilberto Freyre, assim vem
sendo nas obras de ficção desde O Asno
de Ouro à Tempestade, ou desde
Alain René Le Sage (Gil Blas ou O Diabo Coxo),
entre franceses, ao irlandês James Joyce (Ulysses
ou Finnegan’s Wake). Mas os nossos
ficcionistas, principalmente romancistas,
são objetivistas, como então acentuei a O. G. Rego de Carvalho, de tal
maneira que aquelas obras têm mais de reportagem, de estudo sociológico e mesmo
de tese política ou ideológica, ignorados os aspectos humanos da personalidade.
Daí o poder de apresentar a realidade de modo
tão completo, como se nota, lendo Maouel Antônio de Almeida ou Júlio Riberio; Alencar ou Mário
Palmério. A gente assiste, como se estivesse presente, e com os arrepios de
quem o estivesse, à surra no escravo, ou à luta com a onça; à invasão de Antônio Silvino, no Engenho do Coronel Lula
de Holanda, ou o estouro da boiada, aliás, de um jurista, ou de um sociólogo.
E isto explica muito bem porque nossa literatura
jamais produziu um tipo universal, enquanto que, em outras,
mesmo um só autor tem criado mais de um tipo, verdadeiros seres imortais,
como o fez Shakespeare ou o fez Cervantes,
ficcionistas inegavelmente subjetivistas.
Quanto se não teria que dizer sobre tão
interessante assunto! Porém o que se quer observar aqui é que, subjetivista
como quem mais o for no Brasil, mesmo comparado com Machado de Assis e
Graciliano Ramos e Amando Fontes e Raul Pompeia qualquer raro outro, O. G Rego é
também poeta no sentido mais objetivo, assim no fundo como e principalmente na
forma. Pois, para considerar somente seu Rio
Subterrâneo, há nele versos de dez sílabas, ou sejam versos heroicos, a
ponto de constituírem quartetos como este: (A Fumaça):
dança
ao sopro do vento, e traz até
o
corredor o cheiro de resinas,
essências e perfumes da floresta
distante
que a madeira inda conserva...
Naturalmente não cogita de rima, pois que isto
é poesia espontânea, natural, que O. G. escreve sem nem sequer em tal pensar.
Não é como acontecia com Humberto de Campos, que escrevia prosa
premeditadamente adstrita ao metro, ao ritmo e à rima, embora não o parecesse à
primeira vista, como aquela crônica a respeito de Camões, toda composta em redondilhas ou
naquela sobre Hindemburgo, inteiramente em versos heróicos os mais burilados.
E ainda temos tercetos como os seguintes:
Já me
sentia tua namorada,
Tu, o
primeiro amor de minha vida
E
agora tu me beijas; sou feliz;
Os
oitizeiros já não se alinhavam
formando
um túnel. Respirou o alento
do
rio, que reboava adiante, oculto...
Sair
de Oeiras, que a esperava além?
Que lhe
reservaria Teresina,
grande
e inóspita? Quem lá conhecia...
Qual, minha filha! Esse rapaz termina
é adoecendo. Nele qualquer coisa
misteriosa me inspira um sentimento...
E assim, por todo o livro. Também pares de
versos às dezenas, como:
O
quitandeiro a custo reacendeu a
estearina:
os fósforo estava úmido...
restituindo-lhe
a serenidade que
perdera,
ao sentir-se sob a chuva...
Outros
instantes desce para o rio
e se
põe a mirá-lo sem um gesto.
Vendo-os,
Lucínio se arrepia todo,
e
continua presa de ansiedade
Pelas
recordações da avó de Helena,
prisioneira
de si e do sobrado.
Gostava
de sentir os seios dela
em suas
mãos: carne macia e tépida
O
rosto na penumbra era belíssimo:
tinha
uma suavidade que o encantou.
um
rabinho se move com vagar,
à procura
do sol para aquecer-se
Pois seria um nunca acabar invocar todos. Bem como os decassílabos isolados,
como estes. Sendo que ao todo cheguei a contar cerca de oitocentos por todo o
romance:
Muitas
vezes detendo-se ante a alcova
fosse
causa de novos sofrimentos
não
me odeia. Bom, é louco por mim.
Sua
irmã tinha o corpo adolescente.
Lucínio
estremeceu só em pensar
A tortura
das noites agitadas
perguntando-lhe
se era infeliz a
ele que também era infeliz.
Qual! A noite inteirinha vai chover.
E o rio
engrossa como em vinte e seis.
Bem. A copiar apenas os
versos mais expressivos e bonitos, seria quase copiar o livro inteiro.
Ora, M. Cavalcanti Proença,
prefaciando uma das edições do grande livro de Euclides da Cunha, escreve
parênteses para mostrar ao leitor um
traço característico de estudo euclidiano: o ritmo: “Longos dias amargos dos vaqueiros
é um decassílabo perfeito, com cesura da sexta sílaba. Versos como este são intocáveis em Os Sertões, abrindo ou encerrando períodos. Daí a impressão de
poema épico que nos transmitem certos trechos”.
E é o que acontece e tão
copiosamente com o nosso romancista, de tal maneira que será sempre com desvanecimento que o lê todo piauiense, e
com justificado orgulho, todos quantos nascemos na querida Oeiras.
Jornal O Cometa, Oeiras – PI, agosto/1971.
REGINALDO MIRANDA
A HISTÓRIA É O ROMANCE QUE FOI...
Oton Lustosa
Magistrado, romancista e contista.
Ainda nas primeiras letras do velho primário, ouvíamos
falar de Domingos Jorge Velho e de Domingos Afonso Mafrense, os dois
colonizadores, merecedores de todas honras da História por terem colocado no
mapa do Brasil o Estado do Piauí, com esta sua estatura meio que ajoelhada, de
barriga grande e cabeça pequena. Mas os livros de estudos sociais, de geografia
e de história do Brasil não davam os detalhes. Vale dizer, não retratavam o
modus operandi de como se dera tal façanha heróica. Custava pouco pronunciar
esta verdade : o povoamento do Piauí se deu a ferro e fogo! A propósito,
para dar lugar às caiçaras do gado curraleiro, dizimaram-se todas as criaturas
humanas habitantes destes sertões cortados por serras e rios, campos, caatingas
e cerrados.
Mas, por que, mais tarde, já adultos e instruídos,
viemos a saber de tudo isso? Porque existem os historiadores, que escrevem
a História. E a história retrata a verdade? Anatole France, escritor
francês, famoso por seu ceticismo exagerado, chega a questionar: “Existe uma
história imparcial? E que é a história? A representação escrita dos
acontecimentos passados. Mas que é um acontecimento? é um fato qualquer? Não! é
um fato notável. Pois bem, como é que o historiador decide se um fato é notável
ou não? Decide-o arbitrariamente, segundo seu gosto e seu caráter, segundo sua
idéia, como um artista, enfim. Pois os fatos não se dividem por si sós em fatos
históricos e não-históricos.”
Bem. Isto de questionar se a história retrata ou não a
verdade é tema que vai longe. O melhor que devemos fazer é raciocinar
singelamente como um tal de Pierre Daninos, citado no Dicionário de Paulo
Rónai: Diz ele: “São os fatos do dia que fazem a história, mas são os
ditos do dia seguinte que a escrevem.”
O nosso Estado, que vem dos idos de 1662, no dia de
hoje, quando se lança o livro Piauí em Foco, é passado em revista por um historiador
neófito, mas com o gabarito de um expert, escrevendo a história que os fatos
fizeram
Nesta manhã, Reginaldo Miranda lança o seu mais
recente livro: Piauí em Foco, uma
coletânea de crônicas jornalísticas que contemplam os mais variados assuntos.
Por sua determinação de historiador, já com algumas
obras publicadas, tais como: Bertolínia:
meio e homens; Aldeamento dos
Acoroás; e uma terceira — São
Gonçalo da Regeneração —, em fase de preparo. Esta última virá acrescer à
historiografia do Piauí e fazer justiça ao município de Regeneração que, embora
como entidade municipal só tenha alcançado emancipação política a partir de
1931, é de 26 de setembro de 1772 que data a sua fundação, com o aldeamento dos
índios Acoroás, no manancial das nascentes do riacho dos Cocos, formador do rio
Mulato, afluente do Parnaíba.
Este livro Piauí
em Foco é fonte de inspiração para um ficcionista! Talvez por seu
conteúdo histórico. A propósito, alguém, lá da França iluminista, já bradou: “A história é o romance que foi... O romance
é a história que poderia ter sido.”
Inspiração não faltaria a um ficcionista ao mentalizar as brutalidades
perpetradas por um Francisco Dias d’Ávila (segundo) que, não obstante lhe
corresse nas veias o sangue da velha índia Paraguaçu, matava esses seus
parentes índios como quem matava insetos; para atender às suas ambições
pessoais de latifundiário-mor e, também, para atender ao abastecimento de carne
aos exércitos governistas do litoral que lutavam contra invasores franceses e
holandeses. Realmente, daria um enredo tragicamente fascinante! Senão
vejamos: aqui, nos sertões de dentro — do rio Salitre, em Sergipe, a esta banda
do rio Parnaíba —, nos pastos bons das nações Pimenteiras, Jaicós, Timbiras,
Acoroás, Guegueses e muitas outras, um descendente da índia Paraguaçu matava
índios para criar bois; e, ao mesmo tempo, matava bois para alimentar exércitos
formados por índios, negros e brancos! E como a guerra faz enriquecer a
alguns poucos, Francisco Dias d’Ávila(segundo) fez-se dono do Brasil setentrional!
Os franceses se foram... Os holandeses se foram... E tudo se deva
aos currais e à cozinha da Casa da Torre de Tatuapara! Que exércitos,
como sacos, de barrigas vazias não se põem de pé! E assim se escreve a história
do Brasil e do Piauí. Ou seria o romance
Bem. A história é o romance que foi... O romance é a
história que poderia ter sido. Um bom romance não dispensa conflitos. Aliás, um
romance só se faz com conflitos, e estes se fazem com fome e fartura, pobreza e
riqueza, vida e morte, a cruz e a espada, o divino e o profano, o amor e o
ódio, a verdade e a mentira, Deus e o Diabo.
Reginaldo Miranda, jovem advogado bem-sucedido, literato
de qualidade, historiador vocacionado, parece-me que de propósito, com este seu
novo livro Piauí em Foco, vem
cutucar inspirações adormecidas de muitos romancistas por aí ou por aqui. Com
estas suas crônicas de conteúdo lítero-histórico-político, vem mexer com este
nosso Piauí velho, feito de piauiguaras, miridans, barbas-ruivas,
cabeça-de-cuia e outros bichos do outro mundo; de Mandu Ladino, João Marcelino
e Cacique Bruenque, valorosos homens tidos como bichos — neste mundo-cão
mafrensino, de vacas de pé duro, vaqueiros de gibão, agregados de enxada e
facão, pangarés suarentos e cachorrada latideira; de João do Rego Castelo
Branco, Zezé Leão e outros coronéis facionorosos! Velho Piauí rico!... de Bernardo
Gago, com suas curraleiras malabares... e de Lourival Parente, com seu gado
pé-mole, raça de gigantes clonados!... de Leonardo das Dores, o
político/poeta/guerreiro/inventor e de Alberto Silva, o simples engenheiro, que
por acaso é político!... de Simplição da Parnaíba, com seus escravos cantores e
o seu porto salgado; e de João Claudino, com o seu povão calorento de Teresina
e os salões refrigerados do seu Shopping Center!
Piauí!... da musa e da saudade e do protesto!...
de Licurgo de Paiva, de Da Costa e Silva e de H. Dobal!
Inspirações assim nos batem ao ler este novo livro de
Reginaldo Miranda — Piauí
Publicada no famoso “site” Jornal
de Poesia, do escritor Soares Feitosa.
UM SONETO DE H. DOBAL
M.
Paulo Nunes
Professor, crítico literário e cronista
Já me referi, mais de
uma vez, às duas vertentes mais fortes da poesia de H. Dobal, a lírica e a
elegíaca, que se radicam assim nas origens da poesia em língua portuguesa,
segundo o julgamento de Dom Miguel de
Unamuno, num belo livro de ensaios – Por Tierras de Portugal y de España. Segundo
o mestre de Salamanca, Portugal parece a pátria dos amores tristes e dos
grandes naufrágios. A essas duas vertentes, acrescentarei ainda em Dobal uma
terceira, a satírica e a mordaz, presente em seu livro de motivos piauienses A Serra das Confusões, e que vem igualmente
das origens mais remotas daquela poesia, ou seja, das cantigas de escárnio e
maldizer, da escola provençal ou do chamado lirismo trovadoresco. Nosso poeta
aí estaria também em boa companhia, qual seja a de Bocage, a do nosso Gregório
de Matos, o ‘boca do inferno”, a do poeta popular Domingos Caldas Barbosa e a
da prosa de Eça e de Machado de Assis, esta temperada pelo humorismo inglês à
Swift e à Stern.
A nota elegíaca vem
sendo a mais constante na poesia desse aedo, para expressar, numa palavra
antiga, a altitude desse grande poeta. É ela que está presente em grandes
poemas como Campo Maior, O rio
Meu rio Parnaíba feito de lembranças
não corre mais entre barrancos.
É
um fio na memória um rio esgotado
no
recreio de muitas manhãs,
rio
risco rio tatuado
na
deriva de um dia perene.
Este sentimento elegíaco está sobretudo
presente em grandes poemas de nossa língua, como “Leonardo” e “El Matador”, no
primeiro, revivendo a saga do herói e no outro a dor do fero
carniceiro matador de índios João do Rego Castelo Branco. Está ele presente sobretudo
em seus livros elegíacos A Cidade
Substituída, a bela evocação de São Luís do Maranhão, como nenhum poeta daquela terra foi capaz de
fazer, e em seu último livro publicado
Os Signos & as Siglas, um livro amargo sobre Brasília, uma daquelas fotografias
doloridas na parede do poema de Drummond sobre a sua doce Itabira.
Mas se é forte, como
vimos, a presença do elegíaco, a do lírico reponta, vez por outra, sobretudo em sonetos admiráveis como “Os
Amantes” e neste que vamos transcrever no final desta nota para fruição dos
leitores. Embora inédito e recém descoberto pelo escritor Cinéas Santos, e
feito ainda na juventude a propósito de um concurso de poesia, tendo como fecho
o mote de um soneto de Guilherme de Almeida, nele o sentimento lírico é expresso
de modo mais perfeito e mais belo. Não obstante proclamar o poeta em conversa,
vez por outra, que esta história de amor é com os outros, não com ele, ninguém
tenha talvez melhor traduzido o encanto, a magia e a solidão dos namorados como
ele neste soneto. Vale o soneto como lição, no meio da versalhada de mau gosto
que vem aparecendo ultimamente:
Os namorados
Esta elegia para os namorados
que
andam em silêncio pela praça morta,
de
passo leve, incerto como o sonho
a
que se entregam solitariamente,
é triste e breve como os namorados
e o seu amor da adolescência. Morta
toda
a ternura ficará e o sonho
também
surgindo solitariamente
que
este silêncio vence os namorados,
como
um aviso fúnebre e fatal,
aparecendo
em meio a seus carinhos,
lembrando
amor e sonho abandonados
e
o riso frágil, rápido, irreal:
“tanto
mais juntos quanto mais sozinhos”.
Publicado
no jornal O Dia, 1º/2 de
maio de 1994.
CHICO MIGUEL
AS DIVERSAS TONALIDADES DO EU
Murilo Moreira Veras
Poeta e
crítico literário
Será a poesia apenas a
concretização do mundo num verdadeiro culto à plenitude das coisas e dos
objetos, de tal ordem sob tão forte tensão emocional que coloca o eu/sujeito em
função permanente com o objeto, vulgarizando o ser como centro do universo?
Bem, essa parece ter sido a filosofia que vincou os chamados “concretistas”,
quando se fizeram súditos do reinado do real,
Hoje, exatamente no novo
tempo onde o que mais sucede ainda é o inesperado, a perplexidade das mudanças,
numa época do reinado absoluto das comunicações, muitas vezes sobrepostas à
razão, e, por isso mesmo, de ideologização do absurdo, a poesia perde, de certo
modo, suas características realísticas e surrealísticas, e já superou o mundo
do concreto, para alinhar-se também ao lado da mídia, não como o único fim
escatológico supremo de preservação do ser/objeto, mas como meio válido de que se vale o
eu-poético para manifestar as reflexões e irreflexões sobre o mundo/objeto e se
afirmar como uma crítica poemática do próprio ser no e para o mundo.
Creio que é sobre esse principal
eixo que gira e vem-se polarizando a poesia, ou a “nova poesia nova” do piauiense Francisco
Miguel de Moura. Se não em toda a sua obra – já considerável em seus seis
livros publicados a partir de 1966, com Areias
– pelo menos é o que se vislumbra neste Poemas
Ou/tonais, edição de 1991, da Gráfica e Editora Júnior Ltda., Teresina –
PI.
Composto de três partes, Poemas Ou/tonais, do autor de Linguagem e Comunicação e de Pedra em Sobressalto, se propõe estabelecer
o diálogo poemático do eu-manifesto com a (ir)realidade do mundo cotidiano. No
primeiro momento desse tempo tríptico em que se divide o “corpus” lírico,
prevalece a temática do amor/paixão, espécie de introdução, em que o poeta
verbaliza seu canto numa fragmentação eminentemente subjetiva. No segundo, espécie de contraponto ou cântico
do eu-rarefeito, erige-se uma estrutura, não de diálogo, mas de monólogo de
eiva silogística onde as “premissas” e a própria conclusão se confundem
dialeticamente em função do estilo proposicional e metafórico, de seu (con)
texto disjuntivo – Ou. Em terceiro estágio sincrônico, os Tonais dão os tons, expõem as
tonalidades, e a tessitura poemática converte-se num... “caminho para dentro
até o fundo/ como quem caminha ao sol-posto”,
labirinto de idéias, vazões e sentimentos que fazem do eu poético um
espelho por onde reflete seu mundo de sofrência interior e os resultados de sua
vivência, sob a égide do refulgir lírico e o crivo literário da escritura
alegórica. Reside aí o cerne do cântico trifásico da construção original de Francisco
Miguel de Moura, com seu depoimento crítico, como o resultado de sua
(ir)reflexão.
Acresça-se a tudo isso, o
tratamento propedêutico estritamente literário que Francisco Miguel de Moura dá
ao corpo verbal dos poemas, onde sobressaem a imagem, o tropo, a virtuosidade
do signo e o depuramento lingüístico.
No resto, é a policromia de
que se traveste a poética do autor de Universo das Águas e Quinteto
em mi (m), neste seu último exemplário lírico. E diz o poeta logo no início:
“trovão
trama de luz
caminho aberto
à
chuva breve
de lembrança (a)mar...”
Pois o poeta vai urdir, doravante, a
trama do amor/paixão e pede:
“mister amor,
um momento, please!
em meu favor
vazio...
plenitude é um pouquinho de nada
o dia fugindo dentro
da noite
e as paredes brancas
de cio.”
E o segredo de sua paixão eólica se
revela em:
“amar sem dizer-te
ouvir sem falar-te
andar sem encontrar-te
sumir...”
Já em silogística disjuntiva, o
poeta filosofa
“eu sou o diferente
tu és a indiferença
não nos
encontraremos a fio...”
Sim,
porque
“um infinito flui”.
descartável
entre a água e o navio.”
Por final, na consumação do
tempo poético (e mágico?) que estruturou nos seus “Tonais”, Francisco Miguel de Moura reverbera:
de repente
se arma um parêntese
entre o que quero e mereço
e o dia me despede
de todos os desejos
de repente sou
o afogado que morre de sede.”
E a conclusão maior a que se
chega desse diálogo/oblação/reflexão, é o poemeto que enfeixa a “trama de luz
que nos urdiu o autor de Sonetos da Paixão:
“minha busca em palavra
lavra meu
ser
- agrava.
meu fazer em poema
escreve meu ser
- problema.
minha vida em poesia
vence meu ser
- adia.
mordo a metáfora de cada
dia.”
Ensaio publicado na revista Lavra, nº 7, em 1992 – Brasília-DF)
SUICÍDIO DO TEMPO, DE HARDI FILHO
Alcenor Candeira Filho
Professor
universitário, poeta e crítico
A)
INTRODUÇÃO
É
com muita honra que cumpro neste instante a missão de apresentar o livro – Suicídio do Tempo - , do poeta e amigo
Hardi Filho.
Por causa dos maus versos que circulam
por aí, alguns imaginam ser a poesia um gênero secundário. Mas os fatos mostram
exatamente o contrário, quando se trata da verdadeira poesia, da poesia que
está presente, em todos os séculos, na identificação dos maiores monumentos
literários da humanidade.
As primeiras manifestações
literárias de que se têm notícia apresentavam linguagem ritmada e poética.
A Literatura Brasileira
foi iniciada através da poesia do Padre José de Anchieta. A poesia predominou
tranquilamente no país até o início do século XIX. Até então não havia, entre
nós, a prosa de ficção, inaugurada e consolidada somente em meados do século passado,
através das novelas e romances de padrão romântico. Mesmo quando se fala de
prosa de ficção - romance, novela, conto - nunca se deve esquecer de que muitas
páginas dessas obras estão impregnadas da mais cristalina poesia, batizada
pelos teóricos de prosa poética ou de poema em prosa.
No Brasil, a maioria das
escolas literária foram iniciadas com
obras poéticas: Pré-Barroquismo (Padre José de Anchieta), Barroquismo (Bento
Teixeira Pinto e Gregório de Matos), Arcadismo (Cláudio Manuel da Costa), Romantismo
(Gonçalves de Magalhães), Parnasianismo (Alberto de Oliveira, Raimundo Correia
e Olavo Bilac), Simbolismo (Cruz e Sousa). Em algumas dessas estéticas
literárias (Arcadismo, Parnasianismo, Simbolismo) as mais importantes produções
eram escritas em versos: epopéias, odes, madrigais, elegias, sonetos, éclogas,
sátiras, rondós... Raras eram as obras em prosa dotadas de real mérito artístico.
Como situar, nesse contexto,
o Modernismo, escola em que se enquadra o poeta Hardi Filho e o seu livro que
ora apresentamos? Sem dúvida, também no Modernismo têm predominado as manifestações
poéticas. Inclusive nos seus primeiros momentos de existência, quando quase
todas as atividades literárias encontravam na poesia a forma adequada de
expressão.
Implantado o Modernismo
entre nós, em 1922, com a célebre Semana de Arte Moderna, passou-se então a
cultuar largamente o verso livre e a poesia nacionalista, ao tempo em que se
pregava um rompimento com a tradição e com o academicismo.
Os diversos rumos
tomados então pela poesia, constituindo as chamadas correntes do Modernismo
(Pau-Brasil, Verde-Amarelo, Antropofagia) tinham em comum o caráter demolidor
do passado, a que se juntava a pretensão de fazer uma literatura que revelasse
o Brasil: uma literatura que, elaborada nos padrões de uma linguagem nacional,
fosse capaz de explorar a nossa cultura, os nossos costumes, a nossa história,
o nosso folclore, a nossa problemática urbana e regional.
Uma corrente do
Modernismo, entretanto, destoaria das demais - a Corrente Espiritualista ou
Totalista, liderada por Cecília Meireles, Tasso da Silveira, Murilo Araújo,
poetas que, embora tenham aderido à renovação estética proposta pelos modernistas,
não admitiam um rompimento completo com os elos da tradição. Em verdade, os
adeptos dessa corrente, com a qual, no nosso entendimento, Hardi Filho mantém grandes
afinidades (para nós não é mera coincidência o fato de que o verso - «Grande
aula, a do silêncio» - transcrito no início do livro Suicídio do Tempo pertença a Cecília Meireles) pretendiam uma
evolução literária distanciada da ação aventureira, caótica e destruidora do
primeiro modernismo, que, se de um lado produziu muita coisa de valor, de outro
criou coisas ruins em que a piada, os abusos sintáticos e o coloquialismo
emprestavam ao poema um caráter de subliteratura.
B)
Suicídio do Tempo
Feitas as considerações
preliminares, vamos ao que realmente importa: o livro que Hardi Filho está
lançando hoje entre nós: Suicídio do
Tempo.
Trata-se de seu sexto
livro de poemas (a única obra em prosa de sua lavra é um importante ensaio
sobre a poesia de Celso Pinheiro: Poesia
e Dor no Simbolismo de Celso Pinheiro).
Os livros de poesia que
precederam o que ora apresentamos são: - Cinzas
e Orvalhos (1964); Gruta Iluminada (1970); De Desencanto e de Amor (1983); Teoria do Simples (1986); Cantoria
(1986).
A obra que ora temos a
honra de apresentar aos parnaibanos se
compõe de quatro momentos: 1) DO AMOR SILENTE; 2) DO AMOR (IR)REVERENTE; 3) DO
AMOR RESISTENTE; 4) DO AMOR SOBREVIVENTE.
1) DO AMOR SILENTE
Quatro composições
figuram na parte inicial da obra e nelas versos curtos se mesclam com versos
médios e longos.
Os treze blocos de
versos que estão nas primeiras páginas, sob o título de “Silenciário”, dão bem a medida da filiação do autor à
Corrente Espiritualista ou Totalista, influenciada por herdeiros do Simbolismo. E que ninguém
pense tratar-se de poesia passadista. Afinal de contas, é sabido e consabido
que o Simbolismo está mais presente no Modernismo do que qualquer outro estilo
de época.
Nos versos de
SILENCIÁRIO, como, de resto, em quase todo o livro, está evidenciado o desprezo
do poeta pelas coisas materiais, imprimindo no discurso um clima de pura espiritualidade.
Os versos em referência,
trabalhados artisticamente, mas quase sempre livres dos ritmos tradicionais,
reflectem a fugacidade do tempo:
ai
ai silêncios de bruma
ai
tempo caminhador!
Outro exemplo:
até
quando
o imaginado rumo dos dias
com
suas miragens e páginas
à
mercê das ventanias
na
(real?) manhã?
Mais uma amostragem:
toda
a via
é
manhã provisória
é
tarde temporária
é
noite passageira
como madrugadecer
de vida mente?
O título do livro - por
sinal muito expressivo - se justifica plenamente, porque, sem dúvida, como diz
o poeta,
o tempo abastece seu próprio consumo
e a todo momento se suicida.
Embora preocupado diante
da transitoriedade da vida, o poeta nunca se desespera, jamais emite uma
palavra de revolta, jamais se revela pessimista, até porque em nenhum momento
deixa de encantar-se com as belezas do mundo:
feliz
quem luta em anônimo silêncio
contra a brabeza dos dias, e
ultrapassa-os!
- que mais deseja na vida
quem se compraz
com a música dos pássaros?!
2) DO AMOR (IR)REVERENTE
Poeta lírico por
excelência, de forte ressonância interior, dentro aliás da melhor tradição
luso-brasileira, poucos, no Piauí de hoje, cantam melhor que Hardi Filho o
amor. Tomemos como exemplo o início do poema “Andarilho”, o segundo da série -
DO AMOR (IR)REVERENTE:
vocês
aí
que aprendem muitas palavras sábias
saibam
que uma só
simples, dita e seguida
na parceria caminhante dos dias
é bastante
ser
o andarilho da palavra amor!
A cosmovisão do autor
celebra os encantos do mundo, ao tempo em que distingue a fé em Deus como o
único caminho para a salvação:
onde mostrar a fé?
estão abertas
bem ali no ceará
as
estradas e vias
para canindé - vamos a pé!
3) DO AMOR RESISTENTE
Vinte e nove sonetos
integram a terceira parte do livro.
Surgido no século XIII,
desde então sempre se escreveram sonetos. O soneto vem se renovando através dos
séculos, não obstante os limites de seus catorze versos.
Praticamente todos os
grandes poetas escreveram sonetos, e até mesmo aqueles que um dia dele tenham
debochado. No Piauí, qual o bom poeta que não sonetou? Manuel Bandeira dizia que não considerava
poeta quem nunca escreveu um soneto. Eça de Queiroz equiparava um grande soneto
a um grande romance.
Pois o nosso Hardi Filho
é sonetista. Exímio sonetista. Os sonetos que compõem a terceira parte do livro
atestam a veracidade da afirmativa.
Como a esta altura da
conversa impõe-se no máximo a transcrição de um soneto, optamos por “Sabor Eterno”,
não por ser o melhor, que não é, mas por retomar a temática predominante do
livro e que justifica o título - a temática da transitoriedade e do efêmero de
tudo - vinculada à do amor, único meio disponível para se sentir o tempo nos
braços da eternidade:
«O que há-de me marcar a
vida, além
de
algum poema em página amarela,
eu
sei, será o meu amor por ela,
amor
que sinto mais do que convém.
Tudo
no mundo arruina, se esfarela,
acaba,
quebra, esfria, vai e vem,
só
este amor-loucura se mantém
com
ares de vulcão e de procela.
É
tão completo o amor que lhe dedico,
que,
sendo eu pobre e sem sabença, rico
sempre
me sinto o sábio entre os mais sábios.
E sinto mais: eu sinto que é
seu beijo
que
deixa, após calmar o meu desejo,
este
«gosto do eterno» nos meus lábios!»
4) DO AMOR SOBREVIVENTE
Na derradeira parte do
livro continua a postura predominante nas páginas anteriores: a de quem, com
humildade, procura compreender as coisas como elas são, aceitando-as
serenamente, sem queixumes, sem lamúrias. Escutemos alguns lotes do legado do
nosso grande poeta:
deixo
para outros olhos
o céu
- infinito encanto
e o mar - encantado abismo
belezas que namorei.
deixo
para outros pés
a areia dos caminhos
espinhos
e pedras
dos chãos onde pisei.
............................................
deixo
para minha amada
mágoas (de amor) das quais
já estou perdoado
(por amor) eu sei.
deixo também saudade
- penitência sem culpa
a que
lhe condenei.
C)
CONCLUSÃO
Ao longo das 112 páginas
do livro, Hardi Filho, com muita habilidade, lança mão de recursos que enchem
os textos de extraordinária força musical e intensa carga emocional. Poesia se
faz com palavras (a lição, todos sabem, é de Carlos Drummond de Andrade),
palavras pacientemente colhidas no reino do dicionário e dispostas de tal modo
na folha em branco, que passam efetivamente a produzir emoção estética no
leitor.
Em termos de recursos
estilísticos, o encantamento dos versos de Hardi Filho decorre não somente da
harmonia, da cadência, da aliteração, mas também da polifonia. Tudo isto,
aliado às belas imagens usadas pelo poeta, confere a Suicídio do Tempo a condição de excelente livro de poesia.
Um livro que transmite uma
mensagem que faz bem à inteligência e ao coração.
Publicado na Revista
da Academia Piauiense de Letras, nº 50, Teresina, 1992.
HECULANO MORAES: UM POETA TELÚRICO
Pedro Marques
Contista e crítico literário.
O nordeste brasileiro é uma terra calcinada,
seu povo teme a Deus e sonha dentro de um sofrimento constante que vem de
dentro da própria terra e dota a todos daquele ar puro de esperança e
satisfação não satisfeita: sonhos e desilusões, cujo folclore bem traduz a alma
criadora de uma raça que sabe sobreviver à dureza da própria vida e das
circunstâncias locais. Isso seria a nota telúrica capaz de sintetizar uma obra
literária na sua íntima feição lírica e expressiva. Absolutamente, não seria
isto o nosso objetivo primeiro, preferimos partir da poesia e não desta para
aquela.
Conceituar alguns elementos
estéticos encontrados no livro do poeta Herculano Moraes é a obrigação da
crítica especializada a fim de perceber, dentro de um sistema de análise, o íntimo
da expressão em si e o sentido real que ela pode oferecer ao leitor pela sua
forma de conotação variada e intensa. Parte de um paradoxo material onde o povo
serve de
instrumento e a natureza de pano de fundo para a compreensão de um todo, isto
é, um universo incoerente e duro.
O poeta viola, com o propósito de mais sugerir
esse mundo e apanhar na seara da vida os sonhos gerais, a sistemática da
linguagem comum. Usa, negativamente, o seu instrumento linguístico como
compensação. Cria uma metáfora que evolui no sentido de transmitir em tudo que
toca com o dedo mágico de sua imaginação aquela função poética de falar de um
mundo encantado onde a dor e o sonho fazem do homem um objeto da própria
natureza ingrata. Cada verso tem aquele cheiro da terra emanado, é certo, do
espírito social de um povo forte.
Este livro é bom. Essa
afirmação nasce de uma leitura demorada e bem pensada. Obra cujo plano
psicológico tem em cada frase o sentido completo por si mesmo, formando uma
unidade no conjunto geral de sua representação. Essa característica é muito
importante e releva que a crítica a observe com justiça, especialmente partindo
da análise do conteúdo que se multiplica pela síntese refinada de uma forma
delineada no rumo de entender o homem, sem analisá-lo dentro do seu contorno
material e sim na sua mais funda realidade íntima.
A outra parte que se
nota no livro é quanto à sua forma.
Outro conjunto de palavras concretamente solidárias, possuindo uma
conexão no sentido de alcançar o maior campo de entendimento e a maior força de
reativação dos variáveis sentidos a que se pode dotar o verbo poético na sua
unidade gramatical e na sua renovação de significado próprio.
Outra face do livrinho Seca, Enchente, Solidão é a que diz
respeito à fonia da frase. Há música em certos poemas, música essa sempre
retorcida pelo grito de dor que vem da alma coletiva de seu povo. Há entonação de cantiga e cada pausa no ritmo
obedece a uma lógica motivada pela sonoridade do meio e do feitiço telúrico do
poeta.
A frase musicalizada dos
poemas de Herculano Moraes possui dupla definição: encontra-se no seu sentido
verbal que a palavra tem em si mesma; em outro sentido coloca-se na visão
mentalizada do leitor: a conclusão a que se chega, porém, em sentido simbólico.
Dizem os críticos franceses que esse duplo sentido não fica bem em poesia;
discordamos quando à nossa frente temos um poeta purificado pelo ideal do bem
coletivo como é o caso do poeta em causa.
Eis o exemplo:
O destino deste chão está
comigo
está
contigo
está
em nós.
Não podemos fugir para a
distância
nem
parar, feito uma pedra,
na
estrada peregrina.
Na
minha arte,
na
tua arte
cavaremos a trincheira.
E a arma que estiver a nosso alcance
usaremos como a bomba de Hiroshima.
O poema Amar o Mar é uma canção. Carrega-se de musicalidade e o leitor parece ouvir
uma música ao lê-lo, dadas as conotações existentes e já por nós observadas
linhas acima. Cada palavra tem um quê de inconformação que une a verdade da
vida com o sonho mastigado e doído do poeta.
Lemos um poeta muito
grande que hoje dorme para sempre, porém sua mensagem ficou na alma da terra
como a maior expressão de um homem dotado de grande espírito. Ele disse que a
vida era um vento e fez esses versos quase iniludíveis:
Eu sou levado
pelo
vento malvado
que
me transporta
de
cá de lá
semelhante
à
folha
morta.
Verlaine foi um dos maiores poetas da
humanidade. Tinha uma verdadeira obsessão pelo substantivo e nesse sentido o
poeta Herculano melhor o entenderá pela afinidade que existe entre o poeta
francês e o poeta piauiense, pela concepção que ambos têm da vida.
Há uma tristeza
subterrânea nos versos de Herculano Moraes que nos arrasta inapelavelmente a
entender o seu mundo pelo sentimento e não pela compreensão da lógica.
Em 1965, mais ou menos,
li o primeiro livro do poeta, denominado Murmúrios
ao Vento. Época em que vivia em Teresina lendo muito e entregando cartas
nas ruas, como um modesto carteiro dos Correios. Nada escrevi sobre o livro,
pois apesar de muito conhecido nas rodas literárias daquela Capital, me
recolhia a um silêncio constante. Lia e escrevia alguns contos que nunca
cheguei a publicar, alguns deles inclusive premiados em concurso de São Paulo e
Rio. Mesmo assim, tinha comigo um alto senso de autocrítica que me impedia de
divulgá-los. Nessa época, vez por outra divulgava aos domingos alguns artigos
de crítica sobre livros, porém nada disse sobre o livro do poeta, do que, hoje,
me penitencio.
Publicado no Diário
D' Equipe, Cuiabá - MT, 27.08.1977, reproduzido no jornal O Dia.
MAGALHÃES DA COSTA
UM CONTISTA
NOVO
Ozildo
Batista de Barros
Advogado, poeta e cronista
Graciliano Ramos
reconhece a existência de vários buracos na Constituição do Brasil. Mas
contenta-se com um, que consiste exatamente na figura do chefe político – que
não é prevista na Carta Magna do
país. E, no entanto, reconhece Graciliano, ninguém tem mais poder, principalmente
no Nordeste, do que o Chefe Político.
Pois Magalhães da Costa,
que conhece a fundo a Constituição do Brasil e mais a fundo, ainda,
conhece a realidade do Nordeste, não
encontra imagem mais adequada para o desfecho do estupro de uma menor do que um
grande buraco verificado dias mais tarde às margens da rodovia e, por
coincidência, no mesmo lugar em que se praticou o crime. O conto ocupa meia página e mostra, sem dizer,
toda a indiferença da sociedade para com os seus males, a ineficácia da Justiça e, sobretudo, o
grande buraco da Constituição. Mas isso é dito de outra forma, com arte, no
estilo característico do Autor, e só poderá ser comprovado quando a tal
história for publicada.
Se nesse buraco do conto
inédito de Magalhães da Costa tão bem se constata a figura poderosa do Chefe
Político, melhor ainda, se constata a existência do buraco da Constituição
quando Magalhães da Costa nos apresenta o desfecho de outro episódio, também
verificado numa ‘beira de estrada’.
Nesse conto, publicado no segundo livro, Inocêncio mata à queima-roupa
um desconhecido que lhe propôs ‘ou o dinheiro ou a vida’ e ruma para a casa do
coronel Belarmino Jucá, ‘chefe político
local, de muita influência e prestígio, a quem contou todo o sucedido, pedindo
naturalmente cobertura e proteção do homem no Júri.’ Escuta do coronel primeiro palavras de
admiração pelo feito e, depois, o que buscava:
- ‘Conte comigo, já ouviu? Conte comigo, já ouviu?’
Revela-se Magalhães da
Costa um grande contista, já no seu primeiro livro, Casos Contados, em 1970, que é prefaciado por Fontes Ibiapina, de
quem recebe forte influência – só e
somente naquele primeiro trabalho.
Dois anos depois publica
No Mesmo Trilho, o seu segundo livro de contos, prefaciado por
Francisco Miguel de Moura, que começa por discordar do Autor pela escolha do
título, que pode levar o leitor menos avisado ao falso juízo de que Magalhães
da Costa continua na mesma linha de Casos
Contados, ‘impressão que se desfaz completamente à leitura do primeiro conto’.
Ou esse título, ou a publicação
do terceiro livro de Magalhães da Costa que ainda não se deu, ou a pressa em se
formula juízos, ou outra qualquer razão tem levado algumas pessoas a continuarem
afirmando, erroneamente, a influência de Fontes Ibiapina na obra de Magalhães
da Costa, o que é verdade – repito – só e tão somente no que diz respeito ao
primeiro livro. No segundo e nos contos inéditos que tive a oportunidade de
conhecer do Autor, comprova-se a
descoberta de um caminho próprio e uma maneira singular de tratar dos problemas sociais do Piauí e do
Nordeste, com tanta arte que o que era local ou regionalista transfigura-se no
universal.
Por ser social, o homem recebe
influências do meio em que vive. Via de consequência, a arte , para ser humana
e verdadeira, deve refletir a sociedade em que o artista viveu ou vive. No caso
de Magalhães da Costa, sua arte reflete o Nordeste. E não poderia ser diferente, por ser
verdadeira.
O Nordeste que levou João Cabral de Melo Neto
a cantar Vida e Morte Severina ainda vive o indicativo presente do verbo
morrer:
‘E se somos Severinos
iguais
em tudo na vida,
morremos
de morte igual,
mesma
morte severina:
que
é a morte de que se morre
de
velhice antes dos trinta,
de
emboscada antes dos vinte,
de
fome um pouco por dia
(de
fraqueza e de doença
é
que a morte severina
ataca
em qualquer idade,
e
até gente não nascida).’
Emboscada, fome, doença,
analfabetismo, raquitismo, machismo, coronelismo (ainda?), escravagismo (ainda?), velhice prematura são
apenas palavras e expressões que não codificam plenamente o quadro humano e
naturalista do Nordeste. Surge daí a arte como forma maior de expressão desse mundo, supermundo ou submundo chamado
Nordeste do Brasil. Somente a arte em todas as formas e gêneros, exercitada por
nordestinos, será capaz de fazer outros povos penetrarem o nosso mundo, façanha
não conseguida em longos anos de discurso político. Pois a arte tem conseguido
expressar, sem nenhum subterfúgio, a realidade nordestina e, com isto, influir
na sociedade brasileira e mudar até mesmo o discurso de alguns políticos.
E aquilo que parece
folclórico, no conto de Magalhães da Costa, evolui, se torna filosófico; e o que devia ser apenas uma coletânea das
expressões, costumes e tradições de uma época passada, de repente torna-se
atual e se transforma na mais veemente forma de denúncia e protesto contra todo
aquele espetáculo de miséria.
Magalhães da Costa não
perde tempo em circunlóquios e sentimentalismos. É conciso, realista e cru. Não quer dizer que os seres que se
movimentam em seus contos sejam apenas infelizes e cruéis. Não. Isso seria deturpar a realidade nordestina em que se
fundamenta a ficção de Magalhães da Costa. O riacho das Guaribas, por exemplo,
estava enchendo, em decorrência de boa chuva caída no dia anterior. Inocêncio
comentava isso, feliz, com o companheiro de viagem minutos antes de ser
obrigado a desferir-lhe três tiros nas costas, quando o indivíduo se revelou
assaltante frio. Os disparos do revólver ‘taurus
Magalhães da Costa não
cozinha os casos que conta. Entrega-os crus aos seus leitores: ‘Fosse contar tudo no tintim dava um
romance. Não vou não. Funcione a imaginação.’ E aí está a sua arte maior: não castra a imaginação do autor nem
‘desinterra’ a história que narra. Não prepara o espírito das pessoas quando
vai dar uma notícia boa ou ruim: debulha fatos alegres, tristes ou trágicos sem
alterar o tom da voz. Mostra disto é a
página 37 do livro No Mesmo Trilho. O irmão sente saudades da irmã e vai ao seu
encontro um ano depois da separação; ouve dela que o pai ‘queria, por força,
fazer a vida com a própria filha’. E conclui:
‘ – Pai é um bruto.’ Ao final da página pede para a irmã lembrar
a história do ‘Touro Azul’. Linda... O
leitor vira para a página 38 e vê ‘pai e filho tombados cada qual para um
lado, tripas de fora sujas de terra, e aquele mar vermelho de sangue, como num
matadouro de boi.’
Aparentemente há uma
série de falta de razões para os derramamentos de sangue que ensopam as páginas
de Casos Contados e No Mesmo Trilho. Zeca mata a cachorra de Chico porque esta ‘dera em frequentar o roçado’ dele. Chico,
por causa da matança da cachorra, sente-se desfeiteado e perde a razão de viver; força briga com seu compadre Zeca e morre
pedindo para o assassino botar a bênção nos filhinhos, ‘pela luz de seus olhos, dele, Chico, que estava se apagando naquela
hora.’ Quando Inocêncio matou o
ladrão, ‘apeou-se para apanhar a carteira, com poucas cédulas dentro, guardou-a
no bolso, montou outra vez na burrona...’ Por tais motivos eu não mataria o
homem nem a cachorra. Você também não. Mas eles sim. Eles matam, eles morrem. E neste ponto da
questão reside a grande diferença entre os seres que habitam as páginas dos
livros de Magalhães da Costa e os seres que as lêem. Habitamos mundos
diferentes morando na mesma região de um país deste planeta.
A obra de Magalhães da
Costa é tão crua e chocante quanto verdadeira e encontradiça na realidade social
do Nordeste do Brasil. Aqui o homem vive cheio de razões para a morte e mata e
morre aparentemente a pretexto de nada, razão de nossa desgraça social: vive-se,
morre-se ou se mata sem saber por quê, nem para quê. A ignorância é tamanha que
o caboclo, na hora da morte, chama o compadre que lhe tirou o sangue e
pede para botar uma bênção nos
filhinhos. É desse Nordeste de senhores
e escravos, de padrinho e afilhados, que nasce a miséria que Magalhães da Costa
transforma em arte, que transformará o Nordeste.
3.
Moral
‘Era um ovo enorme, azulado, bem
no centro do coreto, dominando a praça toda com a força de sua presença...’
Chega-se ao fim do conto de Magalhães da Costa e não se encontra a moral
da história. Não há moral e nem podia
haver. Nunca houve moral na história dos crimes que se praticam no Nordeste.
Os casos não são
explicados. Os réus não são condenados nem absolvidos. Minto. Afrosino trocador
de animais, que deu 14 chuchadas, mais 7 de gratificação, em Vicente, o filho
mais moço de sua irmã Ana do Riachão, ‘motivou
o Júri a sentenciar-lhe 21 anos de xadrez, 11 dos quais já cumpridos...’
Há também o caso de Inocêncio, que tem
cobertura e proteção do coronel Berlarmino Jucá, no Júri. O Júri condena ou
absolve obedecendo critérios absurdos e irracionais.
O conto em si é que não condena nem absolve
ninguém, é completamente amoral. Coloca asas na imaginação do leitor, abre
várias trilhas e deixa cada um seguir seu rumo. Ressuscita o mistério do ovo,
símbolo com o qual MC parece querer explicar a origem de vida dos seus
personagens:
‘Apanhei
o ovo e joguei para o ar; ao cair no
chão espatifou-se, exalando catinga de goro: aquela célula não geraria vida
alguma.
Frustrados, deixamos a praça às
pressas, fungando: fum, fum, fum... Todos de lenço e mão no
nariz. Cada um seguiu seu rumo.’
Publicado
na Revista
Cirandinha, nº 9, Teresina, nov/1983.
D.
XICOTE
O
DESVENDAR DO FAZER LITERÁRIO
Deolinda
Marques
Professora e crítica literária
Em artigo anterior (MARQUES, 2006) (1)
tracei todo o percurso histórico de como me tornei leitora do poeta Francisco
Miguel de Moura. Citei todos os seus livros que já li e declarei que aguardava
ansiosa (como todos os seus leitores) o "tão anunciado D. Xicote". Não imaginava eu, apesar de já ter lido todos
os outros seus romances (Os Estigmas,
Laços de Poder e Ternura), que
realmente o tão anunciado romance merecia todos os anúncios, e muito mais!
Era quarta-feira de trevas, acabara de chegar de Picos
e tinha poucas horas para arrumar minhas coisas e partir para a
"Fazendinha", como chama meu irmão, onde iríamos passar a Semana Santa.
Enquanto arrumava meus pertences, minha mãe me entregou um pacote, dizendo que
era uma encomenda trazida pelos correios. Vi uma letra bonita com a seguinte
inscrição: "Para a Profª. escritora
Deolinda Marques". Fiquei
surpresa pelo "escritora" e virei o envelope. "Remetente: Francisco
Miguel de Moura". Maior foi a
minha surpresa, ao abrir o pacote! Era uma publicação coletiva – três romances
classificados no Concurso Literário do Piauí (2), dentre eles o D. Xicote, e uma carta manuscrita do
grande poeta. Meu coração exultou de alegria! Pela primeira vez na vida recebia
uma carta de alguém tão importante.
O carro já estava na porta e todos esperavam apenas por
mim. Joguei minhas trouxas dentro do automóvel e rumamos para Lagoa Grande.
Nunca aqueles três quilômetros foram tão distantes! Só depois que cheguei lá é
que pude ler a carta. Li, reli e não me contive. Corri até a casa da minha tia para
partilhar aquela alegria com meu primo, que também é professor de literatura e
leitor do poeta Chico Miguel. Ele também ficou encantado com tudo que viu.
Mal esperei chegar à noite para começar a ler o livro,
que me encantou desde a primeira frase: "O vento e as lembranças carregaram D. Xicote para o insondável, como nos
sonhos em que não se pode despertar" (p. 101). Acho que nem preciso
dizer que D. Xicote foi minha única
leitura naqueles dias de jejum e recolhimento.
O prazer inesperado pela publicação do livro, e por recebê-lo
autografado e acompanhada de belíssima carta do próprio autor, não foi maior do
que o espanto com a leitura da obra. Refiro-me à surpresa com a publicação
porque tinha estado com Chico,
Li o livro de um fôlego! Logo no primeiro capítulo
identifiquei-me com o protagonista daquela narrativa, pois me senti num espaço
romanesco que também me pertence, pelas referências ao rio e ao desaparecimento
dos peixes, à Fazenda Boa Vista, Bocaina, Sussuapara, Barragem... Enfim, vi
retratado o "vale do Guaribas" e me senti personagem daquele romance que também é a história da minha vida e
de tantos que vivem ou viveram nessa região.
O romance tem sua cena inicial no rio. Ou melhor: na
Barragem que destruiu o rio Guaribas (com
seus peixes e plantios de alho e cebola), influência já consagrada na obra do
grande poeta. Mas não é de rio que eu
quero falar. Outras águas desaguaram, fecundando a terra e fazendo prosperar uma narrativa que se constrói de forma
consciente. É desse aspecto que eu quero tratar, por ter sido o que mais me
chamou a atenção no romance: a metalinguagem narrativa.
Segundo Samira Chalhub (Ática, 1988) (4),
"a metalinguagem, como traço que
assinala a modernidade de um texto, é o desvendamento do mistério, mostrando o
desempenho do emissor na luta com o código" (p.47). D. Xicote apresenta-se como um romance
moderno (BARBOSA, 1990) (5), justamente pela forma como desvenda o
próprio fazer literário e dessacraliza o papel do escritor, que por muitos é
visto como um ser superior aos outros mortais.
Já no primeiro capítulo, o narrador revela a "vontade de escrever, preencher o tempo e
encontrar-se" consigo mesmo, e expõe uma verdadeira Teoria do Romance,
digna de grandes teóricos e pensadores como Georg Lukács (Lisboa, s/d) (6)
e Walter Benjamin (Brasiliense, 1986) (7): "Dizem os teóricos que é com palavras que se
escrevem romances, cinqüenta mil são suficientes para um, e quanto menos
repeti-las melhor, mais rico o texto, mais forte, mais emocionante. Que sabem
eles do romance, do conto e da novela? Nunca escreveram unzinho sequer. Romance
também se faz com som e desespero. De espaços e ausências. De tempo. Da fúria
da vida. Da morte" (p. 104). Essa consciência metalingüística do
narrador chamou-me a atenção e, no decorrer da leitura, outras surpresas
surgiram aos borbotões.
No oitavo capítulo, o narrador, além de confessar o
desejo de ser um "escritor famoso" - desejo esse que é reiterado no
capítulo 11 ("Quando eu for um
grande escritor investigarei tudo" p. 153) - faz uma reflexão crítica
e consciente sobre o papel do escritor, como profissional, e as dificuldades
que ele enfrenta: "Posso fazer meus
livros e vender. Publicá-los nos jornais e revistas. Tudo isso é ser escritor"
(p. 138).
A partir de então, pudemos perceber que o fazer literário
é uma das linhas mestras da obra, que perpassa toda narrativa como um fio
condutor. Constatamos que, ao longo do romance, o narrador constrói uma
verdadeira Teoria da Literatura, abordando conceitos importantes, como os de literatura ("A Literatura. É minha luz." p. 214), ficção ("Mas ficção é ficção,
tem que ser inventada." p. 230), romance
("romance também se faz de som e de
desespero. De espaços e ausências. De tempo. Da fúria da vida. Da morte."
p. 104), tragédia ("esses elementos estão no romance e são
romance, na sua forma romântica e, agora, na vertente de tragédia, pois a vida
em si é a tragédia do homem." p. 262), (bom) narrador ("ela era
uma boa narradora, não aumentava, não diminuía, escolhendo apenas o que era
importante. A ação como principal. E os personagens. Os detalhes para depois.
Se lhe interessassem.” p. 149), poesia
("A poesia, a arte de imaginar e
criar". p. 248), poema
("Poemas são feitos com palavras. E
belas palavras, inventadas ou não. Em cadeias de pensamentos santos e místicos
fazem a música. Aliviam a alma. Às vezes atordoam. Mas, no fundo, são alimentos."
p. 263), (poema e poeta) romântico ("Seus poemas eram românticos como os autores
que lia. Choroso sobre seus amores, por ser um bruto sentimental";
"o romântico é um doente pelo
excesso". p. 216). Reafirmando
o provérbio popular ("nos pequenos frascos se guardam os grandes perfumes"),
defende ainda que os poemas curtos sejam os melhores: "Há coisa menor que um poema curto? Às vezes
em dois versos contém a largueza dos horizontes, a profundidade do mar, a
riqueza dos oceanos." p. 262). Percebemos também que muitos conceitos
são repassados de forma indireta ou até mesmo pela negação: "Não, não é poesia, é outro negócio." P.
158; "Há quem não considere a sátira um gênero poético." (p.
216). Além de apresentar esses
conceitos, o narrador menciona os mais diversos gêneros e espécies literárias,
como: conto, novela, crônica, matérias, artigos, editorial, sátira, oração,
versículos, bem como faz uso consciente de vários termos do mundo da escrita,
demonstrando um vasto conhecimento no campo das letras, tais como: título, redatores,
manchetes, epílogo, capítulos, manuscritos, borrões, rasuras, versos, emendas,
página, obra, livro, leitor, crítico, concurso literário, e tantos outros.
Ao longo do romance, o narrador, que às vezes se
confunde com o próprio autor (ABDALA Jr., 1995) (8), dá uma "receita
infalível" de como tornar-se um "grande escritor". Os
"candidatos a escritores" têm que: a) antes de mais nada, sentir
vontade de escrever; b) adquirir o hábito de conduzir papel e fazer anotações;
c) gostar de ler; ler os poetas e pensadores, sobretudo, ler Freud; d)
construir um projeto de escritura: "pensar o livro antes de
escrever"; imaginá-lo pronto; e) ouvir bons contadores de histórias e
voltar às origens para adquirir "munição", pois, para ele, a infância
é a base para a criação e explicação da vida; f) escrever inicialmente só para
si, compulsivamente (rascunho), depois fazer cortes, rasuras, emendas, bem como
incluir citações seguras - trabalho de reescritura; g) começar pelo começo -
defesa de uma narrativa linear.
Além dessas sugestões, o narrador traça todo um
caminho percorrido por si próprio e por todos aqueles que se consagraram como
escritores, como: a) recitar poesia, quando criança; b) estrear em jornalzinho
escolar; c) participar de concursos literários; d) e, se for caso, até escrever
O romance apresenta um verdadeiro tratado de Teoria
Literária, revelando o vasto conhecimento e o pensamento do homem e escritor
Francisco Miguel de Moura, sobretudo quando defende de forma clara e contundente
a liberdade de criação, o não-modelo literário, que deve ser a marca maior e
primeira de todo artista: "(...) mas
estou lhe contando uma história, por isso quero ter a liberdade de inventar, de
criar. E só posso fazê-lo falando assim. Pois assim é que colocarei no meu
futuro livro." (p.182).
O ato criador se revela ao longo da narrativa,
desvendando o fazer literário, através da consciência de que todo texto é
formado por vários outros textos.
Uma leitura mais atenta da obra nos faz perceber que o
objetivo de Xicote não é contar a sua história de amor, ou desamor, com Amanda,
mas narrar a sua trajetória como escritor, que inicia ainda no ginásio; depois como
colaborador de um jornalzinho, escrevendo poesias, contos, crônicas e artigos,
onde tem alguns trabalhos apreciados pelos redatores, mas também recebe duras
críticas de Leo Lira a um poema considerado muito romântico. Projeta escrever
um livro e, para tanto, começa a fazer anotações, escolhe um título, desenha a
capa e "pensa" o livro pronto. Esse projeto transforma-se quase que
numa obsessão que perpassa toda a narrativa. Os sonhos se concretizam num
"escrito volumoso", cujo desejo é impressionar os julgadores, enviado
para um concurso literário a nível nacional, promovido por uma entidade do Rio
de Janeiro. Sendo que o resultado do concurso só sai depois que Xicote já havia
falecido. Esse desfecho é também uma crítica à sociedade que, na maioria das vezes,
só reconhece e valoriza o artista depois de morto. Revela também o próprio
conceito de imortalidade do escritor, que é não morrer, mesmo depois de
morto.
Por outro lado, uma leitura superficial da obra pode
levar o leitor a afirmar que D. Xicote
é um romance de personagem (REIS e LOPES, 1988) (11), cujo enredo
são as aventuras e peripécias do anti-herói Francisco Feitosa, que adota como pseudônimo
artístico D. Xicote (com X). No entanto, a história de Xicote não é a narrativa
central do romance. Nela encontram-se encaixadas narrativas menores, como a
lenda do Morro do Quebra Pescoço, a história de Dr. Crucifon, servindo apenas
de fio condutor para uma história maior, que é a construção do romance D. Xicote e o próprio fazer literário. Ou
seja: a história de Xicote está dentro de uma narrativa maior que pode ser a
história de vida do próprio autor - o filho de Miguel Guarani, dadas às coincidências
biográficas, bem como pode ser a história de todos nós: "Quando terminar de escrever o romance das
vidas que passaram por sua vida, de como sua vida passou por essas vidas, assim
se expressará (...)." (p.256).
Assim sendo, diríamos
que D. Xicote classifica-se como narrativa de encaixe (REIS e LOPES,
1988), uma vez que é um romance dentro de outro romance maior, que é a história
de todos nós, e como meta-narrativa (REIS
e LOPES, 1988), tendo em vista que o autor desvenda do próprio fazer literário.
Essa classificação consciente nos é dada pelo próprio narrador: "Com sua ajuda farei um romance tecido no
meio de outros romances que irão sendo entrelaçados pelas pessoas deste grande
livro que é a vida. Nossa e de todos." (p. 153).
A consciência do narrador em relação ao fazer
literário não se limita apenas à criação. Estende-se ao papel do leitor, com
quem dialoga ("E não sei se o leitor
viveria comigo essa tortura. Leitor não feche a página antes do final
(...)" p. 268), e da crítica, para quem, juntamente com o leitor, é o
elemento decisivo e responsável pela consagração do escritor. Daí a importância
tanto de um como do outro: “Há tempos
mourejava nos jornais, mas agora seus artigos e matérias eram lidos avidamente
e comentadas pela população da cidade e arredores”. (...) "Poeta moderno e
inovador, desde que resolveu pôr o romantismo de lado - o próprio Leo Lira afirmara,
numa nota sobre as atividades da terra e seus cultores." (p. 246)
Essa consciência criadora e do próprio fazer
narrativo e literário perpassa toda a obra e confere a D. Xicote um caráter de modernidade (BARBOSA, 1990), como também revela
o conhecimento e a consciência, que só os grandes escritores têm, do seu
próprio ofício.
Conclui-se, portanto, que o projeto de escritura,
apresentado logo no início da narrativa, que perpassa todo o romance e culmina
com a premiação num concurso literário a nível nacional, constitui-se uma
narrativa maior cujo objetivo é desvendar o próprio fazer literário. Ou seja: é
um romance explicando o próprio romance, cujo narrador e personagem central é o
próprio Chico Miguel - romancista piauiense, que depois de percorrer vários
caminhos (principalmente o da poesia e do conto) consagra-se como romancista.
Eu diria que é neste momento que a ficção se faz realidade: D. Xicote consagra Francisco Miguel de
Moura como um grande romancista moderno.
NOTAS:
Texto apresentado no V Seminário de Literatura Piauiense e II de Literatura Picoense, 11
de novembro de 2006.
(1) MARQUES, Deolinda Maria de Sousa. Um Rio
(2) MOURA, Francisco Miguel de. D. Xicote. In: Concursos Literários do Piauí. Teresina: Fundação
Cultural do Piauí, 2005, p. 93 –270.
(3) MOURA, Francisco Miguel de. Miguel Guarani: Mestre e Violeiro. Teresina: Edições
Cirandinha/FUNCOR, 2005.
(4) CHALHUB, Samira. Metalinguagem. 2ª. ed. São Paulo: Ática, 1988.
(5) BARBOSA, João Alexandre. A Modernidade do Romance.
In: A Leitura do Intervalo: ensaios
de crítica. São Paulo: Iluminuras, 1990.
(6) LUKÁCS,
Georg. Teoria do Romance. Lisboa:
Editorial Presença, s/d.
(7) BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e
história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985 ( Coleção "Obras
Escolhidas", Vol. 1).
(8) ABDALA Jr., Benjamim. Introdução à análise da narrativa. São Paulo: Scipione, 1995.
(Coleção Margens do texto).
(9) SANT’ANNA, Affonso Romano de. Como se faz Literatura. Petrópolis: Vozes, 1985.
(10) DOURADO, Autran. Uma Poética do Romance – matéria de carpintaria. Porto Alegre:
Difel, 1976.
(11) REIS, Carlos e LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de Teoria da Narrativa. São
Paulo: Ática, 1988.
Artigo publicado na revista Literatura,
nº 33, de abril de 2007, Fortaleza –C
FRANCISCO MIGUEL DE MOURA
Osvaldo Monteiro
Cientista, contista e crítico
Charles Baudelaire
quando apresentou ao público europeu o americano Edgar Allan Poe disse do
prazer bem grande e bem útil de comparar os traços fisionômicos de um grande
homem com suas obras. As biografias, as notas sobre os costumes, os hábitos, o
físico dos artistas e dos escritores, sempre suscitaram uma curiosidade bem
legítima.
Assim
faço eu ao abordar criatura e criador; a
obra e o artista. Laços de Poder é o
mais alentado romance, a obra maior em prosa do poeta e escritor Francisco Miguel de Moura. Nas caricaturas de
jornais e revistas é grande a semelhança física, inclusive os óculos pesados, de
Chico Miguel com o poeta Manoel Bandeira. Mas fica por aí, a alma do autor de Laços de Poder é essencialmente drummoniana, respeitando-se as
peculiaridades individuais. No mineiro há nostalgia por não ter nascido em
Paris, é introvertido e arredio. Chico Miguel parece nostálgico, pessimista e
infeliz. Parece apenas. Na intimidade é
um ser agradável, dócil, equilibrado e extrovertido. E mais, adora a sua
piauiensidade. Ficam as semelhanças; daí pra frente Chico Miguel agiganta-se;
tem mais profundidade d'alma em
comparação aos mineiros citados e só não os igualou na fama e no reconhecimento
por ter se desenvolvido cá por estas bandas, sem o adubo da mídia e do clima generoso com
chuvas regulares. Apareceu como os
jenipapeiros, os pequizeiros e os cajueiros nossos. São os nativos da terra,
filhos legítimos que nascem, "nunca se sabe o começo",
crescem, desenvolvem-se e muito produzem
mesmo com a carência dos mimos naturais e, digamos, políticos também.
Formado em Letras, Teoria e Prática, haja prática! Escritor compulsivo e leitor
voraz. Modesto à franciscana, "simples como as pombas e perspicaz como
as serpentes". Quando se empolga, fica meio gago sem contudo a emoção
prejudicar-lhe a lucidez. Figura notável, um tanto polêmica. Sua presença,
embora de pequena estatura, polariza atenções; é nome de peso da literatura
piauiense, quiçá universal. Com cerca de
quinze livros publicados, afora ensaios, crônicas e muita poesia em publicações esparsas,
daria, penso eu, outros tantos volumes.
Em
Laços de Poder vejo um realismo nu e
cru, mesclado com diálogos e monólogos de profundidade psicológica. O autor não
está nem aí para indicar o leitor quem está falando ou monologando. Vire-se!
Parece-me o mais inovador de sua escritura de altíssima envergadura. E por falar
em nu, pelado, como diz a moçada atualmente, escreveu Chico Miguel este livro.
Maravilha de experiência e experimentação, segredou-me D. Mécia, sua esposa.
Já pensaram, o cara se despir física e
psicologicamente para narrar uma história sem barreiras? Criação
desinibida, verdadeiros laços desatados
do poder castrador.
Não
sei em que lugar das prateleiras do gênero colocar os escritos de Chico Miguel.
O homem não é capturável, tem seu ritmo um tanto pessimista mas a vida é assim
mesmo, só sei que ele "queria
começar antes do começo..." O polimento do texto é irreprochável,
nada encontrei que o maculasse. Fato
raro numa primeira edição. Texto limpo, asseado, clean. Mesmo quando envereda pelo escatológico; a cena da
galinha bicando, engolindo a “áscare” preste
a sair do menino, parece inusitada. Não pra nós nordestinos. Autêntico retrato
de meninos purgados fazendo suas necessidades nos terreiros das antigas
fazendas. Reporta-me ao tempo do "Tiro
Seguro", vai a digressão, "não
sei se ando ou desando"! Um vermífugo do mais terrível sabor que D.
Madalena, minha dileta mãe, realizava anualmente na filharada.Uma colher de
sopa enfiada goela abaixo da vítima e a ordem enérgica do pai: "engole, cabra"! Já vi muita
galinha caipira realizando faxina tão
nobre. O tempo velozmente transmutou-se, transmutações individuais e coletivas
com que nos alertam Raimundo Santana. A sociedade está mudando; é preciso
pensar como ela muda, adverte Eduardo Neiva. As fazendas foram invadidas e
transformaram-se em favelas, o terreiro virou play-ground de
apartamentos, o galináceo enchiqueirado com energia diuturna, água de antibiótico
e ração balanceada que não satisfazem o apetite. Ao cabo de um mês e pouco o
pintinho virou mangangá apto ao holocausto. Os pais afrouxaram a disciplina,
perderam o moral, e a gororoba de pílulas coloridas miniaturizadas e xaropes
aromatizados têm sabor de morango. Uma delícia de purgativo.Só os meninos
continuam meninos carregados do genoma do mau caráter. "As más
recordações morrem devagar, as boas lembranças são somente boas e se
apagam" filosofa Chico Miguel.
Falei
em clean para denotar o asseio da obra. Dou-me conta que talvez esteja
inconscientemente me opondo ao purismo de Chico Miguel. Nele não há
estrangeirismos, até a palavra "show," tão arraigada entre
nós, por duas ocasiões o autor
aportuguesa "chou", que me pareceu esquisito. Seu romance tem
o modelo atômico, o seu núcleo é Chico Miguel, os personagens são os eléctrons
(os eus) do autor.Teve um insight à Nostradamus: há lampejos de clarividência
e precognição em Laços de Poder. A
cena da Igreja, do Banco e do palácio do governo afundando e desmoronando na
trágica tempestade é profética. Ninguém, aquela época (l985), pensava em dèbâcle dessas respeitáveis
instituições.
De banco o autor é um expert. Olhou de
dentro, agora olha de fora, com muito realismo, cópia do natural, o metièr. Mister penoso, labor repetitivo, monótono,
sem sentido, estressante e perverso."Emburrecer é
preciso", "aqui
não existe sequer o
amor próprio", "a vontade do chefe tinha que
ser mantida a qualquer custo", "chefe imediato, este de outro chefe mais
alto até chegar ao seu Aristóbulo”. Mas
Chico Miguel sempre contou com o lenitivo da taça libertadora. Seu ideal
artístico, sua transpiração de vate, sua ansiosa solicitude pelas letras, foram
o seu "Lexotan". Cumpriu cabalmente a missão, sua via-crucis foi até a aposentadoria. Só pra concluir,
lembrando expressão de Tito Filho: Chico Miguel é poeta até debaixo d’água! A parapsicologia revela sua aura composta da
mais elaborada escritura que já vi por este "chão de meu
deus". A sua obra Laços de Poder e Um Manicaca, de Abdias Neves, são gemas preciosas, opalas
genuinamente piauienses do mais alto quilate.
Publicado no Diário
do Povo, Teresina, em 3 de setembro de 200
ESTANTE DE LIVROS: SOCORRO ABREU
Magalhães da Costa
Contista e crítico
Regresso, de Socorro Abreu,
Zodíaco, Teresina, PI, 1997, 442 págs.
Temos na nossa banca um
senhor romance, revelador de uma grande escritora dona de todos os instrumentos
de que precisa um inventor de histórias e criador de tipos para fazer uma obra,
um relato convincente e belo, como conseguiu fazer essa jovem com esse Regresso,
sem dúvida nenhuma uma das melhores coisas que já se escreveu nesta terra, em
matéria de ficção, vindo mesmo a igualar-se a O. G. Rego de Carvalho, tido por
muitos como nosso maior romancista. Ela, aliás,
não deixa nada a dever ao grande filho de Oeiras, no que toca à escrita.
Como ele, domina a língua, narrando com segurança e desenvoltura e muita
simplicidade, de forma a esconder seu trabalho de artesão completo e
verdadeiro, que aqui aparece como coisa feita e acabada, de amostragem
atraente, como um produto ou peça de muito valor numa exposição de arte
gabaritada. Arrisco-me a dizer que há
muito não leio coisa tão boa como o romance dessa moça, nem fazia uma leitura
tão agradável quanto a que acabo de fazer. Tive um prazer, que o leitor nem calcula.
Verdade sim. E olhe que o bicho é pesado – mais de 400 páginas! E ela não
baixa. Não amolece nem afrouxa: nunca cai. Segura a narrativa do começo ao fim,
numa toada só, quer dizer, sem fracassar um só momento no correr da escrita,
que é natural e muito fluente, como, aliás, já o afirmamos.
Além do mais, Socorro Abreu demonstra ter também leitura
de bons autores, pois sua criação está dentro do melhor modelo de romance que
se escreve hoje, no mundo inteiro, por isso, não é de duvidar que venha a ser uma
best-seller brasileira, que condições ela possui, e muitas, estou dizendo;
dizendo, não – já falei isso para a própria escritora, quando tive a felicidade
de conhecê-la um dia desses, na UBE-PI. Mas o tempo é quem vai dizer, melhor
que eu – é esperar para conferir. Romancista a bordo! Salve! Viva! A obra pode
ser adquirida nas livrarias de Teresina, com a autora, pessoalmente, ou então
na própria Editora Zodíaco.
Publicado no jornal Meio Norte, 28 de outubro de 1997,
Teresina -PI
LUIZ FILHO DE OLIVEIRA
ONDE
HUMANO, POETA?
Francisco Miguel de Moura
Poeta e crítico literário
Faz algum tempo que o
poeta e historiador da literatura do Piauí, Herculano Moraes, criou a
necessária Geração do Milênio, para
classificar escritores realmente novos do final do século passado e começo
deste, não os deixando ficar na relação dos conhecidos como Geração do Mimeógrafo (ou Marginal). E eu não me advertira ainda de que está havendo certa diferença a
mais nos escritores (menos nos prosadores) deste começo século XXI. Mas agora,
lendo a obra de Luiz Filho de Oliveira, especialmente seu segundo livro, Onde
Humano, gritei para mim mesmo: Eis um poeta diferente, com sumo, com força,
com raça, que merece ser distinguido dos de antes pela postura lingüística
nova, sem querer imitar gregos nem troianos, clássicos nem modernos, apenas ser
ele mesmo, a figura impar do que acontece no mundo, o poeta – em forma de
palavra, língua, linguagem, poesia.
Num poema de quatro versos, analisemo-lo, ele
faz
questão de poesia
deixe
completo ou complete
o
verbo é avesso da morte
e por
dentro & fora
permanece
(Espaço
de exercício gramático-poético)
E não tentemos mudar sua peça: é essa mesma, com todos os espaços,
No poema seguinte, este bem maior, assistimos o
despacho do onde humano, cujo
título enorme não faz medo, mas ilumina o achado da poesia-humanidade, sem sumo
de humanismo:
poema
armado a sua dessemelhante imagem
não
lapida a palavra este poeta
mas a
lapidar-elas¹ como poema
físico-estético,
sócio-linguístico
arma
este
edifício funcional engenho
erguido na pedra argila cerâmica
papiro
pergaminho papel tela eletrônica
ao
pegar da cunha do estilo do pincel
à
caneta esferográfica ao teclado em pixel²
e
sobe ao subsolo bem rente ao cume e
desce
os degraus rumo ao cimo e
armado
o poema resiste firme
com o
espaço destes elementos e
veste
tais paredes (estas linhas) e
arranha
o céu dos sentidos
o
enésimo sétimo talvez sim
pela
engenharia do pedreiro
pela
forma livre do que
em vida
edifica texto:
música
ou poema
sentido
espaço....... humano construindo.
(Das
preciosas pedras,
Quero saber se o leitor, principalmente o
comum e o mais sensível, compreendeu o desejo do poeta de arrancar do espaço e do
tempo o impossível, o interdito, “a dor
da força desaproveitada” que tão bem lembrou Augusto dos Anjos. Não falo
dos poetas, eles entendem o que o leitor comum outrora chamava de loucura do poeta.
Hoje, todos que consomem versos e poemas sabem muito bem.
Luiz Filho de Oliveira não precisa de
prefácio, apresentação ou crítica. É um poeta para saltos maiores: os de ter
seus poemas publicados em editoras e vendidos em livrarias, assim como seu nome
divulgado em antologias e dicionários, pois é o que merece. Ele é um verdadeiro poeta Milenista, ou seja, deste século e do
futuro, digo sem medo. Ele não vai desaparecer na multidão de poetas comuns, porque
sabe o que quer, o que faz e aonde quer chegar. É muito bom quando a gente tem
poetas assim, individuais, pessoais, inimitáveis, como são as criaturas do
nosso mundo onde o indivíduo, a criatura é também o criador de si e do mundo em
redor de si. Para o bem e a felicidade da arte. Porque a arte é isto aí:
palavras, sons, silêncios, símbolos, imagens que transmitem o até então
intransmissível: a poesia. E o poeta é um arauto do futuro, além de ser o
intérprete do presente. Poetas e profetas – as raízes são as mesmas. Por isto é
que são radicais. O estilo de Luiz Filho é radical e ao mesmo tempo racional.
As explicações que ele dá às expressões assinaladas com (¹) e (²), nos versos
acima, são de quem conhece gramática, linguística e línguas. Cai, assim, no
número geral assinalado por Mário de Andrade: “só os poetas que sabem podem errar” – se alguém, por preconceito,
achar que o poeta Luiz Filho erra nisto ou naquilo. Ele não erra, ao invés
renova. E todos os poetas são renovadores, criadores. Benvido, poeta! Entre, a
porta está aberta para a literatura, aqui e alhures.
Publicado no jornal O Dia, de 08 de janeiro
de 2011.
O
MEMORIALISMO NA FICÇÃO PIAUIENSE
Roberto Carvalho
Crítico literário, poeta e cronista,
Na ficção literária, a articulação do
universo da imaginação: sonhos, fantasias, medos, desejos – visão crítica do
relacional humano no mundo dos sentidos existenciais possíveis e impossíveis –
passa por uma tipologia de símbolos de
predominância fantástica, inversa à realidade. Essa inversão simbológica é que
caracteriza, nos diversos gêneros literários, o caráter ficcional do discurso.
No romance de Oswald de
Andrade Memórias Sentimentais de João
Miramar, o narrador e protagonista estabelece um fio coincidente ‘pseudomemórias’,
onde Oswald autor se diferencia de Miramar personagem, num característico
discurso ficcional. As técnicas usadas
na construção da prosa oswaldiana apresentam-se como renovação de conceitos
linguístico-estruturais – utilização de significados: humor/ironia. Autêntica crítica à realidade
sócio-cultural do país, àquela época, realista com Machado de Assis, entre
outros autores.
Tocando diretamente à ‘inversão’ simbológica, Oswald funde-se em
Miramar e instiga o ‘sistema’, propondo uma nova ordem ao discurso moderno. Na
visão do autor, o detalhismo inexpressivo perde a importância, cedendo lugar à
linearidade abordacional. Para alguns, impregnados pelo realismo romântico, o refrão da língua não podia ser alterado em
suas estruturas morfo-sintáticas matriarcais. O texto de Oswald de Andrade é a
realidade transformada em ficção, onde a expressividade locupleta-se nos
recursos semânticos, livremente ornamentados pela simbiose moderna.
Esses conceitos
formais, hoje utilizados como recursos
de ‘information’, na estilística contemporânea, estão distantes do discurso
literário feito no Piauí. Numa análise simplista, pode-se observar que a maior
parte da prosa piauiense é composta por
memórias, autobiografias e reminiscências familiares. Os temas dessa
memorialística são narrados quase sempre de forma descritiva, sem enredo
criativo. A abordagem não desperta
interesse, por suas relações nitidamente reais e particulares. Os autores, em
sua maioria, usando de uma linguagem ingênua, retratam suas conveniências
particulares. A verdade é que esse tipo de narrativa, além de não ser ficção,
pouco ou em nada tem contribuído para a formação cultural do Estado.
De
Por falta de observações
críticas, esse discurso de ‘afinidades pessoais’ passa despercebido nos meios
culturais. O resultado é uma produção literária fastídica e irrelevante, pautada pela irreversividade dos signos
narrativos. Aqui, alguns desses repositórios pessoais: Notas Fora de Pauta, Moura Rego, 1988; (...) A Misteriosa Passageira, Lili Castelo Branco, 1989; Sinfonia da Vida, Raquel M. L.
Cavalcante, 1989; Memória e Poder Político
em Floriano, Bento Bezerra, l989; O Oitão, Ana C. Napoleão, 1990; Memórias e Depoimentos, José da R. Furtado, 1990;
Elogios da Sombra, José
M. S. Ribeiro, 1990; Homens e Fatos do Meu Tempo, Afrânio Nunes,
sem data; Terra de Bruenque, de
Socorro Santana, idem. E a lista continua.
A maior parte desses
textos não tem definição ficcional. Não há um ponto de interesse onde o leitor
possa dissipar suas fantasias como parte de um mundo fictício, imaginário, acionado
por algo como ação, suspense, inusitado, etc. As situações são narradas tal
como aconteceram sem transpor o confabulário direto. Exemplo: ‘Devo a Dona Maria do Socorro Moura, criatura
meiga e cheia de dedicação, o aprendizado das primeiras letras, Sinfonia da Vida, Raquel M. L. Cavalcante,
pág. 16. No texto acima transcrito, a
comprovação da intransposição lógica, em alusões às intimidades,
confraternizações. Verdadeiro confissionário pessoal.
Num raciocínio mais
analítico, a prosa feita no Piauí está postada no discurso memorialístico. Seus
aspectos formais estão ligados à terra, aos lugarejos, às pessoas depoentes, num
estado ainda rudimentar. Esta minha constatação pode ser comprovada nos livros
que têm sido publicados ultimamente
Jornal O Dia, Teresina, 14.12.1991
WANDERSON LIMA - ESCOLA DE ÍCARO...
Dílson Lages Monteiro
Professor, poeta e romancista
O que quer o poeta?
Lendo Escola de Ícaro – o exercício
necessário da queda, livro de estréia do poeta e professor Wanderson Lima, publicado
em 1999, mergulhei em uma paisagem
sedutora, em que a claridade se mistura à escuridão e as sombras do humano
se estendem pelos caminhos da busca incessante do ser.
Por isso sou levado a
revigorar as palavras de Freud, para quem o poeta é um feiticeiro, guiado pela
inspiração que, exprime suas fantasias e torna-as aceitáveis e até prazerosas a
outros, realizando os desejos próprios e os alheios. Desse modo, ele escreve em
função do que deseja ser ou ter e, assim, mostra-se permanentemente insatisfeito.
A arte, pois, consiste na mais elevada forma de sublimação, no mais completo
exercício de liberdade.
Consciente disso, Wanderson encarna a angústia como
matéria prima do fazer poético, ora versando sobre o comportamento e suas
reações ante a vida psíquica e a realidade exterior, ora tematizando o poeta e
seu ofício, como nos versos que abrem as estradas do livro. Versos nos quais
define o vate como uma criatura múltipla, fragmentada, resistente,que faz da
palavra o grito capaz de saciar as vontades do ego.:
Eu
Mármore
de mim e de outras sombras
Vivo
o chumbo das eras e os golpes de Eros
Eu
estilhaço e baba do fim de tarde
Grito
grito grito minha fraqueza
Para
não morrer de fome e de silêncio.
A confirmação da angústia como tema central da
obra advém da obsessão do poeta em repetir imagens em que procura caracterizar
a vida, numa tentativa frenética de barrar as efemeridades das horas. A vida se
confunde com o próprio pensamento e, em tom de oração, revela-se imprecisa
e confusa:
Rio nosso que escorre
leva
lembranças e laços.
Leva
o riso, viço e a vaidade
e a vontade.
Em suas águas barrentas
arquejando
de dor
mil fantasmas pastam.
Nesse contexto, a poesia é motivo para existir, para
superar a hipocrisia, a imperfeição, os riscos, a desilusão; é motivo para a
alma se renovar, para aceitar as perdas, para se consolar, para amar. Ao construir essa cosmovisão, o poeta
sacraliza a palavra como o campo de perfeição do eterno, espaço onde as
fronteiras se apresentam exatas, permitindo adentrar na essência do espírito
e no cotidiano das relações consigo
mesmo e com o outro. Comportando-se
assim, o poeta concede universalidade à sua poética e endossa Goethe, para quem
“toda característica humana, não importa quão peculiar, e toda representação, desde a pedra até a
escalada do homem, tem certa universalidade”.
A universalidade que permeia os temas se traduz
literalmente quando o vate define o amor numa concepção madura e filosófica,
como capacidade de provocar perdas. Também se manifesta, por exemplo, ao
expressar a reação do eu-lírico ao
materialismo, através de versos dotados de fina ironia:
Ratinho sem graça
como eu
brinca na minha estante de livro
ratinho não quer aprender nada
quer só roer.
eu também ratinho
se pudesse
viveria só de roer
no só ser
nem os dentes eu escovaria.
Os que lêem Escola de Ícaro estão diante de boa poesia, porque Wanderson é um poeta preocupado com o acabamento,
sem descuidar do conteúdo, sem se perder em jogos cerebrais. Comportando-se
dessa forma, lembra definição sobre o bom poeta na ótica de Henriques de
Cerro Azul: ‘Na construção de um edifício
não basta a solidez dos alicerces, das paredes, das colunas. Não basta que a
construção seja sólida. É preciso ser bela. Por isto é necessário o acabamento
do prédio. Os azulejos, as pias, o revestimento das paredes, do teto, do piso
devem ser de primeira qualidade, e a decoração em um papel superior. Isto faz a
diferença entre o edifício pronto e o edifício
A grandeza dos versos de
Wanderson reside no olhar obstinado sobre a palavra exata, o que o norteia a
burilar, concomitantemente, o velho e o novo, o clássico e as vanguardas,
passeando por formas diversas: o soneto, a elegia, a ode, o haikai, a balada, o
cromo e o verso livre.
O que quer o poeta? Em Escola de Ícaro – o exercício
necessário da queda, a poesia tenta transcender o fugaz, no intento de suportar
a inconstância do humano em contínuo transe.
Publicado no Diário do Povo, 16 de
outubro de 2002
LARA LARISSA
A TERRA DOS SONHOS MORTOS
Humberto
Guimarães
Médico, romancista e crítico
Por telefone uma jovem universitária solicita-me
entrevista sobre comportamento humano e criminalidade. Chama-se Lara Larissa,
tem dezenove anos. Marcamos encontro na APL, a entrevista é feita, parece-me que
para subsidiar uma monografia acadêmica em jornalismo, sendo ela contudo já
bacharela
Foi assim que me lembrei
duma literatura nordestina semelhante, a do caruaruense José Condé,
especialmente em Vento do Amanhecer em Macambira
– clima onírico de uma inquietação existencial à procura proustiana de um
passado morto no ambiente fantasticamente vivo nalma; poesia fantasmagórica de
um sentimento fixado sobretudo no primeiro amor do personagem, presença morta de
uma Lívia que desaparecera com a vila numa investida de Lampião. Uma novela,
uma fantasia ; uma representação eidética, que surrealismo é este? Na realidade
uma montagem simbólica das agruras nordestinas, como observa Fausto Cunha, o
vento, que é raro, sopra agouro de má expectativa, crença arrepiante sugerida
pelo sofrimento crônico que somente dita desgraça, fatalidade, o que vem de
longe, lá dos medos primevos dos nossos adões-índios, o minuano que tanto
assustava a Bibiana de O Tempo e o Vento, de Erico Veríssimo. Bem
assim, porque no bloco da existência mensurada pela consciência as transformações
e os dramas das saudades e dos anseios são temas que esvoejam em recorrências
de geração em geração, Lara Larissa, jovem cheia de esperança por um mundo melhor,
estável em afeto de altruísmo na política sócio-econômica e humana propriamente
dita, simboliza um passado singelo e parte em busca dele, para, em estupefação,
encontrar uma cidade morta, como tantas outras por esse Brasil adentro e afora,
por essas republiquetas sulamericanas ; cidade morta pelas espoliações, pela
matança constante da galinha dos ovos de ouro – que não renasce como a fênix;
como tantas outras... Todo memorialista rebusca o passado e só encontra
escombros do que vivera, camada soterrada de uma arqueologia biográfica, baú de
ossos do Pedro Nava. Sobre o tema, com mais contundência, o criador da
expressão, Monteiro Lobato; mas também o encontramos em Humberto de Campos,
além dos já citados Pedro Nava e Condé. Uma diferença capital entre Vento do Amanhecer em Macambira” e ATerra dos Sonhos Mortos, é que, no
primeiro, lavra de um escritor já firmado, fecha-se o estágio das buscas
sentimentais de um nordeste submerso na saudade, de um tempo-vida que não é
possível voltar, porque não mais existe, sucumbido nas circunstâncias danosas e
na impiedade da ganância; enquanto no segundo encontramos a esperança
trabalhada corajosamente no ritmo da perseverança obstinada da pedra mole em
água dura, do malho em ferro frio, na certeza de que até o impossível pode
transformar-se em possibilidade, especialmente quando se trata do comportamento
humano, para o qual a sabedoria popular aplica brocardos como “o que aqui se
faz, aqui se paga”, “quem semeia tempestade”, “de vento colhe tanto ir à fonte,
um dia o pote se quebra”.
O estilo singelo
como o de Saint-Exupéry em o “Pequeno
Príncipe”, como o de Maurice Druon em “O
Menino do Dedo Verde”, como o de Richard Bach em “Fernão Capelo Gaivota” e “Longe
é um lugar que não existe”,segue, como esses autores, um fio condutor de
idéias positivas, porém bem mais objetivas, saindo do pessoal da auto-ajuda
para o social na perspectiva histórica renovável; o seu lirismo não se restringe
ao saudosismo dos vencidos da vida, das vítimas sem remissão; vivendo a
atualidade dos confrontos, dos questionamentos, das denúncias dos criminosos
ditos do “colarinho branco”, tece uma trama de expectativa quando dos
enfrentamentos do fraco com o forte circunstanciais, dos davis versus golias, a
despertar o interesse do leitor para também entrar na luta que parece inglória,
mas apenas parece. Um outro aspecto interessante é que o tirano de “A Terra dos Sonhos Mortos” nascera,
como de hábito, do seio daquela gente calcada aos pés, era filho daquele meio,
fora pacato e humilde, mas se transformara, pelo ódio, em sedutor vingativo.
Como a hiena. Como o chacal. Como a raposa. Como o lobo mau.. Como certos
artrópodes na configuração das fábulas em que o bom sofre e sofre, e o mau
parece que sempre será o vencedor; parece, e o bem quase desvanece, mas no final
definitivamente cresce.
Publicado no jornal Meio Norte, Teresina, PI,
em 06/04/2005, artigo da série denominada Viajando
sobre os Estigmas - IV
SONETOS DE CANTADORES
Joames
(Joaquim Mendes Sobrinho, nasceu
em
Pedro
II, poeta, cordelista, sonetista, tem vários
trabalhos publicados. Mora
A maioria dos poetas pupulares não alisou bancos de colégios, poucos
cursaram o 2º grau e ramos são os que têm formação superior; estes, a despeito,
nem sempre são os melhores cantadores ou escritores da Literatura Popular.
Atributo peculiar a todos os cantadores é, sem
dúvida, a curiosidade sobre todos os ramos do conhecimento humano, que somada a
uma inteligência privilegiada, os capacitam a abordar com aparente segurança e
desenvoltura, temas os mais diversos.
Como já falamos nesta coluna (Cordel), uma das
composições poéticas mais difíceis é, sem dúvida, o soneto; por ser uma poesia
curta, de sentido completo e profundo, poucos são os poetas que o cultivam. No
Piauí, atualmente, destacamos como grandes sonetistas, entre outros, os poetas
Altevir Alencar, Hardi Filho, Chico Miguel de Moura e Raimundo Clementino, que
não são cantadores.
Entre os cantadores, alguns, de vez em quando
incursionam pelo mundo maravilhoso do soneto, embora sem a técnica dos grandes
mestres, mas com a mesma sensibilidade característica dos gênios da poesia.
Para evidenciar o que afirmamos, transcrevemos, a seguir, três sonetgos de
cantadores: o primeiro, de autoria de Domingos Fonseca; o segundo, deste
colunista ; e o terceiro, do jornalista, escritor e poeta Zózimo
Tavares, que também canta de improviso:
Mais um Natal
Mais
um Natal que passa... e a pobreza
Continua
a chorar, de mãos vazias:
Trezentos
e sessenta e cinco dias
E
seis horas de sonho e incertezas.
Surge
um novo Natal... Nova tristeza
Para
os que sofrem. Novas iguarias,
Novas
harpas vibrando em melodias
Em
torno dos banquetes da nobreza...
Ó
Menino Jesus, Espírito Santo,
Tu que
em trinta e três anos de existência,
Entre
os humanos padeceste tanto,
Roga
a Deus – a Suprema Divindade,
Para
nos dar, ao menos, paciência,
Já
que fez desigual a Humanidade!...
Cepticismo
Vis
paixões, transitórias e vulgares,
Duendes
feminis, falsos amores;
Ao
render culto a vós, ó sedutores,
Várias
vezes manchei santos altares.
Versos
meus dediquei-vos aos milhares,
Cuidando
merecer vossos favores,
Porém
sois, todos vós, enganadores,
Indígnos
de ouvirdes meus cantares.
Se
volverem à vossa intimidade
Antigas
emoções ou devaneio
Que
venham suscitar uma saudade,
Sabei
que já não amo nem odeio;
Ora
exceto a Suprema Divindade,
Não
cultuo a ninguém e em nada creio.
A Mão
Você,
que é grande, e também talentoso,
Que
vive da fama e de elogios,
Que é
festejado e se enche de brios,
Pois seja
humilde e também generoso.
E
nunca desfaça de quem é idoso
E nem
aos pequenos faça desafios.
Eu já
vi secarem caudalosos rios...
E o
amanhã é sempre duvidoso...
Quem hoje é grande e tem louvação
Já
foi pequenino – uns até demais!
Também
o pequeno pode crescer... Não?
E,
além do mais, abra a sua mão,
E
veja seus dedos: não são desiguais?
Porém,
todos eles preciosos são.
Publicado no Diário
do Povo, Teresina, 05 de novembro de.2004
CANTO NOVO PARA AMARANTE
Cunha e Silva Filho
Professor,
cronista e crítico literário
A se ver pelas indicações
bibliográficas do autor, Carlos Alberto Gramoza é poeta das novas gerações da literatura
piauiense. Com o volume de poesia Passos
Oblíquos (1), me parece que a cidadezinha de Amarante ganha um outro
intérprete de uma cidade com vocação para despertar o sentimento poético, cujo
marco mais respeitado do passado foi Da Costa e Silva.
Ao
contrário do que afirma Clóvis Moura, vejo na poesia de Gramoza sinais
acentuados de influências tradicionais e modernas, só que este poeta, como todo
poeta de qualidade, ao se inserir no circuito da tradição literária, o faz de
maneira pessoal, procurando a sua verdade ou o seu caminho intransferível. Toda
grande poesia no fundo se parece. O que distingue cada poeta de bom nível é a
sua formação intelectual, a sua aventura individual e a sua originalidade.
Gramoza faz
parte do grupo de poetas posteriores às últimas vanguardas que dela se beneficiaram,
porém optaram por um discurso poético com um pé na tradição e outro na modernidade.
Sua arma é a sintaxe retrabalhada e retemperada pelos avanços da poeticidade
contemporânea.
Alfredo
Bosi (História Concisa da Literatura
Brasileira, Cultrix, 3 ed. 1986, p. 543) distingue, pelo menos três
tendências da poesia brasileira a partir da década de 70: o discurso poético, a
fala ontobiográfica e o cráter público e político da poesia.
Gramoza se
encontraria transitando entre essas tendências apontadas pelo ensaísta acima. A
primeira compreenderia todos os poemas reunidos na obra que ora comentamos.
Na
segunda, estariam incluídos o poemas Chuveiros
(p.18-19), O Til do meu Coração (p.22), Poema
Urgente (p. 2) e de forma brilhantemente realizada Transfiguração (p 24-25).
Outros exemplos seriam: Crise Existencial (p. 27-28), Cingidos (p. 29-30), Noturno
Fluvial (p.31-32), Ternura
( p. 33 ), Crepúsculos (p.38-39) Os
Alísios (p.40-41), Centelhas
Brasileiras (p.52-53), este também finalmente elaborado.
Na terceira
tendência compreenderiam, entre outros,
poemas como Fenix (p.26), Vozesconflagradas
(p. 45-46), As Vozes da Rua
(p.54-55), um dos melhores do livro, Cena
Corriqueira (p.56), História do Brasil (p.57-58), Cheiros (p. 59-60), Rosa (p. 62-63), Raça Humana (p. 64-65), Debulhada
(p.68) e Longe de si mesmo
(pg.69-70).
A leitura
cuidadosa de cada poema confirmará sem dúvida essas três tendências entrevistas, as quais aparecem juntas ou separadamente em
outros poetas da geração de Gramoza.
Não diria
que todos os poemas de Passos Oblíquos
conseguiram convencer quanto à sua realização estética. O primeiro deles, que
abre o volume, Final Aquoso (p.11-l4), carece, a meu ver de mais acabamento. A
própria extensão maior dele, dividido em duas partes, não contribui positivamente
para uma adequada articulação interna. Ao nível semântico, partes do poema não
conseguem transmitir toda a força comunicativa que dele esperaria o leitor de
poesia. Ao nível do tratamento temático, é preciso que o poeta não resvale para
a gratuidade filosofante ou o sensacionalismo. É preciso que o poeta evite cair
no didatismo. Por isso, vejo que os poemas de Gramoza mais bem concebidos são
aqueles em que os recursos estilísticos e formais utilizados dão uma sensação de unidade significataiva à peça
poética, na qual se vêem inextricavelmente coesas a semantica, o tema e a
sintaxe, o que acontece, por exemplo, nos poemas Corolário (p.44), Nas
Garras do Tempo (p. 47), As Vozes das Rezas (p. 54), Rosas
(pg. 63-63).
Na lírica
de Gramoza convivem três vertentes temáticas, pelo menos na obra que estou
examinando: o subjetivismo de fundo autobiográfico, a natureza no seu aspecto
telúrico como apontou Clóvis Moura e a poesia social.
Na primeira
vertente estaria exemplarmente ilustrado o poema Transfiguração (p.24-25), do
qual vale a pena transcrever estes versos:
Nas casas de seus descendentes:
os seus retratos vivos guardados,
ou pendurados, ladeados nas paredes;
ou (tão) apenas
na memória e no coração.
Na segunda
vertente, mencionaria o poema Passos Oblíquos (p.34-35):
do sol nessa vasidão estampada,
trazendo para dentro do lavrador
a força da terra.
Para esse homem cria,
e outras crias, crias desse chão.
Na vertente
social, citaria, por exemplo, Rosa (p. 62-63):
Mundo microcéfalo imundo
rotineiro na sua torpeza não vê
e com tanta licenciosisade
corroi o mundo de rosa, subverte a rosa
que nasceu para ser rosa
hirta, perita, perfumosa.
Diria,
finalmente, que, nãos fossem tantos erros de revisão que assinalei durante a
leitura da obra, certamente a minha impressão do ainda seria mais receptiva.
Por outro lado, vejo em Gramoza uma voz
poética no mesmo nível de excelência daqueles poetas novos do Piauí que estão
postos em sintonia com a atualidade da poesia brasileira contemporânea, destacando-se,
entre outros traços dessa poesia, o recurso intertextual por ele habilmente
empregado no belo poema Centelhas Brasileiras (p.52-53) - adaptação parodística de Meus Oito Anos (primeira
e última estrofes) das Canções do Exílio,
de Casimiro de Abreu:
Ah! que saudades
que eu tenho daqueles natais,
daqueles dias de ano novo
deglutidos pelas crises
que os anos as trouxeram
e não levaram nunca mais.
________________
Gramosa,, Carlos Alberto, Teresina,
COMEPI, 1994, 72 p., apresentação de
Melcias Lira. Introdução de M. Paulo Nunes e Prefácio de Clóvis Moura.
Pubicado no livro As Ideias
no Tempo, Ed. Academia Piauiense de Letras, Teresina, 2010, de Cunha e
Silva Filho)
ADRIANO
LOBÃO: A POÉTICA RENOVADA
Francisco Miguel de Moura
Poeta,romancista,
crític
Adriano Lobão Aragão, jovem de ar tímido e
ensimesmado, é um poeta talentoso e dele muito se espera. Certamente, dele
muito se ouvirá falar na literatura. No momento, refiro-me ao livro recente, As Cinzas as Palavras, Edições
Amálgama, Teresina, 2009, onde prossegue na sua linha de aprofundamento nos
clássicos - antigos e modernos – e o faz com uma poética crítica e com sabor de
atualidade. Conta com outra roupagem, aquilo de que a poesia da modernidade
mais gosta: a intertextualidade e a intratextualidade, traduzindo seu mundo
em poesia, com discursos e sensações perpassados por outros.
Cabe aqui uma digressão: Após o advento da obra
póstuma Cours de Linguistique Generale,
de Ferdinad de Saussurre (1857-1913), resultante de cursos dados aos seus
alunos A. Ridlinger, Charles Bally e Albert Sechehaye, a Lingüística torna-se o
estudo científico da linguagem, quando é feita a separação entre língua e fala,
sendo esta o ato individual e, portanto, sujeito a fatores externos, e aquela,
um sistema de valores que se opõem uns aos outros e que está depositado como
produto social na mente de cada falante de uma comunidade, com homogeneidade.
Mas Lingüística e Gramática não brigam, convivem no mesmo escritor, com
sabedoria como faz Adriano Lobão.
O estabelecimento da Lingüística é o começo da modernidade
poética, os poetas de então ganham novas formas de libertação, não mais sendo
obrigados a simplesmente repetir metáforas e metonímias. O uso de tudo o que a
literatura imprimiu até então enriqueceu o consciente e o inconsciente
coletivos, para as variações mais estranhas, às vezes chegando ao obscurecimento
do discurso. Derivadas da ciência lingüística surgem a intertextualidade e a intratextualidade,
ambas já usadas nos discursos clássicos, porém de forma disfarçada.
Na poética de Adriano Lobão não faltam intertextualidades e intratextualidades. A leitura do poema Uns
versos (pg.15), tornam
suficientemente claras minhas afirmações:
“entre
linha limpa descanso sutil não se desdobra
claro enigma em superfície inerte paz
abandonada
o inexato revelar de obscuras possibilidades”
E o autor segue, com segurança, em todo o poema.
Isto já era comum, no Brasil, a partir da Geração de 45, de onde vem H. Dobal.
Mas, nas suas últimas obras, Dobal parte para uma temática e um texto mais
natural, aproximado da terra e do pensamento contemporâneo de satisfação
imediata. O poema Há ainda este tempo, que começa o livro de Adriano Lobão, é
muito característico do discurso da citada geração e da geração do Caetano e
Torquato Neto, por exemplo.
Encontramos, assim, as causas da proximidade, o encontro
do signo do historicismo com outro, o da modernidade, através de seu discurso interpolado
e enfático nas metáforas com metonímias, nas sinestesias com cenestesias. Tudo isto já existia na poética barroca, como
vemos no poema As odes os signos, de Adriano Lobão, o que não havia era a
sociedade moderna, agora entrelaçando toda a literatura:
“estas
odes que aqui se erguem como estranhos obeliscos
emanam
como desencanto louvando o próprio canto
palavra
perdida lançada em busca de alheio signo
este
verbo disperso em distante campo de poeira
areia
estéril onde não canta tágide nem musa
estância
onde não se encontra em seus cantos engenho e arte
nem
alegre lembrança vestida de esquecidas ânsias
nem
rústico altar profano onde sem música se dança
aquém
dos verbos de outrora além dos versos de amanhã
decantados em prosa elegia e hino assim
recordam
estas odes aqui erguidas em busca de
signo alheio”.
A pequena diversidade na matéria/conteúdo dos seus
livros vai por conta de um estilo maturado na substância história
principalmente. Poemas bem construídos,
com cheiro e sabor dos clássicos, baseados em altas leituras. O autor é professor
de literatura, adivinha-se: - basta que analisemos o mundo de antíteses e
paráfrases, referências e alusões, sem falar na tônica inversões/invenções... Por tudo isto e por muito que não é possível
ser dito aqui, Adriano Lobão Aragão é um dos melhores poetas da geração Amálgama, deste século XXI, um
milenista como diria Herculano Moraes.
Publicado no jornal O Dia, 08
de outubro de 2011, artigo publicado
como se fosse de autoria de Maria Helena Ventura.
TERESINA
HISTÓRIA
E IMAGINÁRIO
Teresinha Queiroz
Professora e historiadora
Teresina é uma cidade com história e historias. A
simbiose passado-presente é ainda claramente perceptível nos espaços e nos
marcos, mesmo atenuados e depredados do seu núcleo urbano. Ainda é possível, ao
pisar aqui, aportar ali, refazer os passos lentos de um passado não tão remoto
e flagrar os processos que o hoje promove na cidade. Cidade de personagens, de
nomes e de donos, onde história e memória ainda se encontram claramente
associadas. Cidade construída no labor do trabalho e no lavrar de fantasias e
sonhos, produtos de um ideal que se fez concreto no esforço catalisador do
desejo de muitos e da coragem de alguns, simbolizados no jovem Saraiva.
Impossível não falar de mudanças nesta cidade, como
impossível também é olvidar as penas convergentes de seus historiadores –
Clodoaldo Freitas, (¹) Monsenhor Chaves, (²) Odilon Nunes, (³) Orgmar Monteiro
(4) e A. Tito Filho (5), que
relataram, em todos os quadrantes, as primeiras décadas de Teresina. O sítio
original, as primeiras construções, o modo de vida dos primeiros habitantes, as
circunstâncias e os impasses da transposição da sede da antiga para a nova vila
do Poti, as incipientes repartições públicas, a convergência dos moradores para
o mesmo desiderato. Teresina já
aparece em sua vocação regional, atraindo e tentando absorver parcela dos negócios
do Maranhão. Neste sentido, mudança era a palavra de ordem, desde o século
XVII; e o norte buscado pelos administradores públicos era o das grandes vias
navegáveis, tendo em vista que o Parnaíba, que ainda não envelhecera, era a
grande promessa. No século XIX, face às inovações tecnológicas incorporadas à
arte da navegação fluvial, seu poder de atração se confirma, ratificando aquela
tendência para o arranjo das populações em áreas ribeirinhas. A situação da
nova capital é apenas compreendida no interior desse rearranjo mais geral, cuja
especificidade piauiense e regional é também a da reacomodação da principal
fonte econômica da Província – a atividade pecuária.
O imaginário da cidade discorre de forma magistral
acerca desses imperativos da história. A voz popular já contava, no século XIX,
“o meu boi morreu, que será de mim”, realçando a necessidade da busca de
outros recursos. O infeliz Crispim e sua mãe dispunham apenas de um magro
corredor de boi, e as águas dos rios misteriosos já prometiam, de maneira
ambígua – fartura, doçura e desgraça. Nos primórdios da cidade, Num-se-Pode já precisa esticar-se para,
à falta de lampiões, acender a lua e melhor espiar a cidade nascente, tentando
perscrutar suas entranhas, adivinhar-lhe o futuro, talvez iluminar-lhe a busca
incessante de Cabeça-de-Cuia no
encalço das Sete Marias Virgens.
Teresina nasce assim uma cidade de cálculo, de planejamento e igualmente de
mistérios e de histórias de encantamento.
II
Curioso observar que Teresina nasce para exercer
papéis bem definidos de núcleo urbano centralizador e diretor de políticas
públicas, de centro dispersor de dinâmicas socioculturais. No centro da
Província nucleadora de eixos regionais de transporte e comunicação. Teresina
marca-se pela prestação de serviços, pequena industrialização, vocação
agrícola, que custa a se definir e a se concretizar. Nesses cento e cinqüenta
anos, esses são alguns dos atributos de permanência da cidade. Em seus
primórdios e desde as propostas originais de Saraiva, expressas na
correspondência com a Corte, esses são os aspectos positivos e as dificuldades
a superar. Observa-se extraordinária fidelidade da história a essa discussão,
cuja origem remonta às primeiras críticas ao sítio da cidade insalubre, de
pouca adequação para a agricultura, de calor excessivo. Em paralelo, as árduas
defesas da excelência do lugar pelos moradores, simpatizantes e políticos.
É recorrente a discussão em torno dessas temáticas
originais, consubstanciadas hoje em todos os planos e políticas que se voltam
para a cidade de amanhã. Idéias, projetos, problemas, preocupações
sesquicentenárias: educação, saúde coletiva, comércio, transportes, dependência
quanto à produção de alimentos, empregos públicos, industrialização, hegemonia
regional. Espaços de ganhos e perdas, embates permanentes na pequena história
da cidade. Processos, símbolos e monumentos a atestar essas presenças-ausências
de nossa história.
A maneira como a cidade se constroi e busca
perpetuar-se em seus relatos e relíquias pode ser vista em seu primeiro terço
de vida. Nos primeiros cinqüenta anos, Teresina tem um formato já marcado pela
forte presença do Estado, por uma atividade comercial voltada para o uso dos
rios, pela integração regional com a hinterlândia maranhense e por uma gestão
pública e privada de serviços básicos mínimos de educação e saúde. No deserto
da Província, Teresina é a Corte, embora descalça. Sua grande riqueza simbólica
e monumental é a das igrejas – do Amparo, das Dores, de São Benedito. Voltada
para Deus, a cidade é súplica a partir dos protetores a que recorre e solicita
permanentemente o alívio às dores dos habitantes, boa parte da cor de São
Benedito.
III
A cidade já nasce embriagada de si mesma, como agora.
Em seus primórdios, memória e história registram o burburinho de gente na
construção. É possível imaginar Saraiva em mangas de camisa, acompanhando seus
mestres de obras a destocar unhas-de-gato e mofumbo, a enfrentar o consórcio
natural de pedras e lama. Os caminhos de
terra concorrem com os caminhos das águas, no levar e trazer bens e pessoas
deslocados do Poti Velho. Esse movimento de edificações de barro e de sonhos já
se acompanha de lendas de origem que retratam também o movimento de resistência
local. A Santa do amparo, da antiga
igrejinha do Poti, resiste à mudança, na imaginação de velhos moradores inconformados.
Poucas décadas após, destaca-se a novidade do aglomerado urbano em sua forma e
em seu tamanho, surpreende o crescimento da cidade face à dispersão urbana do
período. Passada a euforia inicial,
Teresina cresce a seu modo, em torno da administração provincial, da vida
comercial e do cotidiano religioso. Repartições públicas na busca de sedes
próprias, comércio voltado quase com exclusividade para as rampas do Parnaíba e
para o Mercado, então novo. Por caminhos
interiores, incipientes e poeirentos transitam retirantes famintos desta e de
outras províncias. Os emblemas da vida e da morte estão representados pela
Santa Casa de Misericórdia, pela Cadeia Pública, pelo Velho Cemitério, pelas
agora seculares igrejas do Amparo, das Dores, de São Benedito. Tudo ao alcance
da mão e da vista, ontem e hoje.
Ressalte-se que, nos primeiros cinqüenta anos,
Teresina já era uma cidade de pobres, atraindo outros iguais, com seus sonhos
de redenção. Crescendo a partir das fímbrias, em contornos circulares ao
casario de telha, acinzentando de palha os caminhos do norte, do leste e do
sul. Em sua infância, Teresina já convive com a mendicância de velhos
abandonados, com crianças desvalidas e famintas, com mulheres desgraçadas pela
fome e pela miséria. Aqui já está posta aquela condição característica e
aparentemente paradoxal da cidade – seu crescimento pela miséria regional
circundante. Quando Teresina arrefece em seu crescimento, trata-se de um bom
sinal.
IV
No momento atual, a Teresina sesquicentenária,
narcisicamente, reflete-se no espelho verde de seus rios e quintais. Constrói,
descobre, desvela novas e encantadoras paisagens. Busca o céu, aconchegando-se
a si mesma no movimento acelerado de verticalização. Abraçada pelo azul e
banhada pela luz dourada de seus fins de tarde, outra vez, como no fim do
século XIX e em outras décadas do século XX, está recolhida e concentrada, imersa
em autocontemplação, num movimento afirmativo de enfrentamento de seus
problemas centenários e na retomada de esforços para a plenificação de seus
pontos fortes.
V
Teresinenses natos e por adoção têm cantado a cidade
em prosa e verso. Figurada como menina e como mulher, ela tem sido poeticamente
explorada em todos os seus contornos e perfis.
Suas qualidades e seus defeitos – poucos, dizem seus cantores, têm sido
mostrados à saciedade.
Francisco Miguel de Moura, em Ter-e-sina, afirma:
Há
Roma, Paris e Bagdá
com
sonhos que não sei
com
ceus que me escaparam
pelos
pés.
Você
conheço de pele
de
manha
de
manhãs desfeitas
de
sol e chuva meio a meio
de
ponte anoitecer
de
rua, rio e rima.
Só
você com seus ares
de
mulher que ensina
a
vida, o ventre
e o tonel. (6)
Cineas Santos constata que
Aos
que chegam
(náufragos,
arrivistas, mercenários)
a
cidade sorri
e
finge que se dá
(...)
E acrescenta:
a
cidade conhece os seus
(...)
e só
a eles se entrega sem reservas. (7)
Essa feminilização eufemística se exacerba em V. de
Araújo:
Teresina:
contornos
sensuais, anatômicas formas; (8)
É possível afirmar que todos os monumentos e todos os
sentimentos da cidade têm sua versão poética. Menina mimada e ninada, cheia de
caprichos, arrancou da alma de um apaixonado versos de entrega filial, sem
reservas.
(...)
tudo
é tão concreto em ti
e em
mim, tudo assim
tão
frágil, este coração de filho (9)
A ausência da cidade, o exílio buscado ou
compulsório são temas recorrentes na poesia local. Beth Rego sintetiza esse
sentimento ao afirmar:
(..) A felicidade se esconde aqui
mas só se mostra quando estamos no
exílio. (10)
No mesmo sentido, Hélio Soares Pereira rega o
sítio de sua paixão “na água filtrada de sua saudade”. (11)
Os seus contrastes não
escapam à observação preocupada e amorosa de outros:
Teus olhos erguidos, projetos ao
vento,
são
como velas, ao desafio do tempo,
de
velozes jangadas... navegando céus. (12)
enquanto
isso, o Velho Monge
no
auge de sua caduquice
transforma
suas águas em coroas.
seu
leito que outrora
fora
caudaloso
hoje
é apenas um rio de lágrima
da
mãe Natureza
chorando
sua própria desgraça. (13)
VI
Desde seu nascimento, Teresina se queixa, ressentida
com a falta de diversões. Um olhar documentado para o passado e uma vista
d’olhos no presente não parecem confirmar essa asserção. Dezenas e dezenas de
atividades lúdicas podem ser lembradas compondo os lazeres do século XIX e mesmo
do século subseqüente. Banhos de rio, pescarias, caça desenfreada a aves e a
pequenos animais, farinhadas, serenatas, danças e batuques diversos, missa,
novena, quermesses, festividades religiosas ligadas à Semana Santa, festas
alusivas a São João, a São Pedro, a Santo Antônio, bumba-meu-boi, comícios, festas
familiares de casamentos, batizados e até mesmo os enterros faziam parte da
intensa sociabilidade do passado, quando sagrado e profano não necessariamente
estavam desvinculados.
Na primeira metade do século XX, a intensificação da
urbanização, as inovações tecnológicas, a maior complexidade da rede social e a
grande ênfase conferida à escolarização, no universo de uma República que se
pretendia das letras, agregam àquele elenco novas diversões ligadas à vida
escolar e a esse novo universo intelectual
Os cinqüenta anos mais recentes de Teresina já trazem
de forma nítida e meridiana a marca da segregação. Pesquisas econômicas e
sociais nos têm mostrado na retaguarda das posições de crescimento, malgrado os
nossos esforços. Espaços de sociabilidades também visivelmente recortados
enunciam as diferenças no presente e no passado. Mesmo os lugares públicos,
como a Praça Pedro II, retratam esses costumes segregadores – ricos volteando
em baixo – soldados, pobres e ‘mal-faladas’ na parte de cima. Nesse instante,
os shoppings configuram e
exemplificam a pertinácia dessa cultura de exclusão. Para muitos, os espaços da
liberdade estão nos contornos do centro, nos bairros populares, cujas boates e
forrós catalisam jovens de todos os recantos e de todas as extrações sociais.
VII
Teresina, tal qual a reconhecemos hoje, tem todas as
idades e se faz representar, enquanto monumento urbanístico, principalmente
pela herança e pelos artefatos dos meados do século XX. O casario do centro
histórico, tombado pela voracidade do tempo, ainda se deixa perceber em algumas
de suas residências; algumas edificações transformadas em cartão postal,
tiveram ou ainda guardam suas funções de prestar serviços à coletividade
teresinense. A Ponte Metálica, o Hospital Getúlio Vargas, o Colégio das Irmãs,
o Liceu Piauiense, a primeira ponte sobre o rio Poti são edificações-monumentos
um pouco mais jovens que a Estação Ferroviária, a antiga Escola Normal, agora
sede de Prefeitura Municipal de Teresina, o 25º Batalhão de Caçadores, o Clube
dos Diários, construções da década de 1920.
A herança do século XIX se faz representar sobretudo
pelo atual Museu do Piauí, pelo Palácio de Karnak, pela Casa da Cultura, pelo
Theatro 4 de Setembro, além dos templos já citados do Amparo, das Dores e de
São Benedito. As praças do centro, constantes da planta original de Saraiva,
talvez sejam os espaços que maiores alterações e adaptações sofreram ao longo
desses cento e cinqüenta anos, em virtude igualmente das mudanças em seus usos.
Do ponto de vista urbanístico, o que mais chama a
atenção em Teresina, hoje, é certamente o rearranjo das formas recentes de
segregação urbana – a verticalização e a favelização rápidas e intensas. Esse
notável contraste condensa os processos sociais em curso, revela políticas
públicas sobre o urbano, cristaliza clivagens culturais inegáveis. Essas novas
paisagens simbolizam os velhos problemas do desemprego e da ausência de
segurança, faces do monstro urbano que insiste em se mostrar.
VIII
Interessante observar-se a relação entre os aniversários
cinqüentenários de Teresina e a produção historiográfica sobre a cidade. Os
pesquisadores têm presenteado Teresina nesses marcos natalícios e também tomado
esses anos como referências.
Sem pretensões de realizar balanço exaustivo, é
possível verificar que em 1902 circulava o primeiro livro sobre Teresina,
Teresina em 1902, em que colaboraram Miguel Rosa, João Pinheiro e Antonino Freire.
(14) Em
1911 e 1912, Clodoaldo Freitas publica, em folhetim no jornal Diário
do Piauí, a primeira história de Teresina, até aqui a mais alentada
pesquisa sobre as seis primeiras décadas da capital. Abdias Neves e Jônatas
Batista, em romance, artigos e crônicas, registraram muito sobre a cidade até o
final da década de 1920. (15) Entre
as décadas de 1930 e 1950, Teresina é
objeto de observação sobretudo dos seus filhos saudosos, que vão habitar outras
plagas, em particular, o Rio de Janeiro,
então considerado o lugar do sonho, principalmente pelas classes médias
intelectualizadas. Os registros de Cristino Castelo Branco e de Bugyja Britto
são exemplares nesse aspecto. (16)
Porém a identidade de Teresina, moldada no século XX e
com mais força após o centenário, é produto do labor intenso e apaixonado de estudiosos
e habitantes da cidade, tais como A. Tito Filho, confessadamente seu maior
amante em tempos recentes, de extensíssima produção escrita sobre a sociedade e
a cultura, entre os anos 30 e 80 do século XX e inventor de uma escriturística
que recorta a cidade como quente de afeto, plena de um humor sutil e refinado,
povoada de tipos irreverentes, permanentemente sensual. Cidade-menina, porém grávida de desejos e de
irresistível poder de sedução, é imagem exacerbada na poesia local, na música e
mesmo na crônica midiática contemporânea. Se A. Tito Filho reforça e perpetua
importantes dimensões simbólicas de Teresina, as memórias de Orgmar Monteiro,
em cinco pequenos volumes e com a denominação singela de Teresina descalça,
recuperam um século de crescimento e transformação do espaço urbano, realçando
o embate com a natureza a ser domada e dominada, bem como as transformações da
cidade nos seus artefatos, monumentos, serviços, na movimentação econômica e em
seus rearranjos espaciais. Os registros
de A. Tito Filho e de Orgmar Monteiro são complementares. O material e o
simbólico evidenciam a cidade em ebulição, buscando afirmar-se na região,
tentando centralizar os destinos político e cultural do Piauí.
Enamorado humilde e recatado de Teresina, símbolo ele
próprio de nossa história, é sem dúvida Monsenhor Chaves – seu maior historiador.
Nas festas do centenário, presenteou a capital com – Teresina: subsídios para
a história do Piauí, marco indelével daquele acontecimento memorável.
Mais tarde elaborou a monografia Como nasceu Teresina.
No final da década de
Em síntese apressada, é possível afirmar que esse
autor recupera a Teresina alegre, pitoresca, afetiva, sensual; Orgmar Monteiro
realça o território e sua conquista paulatina, o embate com a natureza
circundante, o esforço técnico e construtivo aqui operado, sugere o peso das
cambiantes econômicas na transformação da cidade. Monsenhor Chaves vislumbra o cotidiano do
povo, em situações que variam do trivial ao heróico. Poetas e cronistas de
todas as gerações cantaram os rios, o verde, os sentimentos, a paisagem
afetiva, os conflitos sociais inegáveis.
IX
Teresina em 2002 é toda essa amálgama de sentimento e
forma e muito mais do que qualquer cronista possa aprisionar num relato.
Antiética e ambígua. Bela, rica e miserável. Verde e cinza. Livre e aprisionada.
Cidade de nossa vivencia, de nossa sofrência e de nosso conhecimento. Do desejo
de mudar e da vontade de permanecer. Dela já disse o poeta, que podemos talvez
seguir:
Teresina
conheço de antros
de
antes.
Bagdá
é um sonho
não
vou lá.
Meu
sonho em que sonho
de
acordo
é
você. (18)
____________________
Extraído do livro “Do
Singular ao Plural”, Edições Bagaço, Recife – PE, 2006 , pág. 171/181
(Cap. 12), de autoria de Teresinha Queiroz
_______
NOTAS:
1 FREITAS, Clodoaldo. História de Teresina. Diário do Piauí, n.
2 CHAVES, Joaquim (Pe.). Teresina:
subsídios para a história do Piauí. Teresina (s. n.) 1952; CHAVES, Joaquim
Pe.). Como nasceu Teresina. 2 ed.
Teresina: Fundação Cultural Mons.
Chaves, 1987.
3 NUNES, Odilon. Pesquisas para a
história do Piauí. 2.ed. Rio de Janeiro: Artenova,1975. v.4
4 MONTEIRO, Orgmar. Teresina
descalça: memória desta cidade para deleite dos velhos habitantes e
conhecimento dos novos. Teresina: Gráfica Júnior, 1978. 5v.
5 TITO FILHO, A. Praça Aquidabã,
sem número. Rio de Janeiro: Artenova, 1975; TITO FILHO, A. Crônica da cidade amada. Teresina (s.n.), 1977; TITO FILHO, A. Teresina: ruas, praças e avenidas. 2.ed.
Teresina: (s.n), 1986; TITO FILHO, A. Crônicas.
Teresina: Secretaria da Cultura do Piauí, 1990.
6 MOURA, Francisco Miguel de. Ter-e-sina. In: RAMOS, Maria do Socorro
Santana et.al. Postais da cidade verde.
Teresina: Fundação Cultural Mons.Chaves., (1989. p. 12.
7 SANTOS, Cineas. Teresina. In: RAMOS et al, (1989), p.13.
8 ARAÚJO, V. de, Teresina. In:
RAMOS et al. [1989], p.23.
9 NUNES, Nelson. A cidade revisitada. In: RAMOS et
al.[1989], p.37.
10 REGO, Beth, Segunda fotografia
viver Teresina. In: RAMOS et al. [1989], p.14.
11 PEREIRA, Hélio Soares. Teresina.
In: RAMOS
et al. [1989], p.35.
12 ARAÚJO, V. de, Teresina. In: RAMOS et al. [1989], p.23.
13 ADRIÃO NETO. Ponte metálica. In:
RAMOS et al. [1989], p.19.
14 PINHERO, João et al. Teresina
em 1902. Teresina: Tipografia d’O Artista, 1902.
15 NEVES, Abdias. Um manicaca.
Teresina: Campos Veras, 1910; NEVES, Abdias. Um manicaca. 2.ed.Teresina: Projeto
Petrônio Portela, 1985; NEVES, Abdias. Um
manicaca. 3.ed.Teresina: Corisco, 2000; BATISTA, Jônatas. Poesia e prosa Teresina: Projeto Petrônio
Portela, 1985.
16 CASTELO BRANCO, Cristino. Escritos de vário assunto. Rio de Janeiro: Pongetti, 1968; CASTELO
BRANCO, Cristino. Frases e notas. Rio
de Janeiro: Pongetti, 1957; BRITTO, Antônio Bugyja de Sousa. Narrativas
autobiográficas. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 1977. v. 2.
17 TITO FILHO,
1990, p. 33.
18 MOURA, [1989], P. 12.
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